SEVERINA DO ALAMBIQUE

- 1 –

Nasci dentro da garrafa

Meus pais eram pinguços

Aprenderam fazendo e

Bebendo aos soluços

A cachaça que bebiam

Mais forte que dos russos

No sertão que assolava

Com a seca a castigar

Não tínhamos o comer

A água sempre a faltar

A vida que maltratava

Pisava pra massacrar

A família era grande

Quinze irmão pra’limentar

Eram todos pele e osso

Eram feios pra danar

Viviam de pés descalços

E a barriga a inchar

- 2 -

Alguns foram vendidos

Como se fossem gado

Iam para as fazendas

Dos “home” do roçado

Trabalhavam feito escravos

Também eram bulinados

Aguentei muita coisa

Era muito sofrimento

Eu enfrentei a chuva

Enfrentei forte vento

Minha vida era assim

Uma vida de tormento

Meu pai morreu primeiro

A minha mãe noutro ano

Aí eu fiquei sozinha

Em total abandono

Estava com muito medo

Me arranjaram um dono

Fui pra casa do patrão

Casa Grande da roça

Jogaram-me no chiqueiro

Pra dormir com as porcas

E me davam lavagem

O meu banho era na fossa

- 3 –

Trabalhava feito escrava

Cortava cana no mato

Desgraçada de vida

Choro só com relato

Mas sofria enormemente

Num buraco igual rato

Fui crescendo desse jeito

Apanhava todo dia

Meu corpo não aguentava

Toda aquela agonia

Não dormia com medo

De morrer antes do dia

Mas a coisa piorou

Quando eu me tornei moça

Acordei pela manhã

De sangue tinha uma poça

Quando o patrão viu aquilo

Me olhou tal uma onça

Toda noite ele vinha

Me tirava do chiqueiro

Fazia eu tomar banho

Era pra tirar o cheiro

De porco do meu corpo

Era muito desespero

- 4 –

Me usou por muito tempo

Até que eu engravidei

Ele tirou meu bebê

Para onde foi eu nem sei

Eu chorei a minha perda

Mas de novo engravidei

Mais um filho eu perdi

Ele me tirou de novo

Parecia uma galinha

Botava filho feito ovo

Toda noite me forçava

Me sentia um estorvo

Um dia então eu cansei

E tentei não mais ceder

Fiz força, lutei e reagi

Eu já nem queria saber

Mas ele era muito forte

Ele fez-me arrepender

Noutra noite ele veio

Com os “ói chei di sangue”

Ele cheirava à cachaça

Estava sujo de mangue

Empurrei-o no chiqueiro

Não teria outra chance

- 5 –

Fugi daquele inferno

Foi pra grande cidade

Queria esquecer de tudo

Mas o meu corpo inda arde

Minha carne inda treme

E o medo que me invade

Eu dormia pela rua

Comia coisas do lixo

Viva suja e fedida

Rasteja feito bicho

E por onde eu passava

Causava muito buchicho

Por fim minha saída

Deu futuro muito cruel

Eu vendia o meu corpo

Me limpava com papel

Estava pronta para

Outra vez ir pro motel

Era pouco o dinheiro

Só para alimentação

E logo apareceu

Desgraçado cafetão

Se não desse o dinheiro

Ele me descia a mão

- 6 –

Um dia” tava” na praça

Com o bucho bem vazio

Passou uma senhora

Foi quem logo me acudiu

Estava com muito frio

Com casaco me cobriu

Disse que me avistou

E sentiu um arrepio

Viu que era nordestina

Não era daqui do Rio

Ela também era de lá

Veio pra morar com o tio

Ofereceu um emprego

Ia ser sua empregada

Eu teria onde dormir

E não ia ter “paga”

