LARES ...
LARES DOCES LARES
A semana passada quando acordei tinha 83 anos, mais 23 do que no dia anterior. Mal me consegui levantar. A minha filha Paula veio trazer-me a roupa lavada e, muito estranha perguntou: - desculpe, onde está o meu pai? – Anh? – Sim, o meu pai. Onde está? - Sou eu filha. Sou eu o teu pai. Pareceu-me que ela mudou de côr. Os meus olhos já não são o que eram ontem. – Ái Pai, - gritou – o que te aconteceu?
Não sei se lhe respondi porque quando acordei, dois dias depois, olhei à minha volta e encontrava-me numa casa que desconhecia. A minha filha estava ali, ao pé de mim, de colher em punho a enfiar-me uma papa qualquer pela boca. - Olha pai, sabes, arranjei-te este lar que é muito bonzinho. Já viste lá fora a entrada? É linda. É uma vivenda ! Tem quintal e do outro lado um jardim. Gostas? Sabes, fiz isto porque não te posso ter na minha casa. Trabalho. Das 6 da manhã quando me levanto, até às 8 da noite quando chego. Quem trataria de ti? Não temos dinheiro para pagar a uma pessoa e esta foi a melhor solução! Foi o que se pôde arranjar e, muita sorte tivemos em encontrar esta casa!!!…Foi um achado, pai. Mas quem é que te mandou envelhecer assim de um dia para o outro?
A tua reforma é pequena – mas a senhora, disse carinhosamente que chegava.
Pois , respondi-lhe quando se despediu. Um pouco antes de eu cair da cadeira e fazer um lenho na cabeça. Logo de seguida ouvi uma campainha de porta. Peguei no telemóvel e atendi. –És tu, rapaz ?- Sim sou, quem fala? Pá, sou eu, o Ministro da Segurança Social. Ah. Diz lá! – Estava aqui a preencher o euro milhões e lembrei-me de ti.- Sim? Porquê? Não me respondeu. Ou não o ouvi porque a minha atenção foi virada para a porta. Era a dona do lar. Olhou para mim docemente e com o dedinho dela fez-me cócegas no nariz . – Olá meu queridinho. Meu menino. Estás triste? É só nos primeiros dias…depois passa, vais ver ! E sem mais aquelas levantou as saias e de lá tirou uma forquilha de dentes afiados espetando-a nos meus olhos. Não senti nada. A empregada tinha-me dado 3 comprimidos para o efeito. A seguir pegaram-me ao colo e atiraram-me pela janela. Era um rés-do-chão. Em vez de cair comecei a voar. Passei pelos telhados da Quinta do Torrão, por cima da auto-estrada, choquei com uma gaivota tresmalhada, vi Alhos Vedros, a bomba da gasolina, as obras do Modelo, um ciclista, a Cleópatra e até parei um pouco (sempre no ar) para dar atenção a uma mulatinha muito gira que eu conhecera dias antes. Ela olhou para mim mas não me reconheceu. Aliás devo tê-la assustado. Um velho a voar não se vê todos os dias. Só se tiver muita atenção e morar perto duma arrecadação de velhos.
Aterrei na Fonte da Prata, num 2º andar, onde estavam já os meus companheiros do lar. Bateram-me palmas, como fizeram ao Figo em Alvalade e encostaram-me à parede, cercando-me. Uns tiraram-me as sandálias de quarto, outros a camisa, outro as calças. Uma outra pessoa vestida de negro tirou-me as cuecas sujas e enfiou-me uma fralda grande como nunca tinha visto na minha vida. Aquilo deve ter sido inventado há pouco tempo pela Ana Salazar americana para uso dos astronautas. Na verdade era o que eu merecia: tinha vindo do ar…Dez refeições depois estava mais magro 20 kilos. E devia estar irreconhecível porque a minha Paula ao olhar para mim perguntou-me: então vizinho o meu pai está por aí? – Sou eu, filha.
Já sei, pai. Vi logo que eras tu. Estava só a brincar. – O que é feito da tua placa? onde estão os teus dentes? Essa roupa é a mesma de há 4 dias atrás. Estás todo sujo…. É ranho ou arroz? Palavra que não percebi nada do que ela estava para ali a dizer. Depois discutiu não sei com quem. Pareceu-se ser com a televisão que estava sempre aos berros talvez porque esse aparelho só dava mau tempo… estava sempre a mostrar chuva!
Quando me colocaram a placa pareceu-me ter um autocarro na boca. E o autocarro caiu ao chão, juntamente com os óculos. Um dos meus companheiros de arrecadação, que anda de cadeira de rodas olhou para mim e disse-me – oh ti Chica, você veio parar aqui e está lixada. Se não conta à sua filha o que se passa, morre você e morremos todos… mais depressa que os americanos das torres gémeas…
É claro que o homem está maluco. Está mais maluco que a dona do lar está rica.
Não posso contar mais nada. A esta hora ,o Dr. Mário Durval pode aparecer por aí - se alguém já lhe denunciou esta situação - e fechar esta merda. Para alem de, a senhora dona da casa, ficar sem os ordenados que nós lhe pagamos. E, sinceramente, eu tenho pena dela. Muita pena mesmo… e ficaria com saudades daquele dedinho a fazer-me cócegas no nariz e das suas palavrinhas de “meu queridinho”, “meu menino”,etc. Com esta idade quem é que me vai tratar assim? Se não percebem isto… hão-de perceber um dia quando tiverem a minha idade: a idade do lixo.