Anjo Baldio

Caminhava com os pés de moleque

na predestinada poeira espessa,

o moleque de pés de fora.

Era carne, sonho e carvão.

Riscava com o dedo o chão,

amarelinha, céu e inferno.

Deixara as asas de molho no açude,

nada sabia sobre auréolas, alaúde,

nem sobre flutuar sobrenaturalmente,

pulava sim, naturalmente como um saci

a desbravar as agruras do purgatório,

anjo baldio esse Miguel Tenório.

Dos arames das cercas,

inspirou-se a natureza para os cabelos,

verdadeiro novelo lanoso

onde os mafagafos fariam um ninho,

mas o que seriam os mafagafos

senão passarinhos de seu próprio folguedo.

Cedo é que pulava da cama

com os olhos esgazeados de sarapantar.

Punha a choça toda inquieta

com a melodia incompleta e irritante do assobio

e não havia quem desse fim a tal tormento,

nem chinela alcançava o talento para correr.

Ria-se todo do esforço da genitora

para conter-lhe o desatino.

Chispava, entrincheirava-se nas pernas das vizinhas,

que como pombas, arrulhavam as picuinhas do dia.

Saia chutando pedra, lata e tudo que mais houvesse,

eta anjo baldio que não entristece esse Miguel Tenório...

Ia o infante ao galinheiro sargentar os cacarejos,

galho seco na mão, tentava reger o coro, sem sucesso.

Como vingança, o sequestro dos ovos era crime confesso

pela insolência das matutas penosas.

Inventava também umas receitas com o fruto do roubo,

uma mistura de água, terra, claras e gemas - impalatável.

Se é que algum dia tratou de dar paz às professoras

é porque estava doente, de pálpebra caída, morrente.

Fazia dó ver o estado anêmico do zás-trás gabiru

que sempre faiscou diabruras nos sertões de mandacaru.

Agora, era a vez do jegue rir-se todo dele,

que ia de passo curto e crista baixa para casa.

Passou novamente pelo açude,

onde o par de asas haveria de lhe valer,

não sabia o quanto custaria esquecê-las encharcadas

e anjos de asas molhadas não vão a lugar algum.

Tirou do bornal um terço e pendurou no pescoço,

orou, por minutos implorou pela graça de voar.

Veio sim forte sopro levantando as terras vermelhas

e do meio do agreste, um cabra da peste apareceu.

Virgem Maria, credo-em-cruz, valei-me nosso senhor Jesus!

Era estranho de dar nó e botava fogo pelas ventas,

tinha chifre, garfo e mascava um punhado de pimentas,

bateu no peito e gritou: - Meu nome é Zebedeu a seu dispor.

O moleque estremeceu, correu que só,

daquele cabra estranho de dar nó,

nem sequer percebeu o levantar de vôo

e decolou às pressas, sem enjoo.

Voou com as graúnas, pediu reforços, mirou.

A esquadra armada aliviou os intestinos, acertou!

Esbravejava o cabra estranho de dar nó coberto de adubo,

em ameaça dizia: - Espere moleque se não te derrubo!

Do meio dos penduricalhos sacou o berrante e tocou,

do sovaco dos céus, estrondosa trovoada fulminou a audição.

Mais seguro então, achou o moleque, preparar a aterrissagem,

desceu o trem-de-pouso e os pés tocaram a pastagem seca.

Agora, já avistava sua casa e a mãe de porrete na mão,

esperava ávida pelo acerto de contas com certo calango fujão.

Virgem Maria, credo-em-cruz, valei-me nosso senhor Jesus!

O que haveria de fazer Miguel diante do quiproquó?

No meio do furdunço, vinha lá o jagunço Lampião

e os bandoleiros do cangaço em trote, tiro, festival de balaço!

Com o sururu armado, viu-se aliviado o moleque,

haveria de fugir faceiro por entre as palhas do coqueiro,

mas os bandoleiros vieram ter com certa raposa de galinheiro,

no bradar do cangaceiro, Miguel empalideceu, mais uma vez correu

para salvar a pele, tal qual a lebre que saltarica pelos prados

nos momentos ababelados de luta pela sobrevivência.

