SEVERINA DO ALAMBIQUE
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Nasci dentro da garrafa
Meus pais eram pinguços
Aprenderam fazendo e
Bebendo aos soluços
A cachaça que bebiam
Mais forte que dos russos
No sertão que assolava
Com a seca a castigar
Não tínhamos o comer
A água sempre a faltar
A vida que maltratava
Pisava pra massacrar
A família era grande
Quinze irmão pra’limentar
Eram todos pele e osso
Eram feios pra danar
Viviam de pés descalços
E a barriga a inchar
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Alguns foram vendidos
Como se fossem gado
Iam para as fazendas
Dos “home” do roçado
Trabalhavam feito escravos
Também eram bulinados
Aguentei muita coisa
Era muito sofrimento
Eu enfrentei a chuva
Enfrentei forte vento
Minha vida era assim
Uma vida de tormento
Meu pai morreu primeiro
A minha mãe noutro ano
Aí eu fiquei sozinha
Em total abandono
Estava com muito medo
Me arranjaram um dono
Fui pra casa do patrão
Casa Grande da roça
Jogaram-me no chiqueiro
Pra dormir com as porcas
E me davam lavagem
O meu banho era na fossa
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Trabalhava feito escrava
Cortava cana no mato
Desgraçada de vida
Choro só com relato
Mas sofria enormemente
Num buraco igual rato
Fui crescendo desse jeito
Apanhava todo dia
Meu corpo não aguentava
Toda aquela agonia
Não dormia com medo
De morrer antes do dia
Mas a coisa piorou
Quando eu me tornei moça
Acordei pela manhã
De sangue tinha uma poça
Quando o patrão viu aquilo
Me olhou tal uma onça
Toda noite ele vinha
Me tirava do chiqueiro
Fazia eu tomar banho
Era pra tirar o cheiro
De porco do meu corpo
Era muito desespero
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Me usou por muito tempo
Até que eu engravidei
Ele tirou meu bebê
Para onde foi eu nem sei
Eu chorei a minha perda
Mas de novo engravidei
Mais um filho eu perdi
Ele me tirou de novo
Parecia uma galinha
Botava filho feito ovo
Toda noite me forçava
Me sentia um estorvo
Um dia então eu cansei
E tentei não mais ceder
Fiz força, lutei e reagi
Eu já nem queria saber
Mas ele era muito forte
Ele fez-me arrepender
Noutra noite ele veio
Com os “ói chei di sangue”
Ele cheirava à cachaça
Estava sujo de mangue
Empurrei-o no chiqueiro
Não teria outra chance
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Fugi daquele inferno
Foi pra grande cidade
Queria esquecer de tudo
Mas o meu corpo inda arde
Minha carne inda treme
E o medo que me invade
Eu dormia pela rua
Comia coisas do lixo
Viva suja e fedida
Rasteja feito bicho
E por onde eu passava
Causava muito buchicho
Por fim minha saída
Deu futuro muito cruel
Eu vendia o meu corpo
Me limpava com papel
Estava pronta para
Outra vez ir pro motel
Era pouco o dinheiro
Só para alimentação
E logo apareceu
Desgraçado cafetão
Se não desse o dinheiro
Ele me descia a mão
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Um dia” tava” na praça
Com o bucho bem vazio
Passou uma senhora
Foi quem logo me acudiu
Estava com muito frio
Com casaco me cobriu
Disse que me avistou
E sentiu um arrepio
Viu que era nordestina
Não era daqui do Rio
Ela também era de lá
Veio pra morar com o tio
Ofereceu um emprego
Ia ser sua empregada
Eu teria onde dormir
E não ia ter “paga”
Comida e cama quente
Pra passar a madrugada
Aceitei e fui com ela
Era um lugar bonito
Tinha árvores na rua
E um pomar infinito
Deram roupas bem limpas
Vou mudar eu acredito
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A vida foi melhorando
Eu estava bem contente
Tinha uma vida digna
Já não era indigente
Com respeito era tratada
Me olhavam como gente
Comprando coisas novas
O meu quarto enfeitei
Comprava minhas roupas
Eu até me maquiei
Mudei o meu cabelo
No espelho me amei
Já não lembrava mais
Dos tempos de desgraça
Quando dormia na rua
Vendia o corpo na praça
Do mostro do cafetão
O medo já não me abraça
E as surpresas da vida
A cada dia aumentava
Libertou os meus medos
Eu já me sentia amada
Conheci o Severino
Eu estava apaixonada
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Severino era porteiro
Do prédio logo em frente
Parecia ser bom homem
E bom homem nunca mente
E todo mundo me dizia
Que ele era boa gente
Namoramos por meses
Até que eu embuchei
Contei pra minha patroa
Ela não gostou, eu achei
Mas o que podia fazer
Minha perna não fechei
Só que nós não nos cuidamos
Nós nem pensamos nisso
Só pensamos em trepar
Juro, eu não queria isso
O Severino era pobre
E morava num cortiço
Para tristeza minha
O pior aconteceu
Minha patroa decidiu
E rua me ofereceu
Fiquei desempregada
