RICA VIDA

RICA VIDA …

Nunca me deu para trabalhar. Podia ter sido funcionário público, mas mesmo assim resisti, desculpando-me a recusa só pelo facto de ter horas a cumprir. Entrar às e sair às… E mesmo que não me apresentasse às, ou na semana seguinte; mesmo que o ponto viesse a ser assinado por um colega, seria sempre um compromisso.

Pensei na política mas sujeitava-me a ter encontros até altas horas da noite para tratar da corrupção e dos sacos azuis.

Pensei também frequentar (empregar-me) numa Universidade mas tinha que ser independente e lugar de reitor não é o melhor. Trabalhar ao domingo ainda por cima.

Ofereceram-me um lugar de Gestor… Não se faz nada? Tá bem,tá! E o trabalho que dá no final do mês, a passagem de recibos verdes das empresas “que”, a contagem das horas extraordinárias dos jantares com a boa da secretária e dos tiquês da gasolina, o preenchimento de cartões a agradecer este ou aquele favor, o tempo gasto a pensar no cuidado que se deve ter a falar ao telefone sob escuta?

E o bisbilhotar constante de “informações”? Querer saber se aquele chefe que me faz frente, sempre é engenheiro ou não? Se o outro andou na Independente ou na Pública? É muito trabalho. Tem algum interesse viver assim? Quando era pequenote ouvi muitas vezes o meu padrinho António Joaquim, cabo da guarda republicana a viver no posto, dizer: - “quem trabalha não tem tempo de ganhar dinheiro!” Tinha mais que razão!

Nunca gostei de trabalhar repito, e não vejo que mal possa vir ao mundo(português) pela minha teimosia.

Pergunta-me :- então pá, como é que te governaste ?

Como é que me sustentei até à reforma ?

“Pregava” de taberna em taberna truques de ilusionismo feitos com cartas de jogar. Fazer desaparecer o rei de copas ou tirar a dama de paus das cuecas do Luís do Retiro era canja. Escorriam uns copos, uns carapaus de escabeche, uma ou outra moeda que-amanhã-logo-te-pago, um passou-bem e um forte abraço de - “parabéns grande mestre, como é que tu fazes aquela da caixa cheia de fósforos? Bem se ouvem chocalhar mas quando a abres está vazia?” Os abraços e os apertos de mão foram sempre uma mina. Com as minhas mãozinhas de veludo à volta do pescoço do ignorante em magia, sacava-lhe o fio de ouro; no forte aperto de mão lá vinha o relógio. Nunca desconfiaram de mim. O Quaresma Cigano é que “as pagava!” Quantas vezes o desgraçado foi “agarrado” pela GNR, meu Deus! Era voz corrente que o “gajo” tinha mais jeito para ilusionista que eu: -“é pá Tónho, o sacana do cigano até transformou os fios de ouro em pulseiras e os relógios em faqueiros de prata…vê lá tu ! Ainda por cima aquilo, confessou ele à Guarda, era comprado aos chineses. Nem ouro nem prata. Um alquimista ao contrário!” Os meses que ele passava no Montijo eram para mim meses de férias: nada de abraços nada de passou-bens. O meu “professor” sempre me disse: “ malandro nunca estrilha, muda é de esquema.”

Esta profissão de risco não é obrigada a descontar para a Segurança Social mas ao chegar a esta idade, senti-me com forças e tentei a minha sorte, preenchendo os papéis para a reforma.

O fígado cheio de cruzes, os pulmões de alcatrão derretido, as mãos deformadas pelo uso, a coluna (a coluna está boa, mas um amigo a quem só surripiei um “tirante em ouro” e 20 euros e que se reformou por invalidez, emprestou-me a radiografia dele) premiaram as minhas intenções. Reformaram-me.

O que recebo comparado com o que antigamente ganhava, nem dá para um baralho de cartas. Com esta falta de consideração do Estado Democrático (e rezando a Constituição que todos temos direito a uma velhice condigna), vi-me obrigado a mudar de “esquina”, através de uma cunha. Larguei o “ilusionismo”. Deixei de apertar a mão e de dar abraços e dediquei-me inteiramente ao consumismo. Comprei tudo o que me apetecia.” Como? Comecei por ler os jornais que encontrava no lixo deixado, às terças e sábados, no mercado da Verderena. E a ver televisão. Muita televisão. Quem me arrancava da “Bela e o Mestre”? (A propósito e sem querer ofender: aquelas gajas são mesmo estúpidas ou é guião? Nunca tinha visto tanta perna boa, tanta carinha laroca e tanta cabecinha com merda dentro. Palavra!)

Dizia eu: via televisão o dia inteiro. O que mais me interessava nem sequer eram as notícias, os filmes, a reportagens, as peças de teatro de autores portugueses e estrangeiros, a Floribella, as telenovelas ou o futebol…O que me prendia até à hipnose era a publicidade dos emprestadores de dinheiro…A Cofidis, a Credial, a Maxi-Crédito, a Cetelem, a Credifini, a Sofinloc, etc. ” Peça já, até 10 000 euros”. “ Diga quanto precisa.” “Até 6 000 € ? É para já.” Cofidis, o crédito pelo telefone”. ” Não fazemos perguntas, não é preciso trazer a mãe ou o pai, o padre ou o vizinho, precisa de quanto ? - Telefone, telefone, telefone”.

Foi o que fiz. Telefonei para todos os simpáticos anunciantes e vai daí …em 48 horas a minha conta bancária ficou a abarrotar de euros. Por pouco tempo é verdade. Comecei a comprar, a comprar, a comprar tudo o que na televisão os anúncios “ofereciam”. Máquinas de lavar e barbear, perfumes e automóveis, detergentes e computadores, azeite galo e telemóveis, coca-cola e corpos danone, comida para gatos e champôs, mais umas bugigangas da ideia-casa, um ok-teleseguros e o relógio do Scolari. Ah! E uma viagem a Cancun, onde me encontro neste momento. Esta viagem de férias foi a melhor compra que fiz. Aqui estou, “cheio” de fruta por todos os lados: nas praias, nas ruas, nas lojas, nas esplanadas e até no bungalow. Estou seriamente interessado em ficar por aqui, neste paraíso de paz, pão, amor, muita fruta e liberdade. Como? Ainda não sei mas tenho mesmo que mexer os cordelinhos. Falei com a Carol ( uma “mecinha” muito influente aqui na zona e que se mostra interessada na proposta de casamento que lhe fiz) e a coisa está-se a compor. É que, voltar a Portugal vai-me causar vergonha.

Porque vendi por tuta e meia tudo o que comprei com os euros emprestados, menos o relógio do Scolari da Selecção Nacional, nada tenho aí, para alem dos 303 euros da reforma e as dívidas que de resto nada me preocupam. E tenho um pouco de vergonha, também.

Mas não volto. Fico por aqui.

Portugal é São José e eu, Jesus Cristo. Quero dizer: nem ele é meu pai nem eu sou filho dele. Estamos quites.

Fosga-se !

kirapintor

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Enviado por kirapintor em 12/05/2007
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