A SALVAÇÃO DE SATANÁS

Quem vive de combater um inimigo luta para que ele não morra.

(Nietzsche)

PRÓLOGO

I

Descia o Diabo a estrada

De Roma a Jerusalém

Montado num jegue preto

Vinha de longe, do além,

Deixando em sua rabeira

Muita treva e poeira

A quem atrás sempre vem.

II

Com a cara de desdém

Achava-se o rei do mundo

Que ele sempre percorre

Muito elegante ou imundo

Aprontando alguma farsa,

Porque sempre se disfarça

Em nobre ou vagabundo.

III

Inteligente e profundo

Sua maior tentação

É passar despercebido

Para ganhar o cristão

Ou qualquer desavisado,

Crente ou ateu declarado

Professe ou não religião.

IV

Satã é um espertalhão

No seu Império do Mal

Negar a sua existência

É grande engano fatal,

Pois que tendo indiferença

Por esta ou aquela crença

O seu reino é Universal.

V

Meditando tal e qual

Na sua via-sacra luzente,

Lúcifer pregava a espora

No jumento cruelmente

Porque naquela corrida

Disputava a morte e a vida

Do culpado ou inocente

VI

Porém eis que de repente

Ele ouviu cantar o galo,

Pedro negando a Jesus

Recordou com forte abalo,

Gritou dando um gemido

E com seu peito ferido

Caiu dentro de um valo.

VII

São Jorge no seu cavalo,

Guerreiro à Lua cativo,

Do céu lançou sua espada

Que fez curva e foi um crivo

No coração do Daninho,

Este à margem do caminho

Ficou meio morto-vivo.

O PASTOR PAULO

I

Depois de estudar o Livro

Que narra a grande peleja

Do Bem contra o Mal,

Ninguém o inferno deseja,

Sonha o céu das aventuras,

Dá glória a Deus nas alturas

Na Terra Bendito o seja.

II

Um Pastor de certa Igreja,

Há muitos anos atrás,

Declarou guerra ferrenha

Jurando ser pertinaz

No combate ao Inimigo

Para expulsá-lo do abrigo

Que no infeliz ele faz.

III

Sabe-se que Satanás

Nunca dorme e tenta tanto

Que hoje leva ao Inferno

Até quem ontem foi santo,

Diz Santo Agostinho a nós

Que o Diabo é um cão feroz,

Mas amarrado num canto.

IV

Não devemos, entretanto,

Aproximarmos do Cão

Porque muito embora preso

Tem Ele um raio de ação

E quem chega perto dele

Perde logo para ele

Sua alma e seu coração.

V

Bem por isso a Religião

Ao Diabo declara guerra,

Tanto que seu nome infame

Pelos confins desta Terra

É bastante propagado

Sem ser jamais apagado

Por quem o teme e se ferra.

VI

Pastor Paulo que não erra,

Porquanto age em segredo

Até intitulou-se bispo,

Pois de Satã não tem medo

Programou para a família

As três noites de vigília

No alto de um rochedo.

VII

Saiu o bispo mais cedo

Divulgando a campanha,

Era um novo show da fé

No alto duma montanha

Onde haveria curas

E em noites tão escuras

Faria Cristo uma façanha.

VIII

Uma decepção tamanha

Teve o bispo de amargar,

Quando à beira do caminho

Viu um sujeito a sangrar,

Porquanto estava ferido

E o seu choro e gemido

Fê-lo na estrada parar.

IX

Não precisa madrugar

Para encontrar o Diabo,

Basta proferir seu nome

Que logo aparece o rabo,

Mas o bispo no seu zelo

Pensou: “Se não socorrê-lo

A morte vai lhe dar cabo”.

XI

“Minha missão não acabo

Se não tiver lealdade

O meu rebanho me espera

Sem tempo pra caridade,

Meu dever é prosseguir

Até todo mundo ouvir

A palavra da Verdade”.

XII

Gritou na sua humildade

O pobre Diabo indefeso:

“Socorre-me missionário

E liberta mais um preso,

Tira-me desses escombros

Carrega-me em teus ombros

Que serei um leve peso”.