E Severino morreu
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Mais uma vez na vida
Eu estava sozinha
Não tinha pra onde ir
E poucas economias
Aluguei um quartinho
Que só uma cama tinha
Em um fogão de lenha
Fazia bolo de chuva
Comia farinha pura
Em uma panela suja
A barriga a crescer
Da fome a vista turva
Numa noite muito fria
Seis meses de gravidez
Eu passava muito mal
Vomitava quando e vez
A dor era insuportável
Me causava palidez
Acordei no hospital
Deitada em uma maca
Meu filho nasceu morto
Cortaram com uma faca
Minha barriga no cortiço
Como fosse uma vaca
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Ainda sentindo dores
Para rua então voltei
Novamente era uma puta
Não via mais outra saída
Eu tinha que ir a luta
Decidi que venderia
Meu corpo por todo dia
E tudo que ganhasse
Então eu guardaria
E a qualquer momento
Minha vida mudaria
Suportei horrores
Me deitei dia e noite
Levei tapas e dentadas
Gozadas e açoites
Homens desgraçados
Até debaixo de pontes
Mas um dia eu parei
Consegui mudar o rumo
Parei de prostituir
Botei a vida no plumo
Com tudo que eu ganhei
Abri loja de consumo
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Nós vendíamos comida
Gente vinha pelo faro
Tinha de tudo um pouco
Dos “barato” e dos “caro”
Tinha boa freguesia
Fazia fila de carro
Alimentos da terrinha
Bolo de fubá e goma
Queijo qualho e curado
De enfeite uma sanfona
Farinha de mandioca
E eu que era a dona
Eu ficava no balcão
Atendendo os clientes
Vinham de toda parte
Tinha até os frequentes
Me compravam todo dia
E saiam bem contentes
Mas num dia bem difícil
Ele “vei” comprar comigo
Pensava estar morto
O meu maior inimigo
Era o dono da roça
Senti doer o umbigo
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Disse que me encontrou
Fazendeiro amigo seu
Que comprou na lojinha
E que me reconheceu
Havia deitado comigo
Meu endereço lhe deu
Tinha perdido tudo
E sua mulher faleceu
Não tinha onde ficar
Que era dever meu
Aceitar viver com ele
Enfim, ele me acolheu
Eu Tinha que se grata
Por ter me alimentado
Que vivendo a seu lado
Ele também seria grato
Ajudaria nos negócios
Seria homem honrado
Não podia acreditar
No que estava ouvindo
Minha cabeça girava
Dava nojo do cretino
Tomei minha atitude
Pra cima fui partindo
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Amigo ouça o que falo
Me tenha muito respeito
Pois eu digo e repito
Sou mulher Bato no peito
você está encrencado
Mequetrefe de sujeito
Aqui não têm moleza
Eu não corro de briga
Vou pra cima vou na mão
Enfrento home e rapariga
Sou do chão, sou da terra
Da mata e da restinga
Enfrentei seca da peste
“Home” já sofri pra burro
Já senti fome do cão
Na barriga feito murro
Passei na vida um inferno
Para o inferno te empurro
Não se engane comigo
Sou uma mulher forte
não apanho mais na cara
Sou rapariga do Norte
Se tentar me tocar aqui
Tu vai encontrar a morte
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De agora pra frente
Nenhum cabra safado
Me bate feito covarde
Como tu no passado
Tirou de mim a moça
Me atacou feito tarado
Com marcas no corpo
Continuei a vida
Conto cada cicatriz
Como fosse ferida
Por tudo que passei
Ando de cabeça erguida
Repito o que disse
Você não vai conseguir
Entrar na minha vida
Nem meu corpo sentir
Pegue suas trouxas
Trate logo de partir
Agora entenda se cabra
Se tentar mais uma vez
chegar perto de mim
Repetir o que você fez
Era melhor nâo nascer
Vou cortar você em três
- 15 –
O tempo foi passando
Depois de tanto sofrer
Fui ficando mais valente
A fome fez embrutecer
E no Sol de todo dia
Meu corpo fortalecer
Não dei sorte no amor
Nem mesmo mãe pude ser
Então aviso meu senhor
Que é pra “mode intender”
Sou Paraíba masculina
Mais forte que “vós me cê”
Sem aceitar a derrota
Veio pra cima de mim
Ele subiu no meu balcão
Me puxou no “colarim”
E com o rosto no meu
Ele me falou “baixim”
Escuta sua rapariga
Meretriz dos infernos
Eu sei do seu passado
De todos homens de terno
Pobres e desdentados
Chefes e subalternos
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Apertou meu pescoço
Até quase me matar
Estava quase caindo
Não podia respirar
Puxei da gaveta a faca
Sua barriga atravessar
Senti o sangue quente
Escorrer por minha mão
As tripas de seu bucho
Iam caindo no chão
Enfiei mais duas vezes
Arriscar de novo, não
No momento foi passando
Tudo por minha cabeça
O corpo estrebuchando
Agora eu ia ser presa
Novamente vou fugir
Foi legitima defesa
Eu desisti de correr
E esperei a polícia
Quem paga minha dor?
Tô na areia movediça
Eu matei um estorvo
Que se faça justiça