Na querença de salvação, verteu da boca a oração:

- Nossa Senhora da Penha, que me venha a tua proteção,

perdoa-me as travessuras do viver onde as faço sem querer,

não me negue o regaço providente santa mãe de misericórdia.

E veio ela, vaporosa em concórdia com seu manto esvoaçante,

trazia nas mãos, pesado livro e balança radiante.

Por um momento, engoliu seco

e contemplou com os olhos a aparição redentora,

mal sabia que a doutora abraçava o dossiê de seus agravos,

dissera ela: - Miguel querido, que fazes perdido por aqui?

Ele, trêmulo de medo e culpa respondeu:

- Fujo de Lampião, de minha mãe e Zebedeu!

Abrindo o livro, Nossa Senhora foi dizendo:

- Vejo aqui os seus delitos e a ingenuidade de intentos,

tome cá seus documentos para o céu.

Desenrolou-se então vasta tira de papel

segurada por um anjo xexelento e banguela,

vestido em desengonçada camisola amarela.

Tivera ele escrito todos os pecados do moleque em prosa

pondo-se a tramelar em desastrosa leitura.

Irritado por tamanha usura nos escritos,

Miguel usou o estilingue e deu-lhe uma pedrada nos gambitos.

A boca murcha enrugou e o anjo soltou um cântico doloroso,

mesmo assim, acrescentou mais uns versos de pecado doloso.

Nossa Senhora interveio:

- Miguel, não poderei lançar meu esteio se não te desculpares,

pelos ares não irás em discórdia com teu irmão,

peça desculpas agora a Gabriel da Anunciação!

O moleque contrariado, deu ao anjo desdentado um pé-de-moleque

mesmo sabendo de sua particular deficiência.

Pensou a virgem: eta anjo baldio que não toma tenência!

Uma trombeta desafinada e aguda arruinou a paz dos arredores.

Nas canções: triângulos e sanfonas flertando em escalas menores.

No coro: anjas choronas em decoro lírico, verdadeira celeuma.

A madona da penha fitava o trombeteiro, meneando a cabeça

pensava ensimesmada: eta anjo boêmio esse Rafael Artêmio.

Rafael volteava no ar a assoprar o instrumento,

espargindo singular alumbramento caatinga afora.

As chinelas se arrastaram sem demora em vigorosa dança.

Miguel refestelou-se na bonança das distrações

serpenteando entre os animados casais, vendo o fio da liberdade

ao perceber toda aquela gente em milagrosa festividade.

Mas no meio da fuzarca lhe pegaram o cangote,

era Zebedeu, que acabara de dançar um xote com a virgem.

Estrondoso som se fez nos céus, irrompeu uma arca,

magnífica barca flutuante vinda sabe-se lá de onde.

Da proa, acenava um monsenhor conde de brancas barbas.

Ai Deus eu é! E não é que era mesmo a arca do velho Noé?

A grande nave se movia em trepidantes sacolejos,

de lá, veio à maneira de um tiro o papagaio aos berros,

trazendo no bico uma mensagem de realejo que dizia:

"Não é nosso dia, preparem a água fria do lago para pousarmos".

O moleque tirou do bolso, um lápis e rabiscou no verso:

"Tem água aqui não, monsenhor tá no meio do sertão".

O papagaio retornou veloz e de posse do bilhete

Noé atarantou-se, no entanto lembrou-se de seu cajado bento,

o velho o apontou para cima entoando sentido lamento,

lançando então o bordão que se fincou nas terras secas.

Volumoso lago de peixes saltadores borbulhou do chão

para aparar a cadente e fumarenta embarcação.

Os recém despencados, flutuavam sob olhares pasmos.

A miragem das águas era mais absurda que a barca atracada,

uma longa ponte de madeira foi baixada para o desembarque

e Noé fora aclamado como milagreiro nas terras do charque.

Puseram-se em fila os devotos para beijar-lhe as mãos,

mas vinha paulatino o venerando, como os velhos anciãos.

Canoras senhorinhas, a plenos pulmões faziam reverência,

mas rugiam os leões no primor de sabotagem, em continência.