XIII

“Tu não ficarás ileso

Sem salvares minha vida,

Já que o Anjo do Senhor

Causou-me séria ferida

Com sua espada de fogo,

Mas não estou fora do jogo

Ganhemos esta partida.”

XIV

Voltou o bispo em seguida

Com ares caritativos,

Pois ouviu falar em ganhos

Pensando nos donativos:

“Quem és tu, pergunto eu,

Por mim o Cristo morreu

E estou salvo entre os vivos”.

XV

“Sou Satã entre os cativos

Tu és primeiro ministro”,

Disse Lúcifer ferido

Para o espantado bispo...

“Tua Igreja só prospera,

Pois que ela me considera

Maior do que Jesus Cristo”.

XVI

“Deus me livre ouvindo isto

Morra à míngua Satanás,

Não terei mais tentação

Gozarei de santa paz,

Deixo-te aí na sarjeta

Mendigando uma gorjeta

Pra quem caridade faz.”

XVII

Gritou o Diabo: “Volta atrás

Tenho contigo um negócio

E tu sabes que este mundo

Jamais progride no ócio,

Todo crente dá esmola

Pondo moedas na sacola

Só porque eu sou teu sócio”.

XVIII

“Salvar Satanás não posso,

Pois que é contrário à fé,

Eu desejo é que tu morras”

Disse o bispo ali de pé

E foi virando as costas,

Mas esperando propostas

Para algum jogo ou café.

XIX

Satã não arredou pé

E gemeu estremecido:

“Vou morrer abandonado

Sem ser mesmo socorrido

Por quem prega a verdade,

Mas por não ter caridade

Deixa-me aqui desvalido.”

XX

O bispo mui comovido

Voltou-se e o inquiriu:

“O que eu ganho ao curar

Alguém que ninguém não viu?”

Disse o Diabo: “Me perdoe

O meu nome sempre foi

Mais que o de Deus se ouviu.”

XXI

Falou o bispo e sorriu:

“Jamais eu pensara nisto,

De fato na minha igreja

Não se fala muito em Cristo,

Pois Ele não incomoda,

Mas o Diabo está na moda

É um maldito benquisto”.

XXII

Retrucou Satã: “Insisto

Que tu tens só a perder,

Ninguém irá à tua igreja

Se me deixares morrer,

O povo perderá o medo

E mais tarde ou mais cedo

Vai o bispo empobrecer.”

EPÍLOGO

I

Num belo entardecer,

Aquele bispo afamado

Foi encontrar seu rebanho

Na montanha acampado,

As perguntas sem respostas

Levava nas suas costas

Num fardo muito pesado.

II

Desfaleceu mui cansado

E se ajoelhou no chão,

Mas foi logo amparado

Por um antigo Ancião

Prestativo e sorridente,

Que aquela pobre gente

Nunca vira até então.

III

Logo após a comunhão

Achou-se eleito e escolhido,

Pastor Paulo ungido bispo

Pregou ao povo oprimido,

Tão espoliado e cativo:

“O Diabo está vivo e ativo

Cá neste mundo perdido.”

IV

Houve clamor e alarido

E o povo com fé e ardor

Entoou “CASTELO FORTE”

O hino do reformador,

Muita gente desmaiava,

Ali um Poder operava

Curando os males da dor.

V

Com todo afinco e fervor

Obreiros de prontidão

Amparavam os caídos

Prostrados em convulsão,

Bradando: “Sai Satanás,

Deixa nosso irmão em paz

Pai do engano e confusão!”

VI

Segurando um sacolão,

Foi-se o bispo milagreiro,

Pois já tinha compromisso

Lá longe no estrangeiro...

Voou em missão-viagem

Carregando na bagagem

Um malote de dinheiro.

VII

Até quando o cordeiro,

Manso em seu itinerário,

Será banquete do lobo

Só sabe o mercenário

Que, fingindo ser pastor,

Deixa o aprisco ao sabor

De um voraz Adversário.