IVA, O TERRÍVEL
IVA – O TERRÍVEL !
Sempre disse a meu pai, desde pequenino, que não queria ser operário. O bigode retorcia-se e, com os olhos de fogo, respondia-me: - o Salazar também nunca quis e vê lá a merda que o homem está a fazer. Nunca percebi qual era a porcaria que o homem estava a fazer: eu tinha 7 anos e jamais me passara pela cabeça que o operariado, e não só, invejava o homem por usar brilhantina (ou azeite) no cabelo. Os operários que eu conhecia – o mais próximo era meu pai (sapateiro) tinham no fundo, inveja do senhor doutor. Homem brilhante sim senhor. A sua foto na sala de aulas da 1ª classe mostrava-o bem. Só o raio do olhar é que me incomodava. Estivesse em que carteira estivesse, do lado esquerdo ou do lado direito, o seu olhar não me largava. Era prova que o senhor olhava por nós criancinhas como confirmei num fita de cinema com o Vasco Santana. - …E fica sabendo, não é com o dinheiro de meias-solas que te posso mandar estudar. – Ah, respondia-lhe, também não quero. O meu sonho é ser padre. Mal sabia eu que para ser padre também se tinha que estudar. Aos 10 anos, acabada a 4ª classe e os exames de admissão ao liceu e escola comercial, ingressei no seminário. Aprendi a não dizer asneiras, e a saber que era pecado ter e mostrar, a minha colecção de cromos das Raças Humanas, apreendida pelo padre Morais. Soube mais tarde que o cromo culpado era a figura duma mulher etíope que mostrava os peitos, meio escondidos por lindos colares de missangas. Não terá sido por vontade eclesiástica, esta apreensão, mas sim pelo olhar da figura que, até ali, me perseguia: o retrato de Salazar. Como é que o homem podia detestar os peitos da etíope se, a seu lado, o Criador crucificado nem pestanejava? Ele era o autor daquela bonita mulher e Salazar estava a pôr o pé na argola celestial. Comecei a embirrar com o tipo e a olhar mais para as miúdas quando, às quintas-feiras, saíamos em passeio pela vila de Mogofores. Oito meses depois expulsaram-me. Lembro-me bem desse dia pelo abraço felicíssimo que meu pai me deu quando me foi buscar. Só não me recordo bem do dia em que ele chorou quando me viu partir para o Seminário. A minha mãe explicou-me que eram lágrimas de saudade. Ora! Como podia ter meu pai saudades minhas se eu ainda ali estava? Desconfio que temia o meu futuro. Salazar começara também assim.
Ao lembrar-me disto tudo hoje, e enquanto ouvia o Ministro da Saúde anunciar o aumento das taxas hospitalares, revoltei-me contra o meu pai, que infelizmente já não está entre nós, por não me ter dado oportunidade de vir a ser 1º ministro como Salazar – mesmo estudando – ter fotos minhas nas salas de aulas de todo o país, poder usar brilhantina ou gel, pôr aquele olhar ameaçador e, principalmente, poder ter autoridade sobre os outros ministros. Principalmente pelo da Saúde.
Mas vá lá! Hoje sou operário, ganho o suficiente para fazer manifestações, onde e quando quiser. Sei ler e escrever, principalmente ler – até a sina na palma da mão – e perceber que, para alem do Ministro da Saúde há outros tão bons como ele. Todos os outros. E perceber também todo o alarido à volta de qualquer multinacional que quer fechar as portas e ir explorar para outro lado. Entender que a culpa não é nossa – dos operários – nem das multinacionais sequer. Se temos os ordenados mais baixos da Europa, se trabalhamos mais e melhor que os outros, porque se queixam as fábricas que a matéria final fica mais cara?
Obrigado ao Dr.Pedro Pereira por me ter explicado. É, disse-me e escreveu ele – que o berbicacho estava no Iva Português. 21%. Nos outros países é 16% no máximo.
Vai um homem hoje condenar uma criança por ela não querer ser operário, ou estudar? Não. Bom é ser Belmiro de Azevedo, Cristiano Ronaldo, José Mourinho; ou Ministro, porque não?
Melhor ainda, desculpem, é ser árbitro de futebol. Pode usar gel, ter o olhar do Salazar, fingir que não vê, ter a fotografia em todos os jornais e nas televisões cujas imagens invadem as nossas casas, receber “algum” por fora e dormir descansado mesmo que tenha ido ao hospital curar uma pedrada na cabeça, atirada por algum adepto menos esclarecido.
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Amanhã vou inscrever o meu filho Rafael no Curso de Árbitros. Não quer ser operário, nem padre, nem estudar…Também não quer ser ministro, embora eu aqui comece a ficar desconfiado: -todas as semanas gasta uma embalagem de gel (com IVA) que eu lhe compro com o subsídio de desemprego. Custa-me pagar o IVA. E ainda mais, sabendo eu que no tempo do Salazar o ditador e fascista, se passava fome e medo e o IVA não existia.
Depois admirem-se que os portugueses estúpidos tenham saudades dele.
O Iva é terrível !
(versão reciclada de "portugal no seu melhor")