Descia a escolta ao monsenhor conde sei lá de onde,

deslizava sobre o tablado acalmando a exaltação dos romeiros.

Em alguns passos, os pés do beato tocaram de fato o duro solo

e uma multidão ajoelhada orava incessante, emocionada.

Miguel, que rezava ao lado de Zebedeu, deu um pulo e gritou:

- Monsenhor, seja caridoso e me livre das garras do tinhoso.

Correndo o mais que pode, atarracou-se à túnica do velho,

levantou-se então o cabra estranho de dar nó, fumegante.

Tocando seu berrante retorcido, outro estampido se fez ouvir,

incendiário solo de trombeta pôs o demo a fazer careta.

O anjo boêmio se divertia ao ver a agonia do cramulhão.

O anjo banguela soltou a tramela ao ler pesaroso sermão.

O anjo baldio tornou o assobio incompleto e irritante.

Não obstante a resistência, o demo pedia ao velho por salvação.

Noé prorrompeu em riso, entrecortados ditos correram-lhe as barbas:

- Ai flores, ai flores do verde ramo, o Belzebú tá variando?

A trindade angélica comemorava a conversão do carcará,

quiçá, tamanha galhofa fizera farofa em seus pensamentos.

Viera a virgem presentear-lhe com um cordel de fitas

e as benzedeiras, sacudiam galhos de arruda em sua fronte.

Desfeito o nó de sua estranhice, tornara-se ele um cabra da peste

legítimo em crendice, verso e ritmo que seguiu noite adentro.

Em dado momento, o relinchar do jumento anunciou Lampião.

Tinha os olhos rajados pelo vermelho dos vasos,

parolava os atrasos de Miguel aos quatro cantos:

- Devolva os meus ovos gabiru, antes que vire comida de urubu.

Veio em seu socorro, o matusquela anjo banguela.

Um dedo ao céu e outro à terra, infalível, essa nunca erra!

O rei do cangaço foi assolado por chuva atípica.

Os ovos cadentes alvejaram-lhe a moleira de forma crítica.

Saiu desorientado a correr, nunca mais deu de aparecer.

O anjo banguela, tramelava o feito incessantemente,

Miguel, moleque sem jeito, mais irritado que grato,

acertou-lhe nova pedrada de abrir hiato!

Regia o contrato que o irmão haveria de perdoar duas vezes

e Miguel Tenório, finório que só, beirava o limite.

Zebedeu, graduado no assunto, arrematou o palpite:

- Acostuma-se ao fogo que te espera!

Sentira o moleque então a veracidade da quimera

amornar a sola dos pés, como sinal de efetivo revés.

O sapateado rendeu riso e aplauso,

tamanho floreado do passo desesperado.

Ria também a trombeta do anjo boêmio.

Deu na veneta do moleque não seguir as recomendações,

ia por dentro uma quentura e na brecha, veio à tona a pecha.

A pedra vôou e se alojou no cano do instrumento.

No momento seguinte, o assoalho árido tremeu,

gemeu o chão com o corte da cesariana

e da vala saiu serpente quilométrica.

Uma centúria profética dizia que Asmodeu

a segurava nas profundezas para capturar os faltosos.

E agora Miguel? A festa acabou e o socorro não veio!

Em visível aperreio, o moleque ajoelhou-se prostrado,

bem sabido é diz o ditado: quem apronta, paga a conta!

E disse-redisse o disco riscado da consciência.

Checou a competência das boas pernas de fugir,

mas vinha a zunir como bicho voador tal maldita serpente.

Pôs-se rendido o gabiru como autêntico delinquente.

Queria que a chuva caísse, queria que o mundo acabasse

e a injúria estampada na face sumisse, passasse.

No entanto, balançou o xique-xique num "xaquaio" estranho

e de lá saiu Morato, uma cobra com olho de gato, deste tamanho!

Estava a procura da filha da princesa Luiza desde o século XX.

O moleque telepata antecipou-se e disse: - Eu a conheço!

A escamosa sibilou de alegria,

esposar-lhe-ia tão logo a encontrasse.

Miguel cantarolou de súbito um repente:

- Diga minha amiga cobra à minha amiga serpente

o que fazes nessas terras em meio a toda essa gente?

