A MINHA MAMÃ DALTON

A MINHA MAMÃ DALTON

Desta vez acabei por aceitar o convite. Parecia mal, ao fim de largos anos, nunca ter aparecido a uma festa que prometia. A discoteca – o dono quero dizer – ao enviar-me estas mensagens aliciantes adivinha-me com 20 anos. O que de resto não é descabido: são 20 anos vezes 3.

Penteei o cabelo, perfumei-me com a colónia habitual, treinei um sorriso ao espelho, e francamente achei-me um “pão”. Duro sim, mas “pão. Iria tratar da minha solidão, como se a minha solidão fosse uma doentinha do 5º piso e precisasse de alguém de bata branca com as mãos previamente lavadas. Fui.

Aquilo era mesmo o mundo que eu sempre sonhara. Uma capa de revista com pernas e tudo tomava conta de mim. O seu sorriso, Deus meu, era de anjo, e eu nunca tinha visto um anjo sorrir, mesmo depois de Sócrates ser 1º ministro. Já vi milhares de “anjinhos”a chorar por perderem o poleiro e caírem desamparados em cima de fardos de palha. Nestes casos até reparei que o choro parava instantaneamente ao uníssono de “nada mau, podemos continuar a comer”. Desconfio que a coisa estava já prevista. Como acontece com os políticos. Inauguram salas de chuto nas prisões, salas de convívio com televisão espalmada, salas de luxo para as visitas, as celas são suites, os lavabos custam, por detido, mais do que o Carrilho gastou para fazer có-có no ministério (lembram-se?) e até ginásios bem apetrechados para a boa forma dos presos. Mas estão-se marimbando para as Escolas que estão a cair, ou cheias de humidade, ou onde entra chuva, com muito frio no Inverno e muito calor no Verão. A coisa está bem pensada, muito bem, aliás. Se por acaso um governante der com os burros no “saco azul “não o vão mandar para uma Escola, né?

Falo assim por estar embriagado de peitos nus e pernas ao léu e os tais sorrisos, agora mais que muitos. Que diabo! Não foram os decibéis atirados à minha cabeça por dois ou mais negros caixotes do tamanho das torres gémeas que me puseram neste estado. Nem sequer os 8 whiskys marados que entornei. Nem sequer a conta que não vi. Nem sequer o condutor do 112 que me pegou ao colo e docemente me transportou à urgência. Não me lembro.

Oito dias depois, de cabeça atada e braço ao peito fui para a bicha do posto médico. Fui o 6º a ser atendido já o almoço se aproximava. Mas podia ter sido o 1º, se me apresentasse às 3 h.da manhã. Sabia lá eu! Quando a senhora me perguntou quem era o médico da família respondi-lhe muito envergonhado: -oh minha senhora, na minha família não há nenhum médico, somos todos pescadores. Alem de me chamar parvo, de dizer que eu tinha era cara de bêbedo, que me parecia muito com a Bárbara Guimarães ao contrário (estava a insinuar que eu era feio) e mais uns piropos do género ainda aventou: - grande pancada! Realmente o penso denunciava-me. – Oh meu senhor, estou a perguntar-lhe quem é o seu médico de família! -Ah! Já percebi, respondi-lhe. É o nº. 4260. A senhora corou de raiva. Levantou-se do sofá onde tricotava e sem mais conversa vomitou: - Esse é o número de espera poças… quer dizer que não tem médico de família, “pecebe?” e mais, - estou farta de aturar reformados. Vá para a sala e espere. Esperei. E foi tanto o tempo de espera que o meu filho apareceu muito preocupado, comentando: -ainda falta muito, pai?– Não sei mas dá-me ideia que não. A reformada ao lado olhou para o meu filho e disse: - olhe que vale a pena esperar…este médico é muito bom e muito atencioso, até parece que está no seu consultório particular! Pois !

Ao sair do gabinete, um doente (reformado com certeza) disse raivosamente : - é sempre a mesma porcaria, sofro dos ossos e mandam-me pôr supositórios no traseiro. Vão mas é levar nas taxas moderadoras do Ministro.…E saiu. O altifalante anunciou a minha vez. - Com licença, senhor doutor, pedi de olhos no chão. – Senta-te. Foi quando olhei para o doutor e o reconheci. – Olha o doutor Júlio de Freire…mas…doutor, você não é economista? Um sorriso maroto abriu-se diante de mim. – Pois sou! Mas o que tu fazes aqui? Respondi-lhe que vinha a uma consulta. - Pois é meu amigo, tu é que estás enganado. Isto aqui é a Misericórdia. Não podia ser! Então se eu entrei no posto médico, se o atendimento tinha o estilo dos postos médicos, se…

Preenchi uns papéis que o doutor Júlio me deu e entreguei-os a uma funcionária. De volta recebi um duplicado devidamente carimbado e numerado. Número? 4260. Coincidência! – Vai demorar muito tempo até poderes entrar, há muita gente à espera, muita gente à tua frente, tens que ter paciência, aventou-me o doutor com a secretária ao pescoço.

Aqui para nós: sendo eu Irmão da Santa Casa e sabendo que é com tempo que estas coisas se tratam, tudo o que aqui conto é inventado. Menos o golpe na cabeça a que eu chamo “o meu golpe da misericórdia.”

Pode ser que tenha sorte. Mesmo com os Padres Melícias e Rodrigo como amigos, há que tomar providencias e seguir os trâmites normais, não vá acontecer-me o mesmo que se passou com a minha mãe: com a falta de vagas na Santa Casa e não a podendo ter na garagem onde vivo, obriguei-a a assaltar a loja do Tininho de onde trouxe duzentas cuecas acabando por ir parar às Mónicas. Está com 80 anos, um bocado apanhada da cabeça e satisfeita: - olha filho, disse-me ontem à hora da visita, isto aqui não é nada mau, tenho onde dormir, dão-me de comer, a televisão é das melhores que já vi, a Floribella anda metida com um pobretanas que não percebo, e mais, Tónhojaquim, não perco um único discurso do governo? Ai filho é o meu divertimento. Farto-me de rir todo o dia. A senhora hospedeira até diz que estou maluca. Mas maluca está ela… que nem televisão vê. Ontem fomos à Madeira e estivemos com um senhor com voz pastosa que nos recebeu empunhando uma caneca de poncha. Também bebi um bocadinho. Vês este penso aqui na minha cabeça? Vê tu que me queriam levar para a Misericórdia. Ná… daqui é que eu não saio. Só contigo é que não me importava de sair. Para irmos à tal discoteca.

Vejam bem como está a minha mãe desde que lhe emprestei uns livros do Lucky Luke enquanto aqui na garagem esperava pela resposta da Misericórdia. Vejam bem como está a minha “mamã Dalton” por não ter tido lugar na Misericórdia. A culpa é dela. Aos 60 anos devia ter ido à discoteca e ter tido a sorte que eu tive. Mas nessa altura a Misericórdia não tinha como Provedor o Dr. Júlio Freire, não tinha o Dr. Marcelo, e nem eu morava numa garagem

Há cinco minutos recebi um telefonema da senhora guarda prisional informando-me que minha mãe pede para lhe levar, na próxima visita o livro do Guerra Junqueiro: “A Velhice do Padre Eterno”. Disse que sim.

A minha mãe está, coitada, mesmo passadinha de todo.

kirapintor
Enviado por kirapintor em 15/05/2007
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