Comida e cama quente

Pra passar a madrugada

Aceitei e fui com ela

Era um lugar bonito

Tinha árvores na rua

E um pomar infinito

Deram roupas bem limpas

Vou mudar eu acredito

- 7 –

A vida foi melhorando

Eu estava bem contente

Tinha uma vida digna

Já não era indigente

Com respeito era tratada

Me olhavam como gente

Comprando coisas novas

O meu quarto enfeitei

Comprava minhas roupas

Eu até me maquiei

Mudei o meu cabelo

No espelho me amei

Já não lembrava mais

Dos tempos de desgraça

Quando dormia na rua

Vendia o corpo na praça

Do mostro do cafetão

O medo já não me abraça

E as surpresas da vida

A cada dia aumentava

Libertou os meus medos

Eu já me sentia amada

Conheci o Severino

Eu estava apaixonada

- 8 –

Severino era porteiro

Do prédio logo em frente

Parecia ser bom homem

E bom homem nunca mente

E todo mundo me dizia

Que ele era boa gente

Namoramos por meses

Até que eu embuchei

Contei pra minha patroa

Ela não gostou, eu achei

Mas o que podia fazer

Minha perna não fechei

Só que nós não nos cuidamos

Nós nem pensamos nisso

Só pensamos em trepar

Juro, eu não queria isso

O Severino era pobre

E morava num cortiço

Para tristeza minha

O pior aconteceu

Minha patroa decidiu

E rua me ofereceu

Fiquei desempregada

E Severino morreu

- 9 –

Mais uma vez na vida

Eu estava sozinha

Não tinha pra onde ir

E poucas economias

Aluguei um quartinho

Que só uma cama tinha

Em um fogão de lenha

Fazia bolo de chuva

Comia farinha pura

Em uma panela suja

A barriga a crescer

Da fome a vista turva

Numa noite muito fria

Seis meses de gravidez

Eu passava muito mal

Vomitava quando e vez

A dor era insuportável

Me causava palidez

Acordei no hospital

Deitada em uma maca

Meu filho nasceu morto

Cortaram com uma faca

Minha barriga no cortiço

Como fosse uma vaca

- 10 –

Ainda sentindo dores

Para rua então voltei

Novamente era uma puta

Não via mais outra saída

Eu tinha que ir a luta

Decidi que venderia

Meu corpo por todo dia

E tudo que ganhasse

Então eu guardaria

E a qualquer momento

Minha vida mudaria

Suportei horrores

Me deitei dia e noite

Levei tapas e dentadas

Gozadas e açoites

Homens desgraçados

Até debaixo de pontes

Mas um dia eu parei

Consegui mudar o rumo

Parei de prostituir

Botei a vida no plumo

Com tudo que eu ganhei

Abri loja de consumo

- 11 –

Nós vendíamos comida

Gente vinha pelo faro

Tinha de tudo um pouco

Dos “barato” e dos “caro”

Tinha boa freguesia

Fazia fila de carro

Alimentos da terrinha

Bolo de fubá e goma

Queijo qualho e curado

De enfeite uma sanfona

Farinha de mandioca

E eu que era a dona

Eu ficava no balcão

Atendendo os clientes

Vinham de toda parte

Tinha até os frequentes

Me compravam todo dia

E saiam bem contentes

Mas num dia bem difícil

Ele “vei” comprar comigo

Pensava estar morto

O meu maior inimigo

Era o dono da roça

Senti doer o umbigo

- 12 -

Disse que me encontrou

Fazendeiro amigo seu

Que comprou na lojinha

E que me reconheceu

Havia deitado comigo

Meu endereço lhe deu

Tinha perdido tudo

E sua mulher faleceu

Não tinha onde ficar

Que era dever meu

Aceitar viver com ele

Enfim, ele me acolheu

Eu Tinha que se grata

Por ter me alimentado

Que vivendo a seu lado

Ele também seria grato

Ajudaria nos negócios

Seria homem honrado

Não podia acreditar

No que estava ouvindo

Minha cabeça girava

Dava nojo do cretino

Tomei minha atitude

Pra cima fui partindo

- 13 -

Amigo ouça o que falo

Me tenha muito respeito

Pois eu digo e repito

Sou mulher Bato no peito

você está encrencado

Mequetrefe de sujeito

Aqui não têm moleza

Eu não corro de briga

Vou pra cima vou na mão

Enfrento home e rapariga

Sou do chão, sou da terra

Da mata e da restinga

Enfrentei seca da peste

“Home” já sofri pra burro

Já senti fome do cão

Na barriga feito murro

Passei na vida um inferno

Para o inferno te empurro

Não se engane comigo

Sou uma mulher forte

não apanho mais na cara

Sou rapariga do Norte

Se tentar me tocar aqui

Tu vai encontrar a morte

- 14 –

De agora pra frente

Nenhum cabra safado

Me bate feito covarde

Como tu no passado

Tirou de mim a moça

Me atacou feito tarado

Com marcas no corpo

Continuei a vida

Conto cada cicatriz

Como fosse ferida

Por tudo que passei

Ando de cabeça erguida

Repito o que disse

Você não vai conseguir

Entrar na minha vida

Nem meu corpo sentir

Pegue suas trouxas

Trate logo de partir

Agora entenda se cabra

Se tentar mais uma vez

chegar perto de mim

Repetir o que você fez

Era melhor nâo nascer

Vou cortar você em três

- 15 –

O tempo foi passando

Depois de tanto sofrer

Fui ficando mais valente

A fome fez embrutecer

E no Sol de todo dia

Meu corpo fortalecer

Não dei sorte no amor

Nem mesmo mãe pude ser

Então aviso meu senhor

Que é pra “mode intender”

Sou Paraíba masculina

Mais forte que “vós me cê”

Sem aceitar a derrota

Veio pra cima de mim

Ele subiu no meu balcão

Me puxou no “colarim”

E com o rosto no meu

Ele me falou “baixim”

Escuta sua rapariga

Meretriz dos infernos

Eu sei do seu passado

De todos homens de terno

Pobres e desdentados

Chefes e subalternos

- 16 –

Apertou meu pescoço

Até quase me matar

Estava quase caindo

Não podia respirar

Puxei da gaveta a faca

Sua barriga atravessar

Senti o sangue quente

Escorrer por minha mão

As tripas de seu bucho

Iam caindo no chão

Enfiei mais duas vezes

Arriscar de novo, não

No momento foi passando

Tudo por minha cabeça

O corpo estrebuchando

Agora eu ia ser presa

Novamente vou fugir

Foi legitima defesa

Eu desisti de correr

E esperei a polícia

Quem paga minha dor?

Tô na areia movediça

Eu matei um estorvo

Que se faça justiça

EVANDRO SROCHA
Enviado por EVANDRO SROCHA em 02/09/2014
Reeditado em 16/09/2014
Código do texto: T4947378
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.