- Procuro pela filha da princesssa Luiza, de pai Sssirineu!

A serpente: - Como sssabeisss de minha mãe? Meu pai é Asssmodeu!

E Morato: - Issso! Pedirei sssua filha em compromissso.

A serpente: - Poisss então, qual ssserá o dote?

E Morato: - Em ouro, centímetros ou linhagem, essscolha o mote!

A serpente: - Não ssse faça de rogada, ouro é sssempre ouro!

E Morato: - Tenho arco-írisss, pague para ver. Arô Boboi Oxumarê!

Morato era a cobra segurada pelo orixá o qual saudara

lá do alto do Olorum, a serpente espantada fez até ligeiro pum.

Pensou na glória, no luxo, sentiu um repuxo, tontura.

Morar na altura era sonho antigo, mas teria o pai como inimigo.

A serpente recolheu-se para dentro da vala e pegou a mala,

nela, todo o enxoval, deu tchau ao patriarca e se foi.

Mas a cobra fazia questão de ter com Asmodeu,

desceu pela fenda no chão levando seu quinhão em oferenda.

De seu trono, o príncipe salivava, ansiava pela prenda.

Morato aportou-se ao acalorado recinto em chamas.

Viu a princesa Luiza e as duzentas amas que a abanavam,

muitas almas bronzeadas em férias, desnudas, peladas!

Fechou os olhos, rastejou um tanto mais,

foi anunciada com pompa por um rapaz de físico apolíneo.

Defronte ao príncipe, lançou olhar retílineo e indagou:

- Venho do reino de Orumilá, da parte de Oxumarê, sssaravá!

Asmodeu estampou sorriso perene e fez lá sua mise-en-scène:

- Salve toda a sua banda, vens de onde mesmo, Aruanda?

Morato, ao fino modo, meneou a cabeça negativamente,

queria tratar do assunto concernente ao matrimônio.

O príncipe afoito deu oito voltas em torno de si,

pensava sobre fundos de investimento, lucratividade.

A cobra, em verdade, leu-lhe os pensamentos

e fez chover sortimentos em ouro, tesouro em anseios!

Transbordara o contento no principado de calores.

De amores caíra Asmodeu pela cobra,

Morato haveria de esposar sua filha Luiza.

Miguel, que espiava tudo pela fenda alegrou-se,

o cupido anjo baldio safou-se da captura,

não obstante gastura que teve ao pensar no castigo.

Despediu-se da alta temperatura a cobra esbaforida

e recolheu-se ao sertão toda feliz da vida,

faria seresta, festa enormemente florida.

A serpente já com vestes de nubente aguardava.

Nossa Senhora improvisava lúdico altar,

mas quem haveria de celebrar a missa? Ai Deus eu é, Noé!

O velho vestiu-se de negra batina e convocou coristas.

Vieram os sopranistas mutum-cavalo e zabelê,

o tenor gavião-pombo-grande e a contralto maria-leque.

Em bom tom, ouviu-se marcha nupcial divinamente gorjeada.

A secura do chão ficou atapetada das brancas pétalas

derrubadas pelos orixás padrinhos Xangô e Iemanjá.

Levantara do lago, um arco-íris arqueando devagar,

era caminho de chegar ao castelo de Xangô.

Haveriam os noivos de subir para lá habitar,

mas um ronco, um ronco de motor os assustou.

A barca avariada funcionou de súbito

e Noé comemorou efusivo a saúde da embarcação

Dizia: - É um milagre, é a nossa salvação!

E a oração tomou conta do lugar.

Logo após, chamou seus tripulantes,

antes, contou todos: bichos, santos e os anjos.

Refez as contas e os desarranjos numéricos,

mas dois anjos não estavam a bordo.

Nossa Senhora volitou depressa as redondezas

era preciso levar não só dois, mas três embora.

Zebedeu riu de canto e tocou seu berrante.

Num instante a trovoada remexeu as terras

e os buscou pelo susto, não precisou muito custo.

No galinheiro, siricutico geral.

Eis que os tais surgiram do vendaval de penas

e a Madona da Penha foi logo dizendo:

- Precisamos ir, nossa barca vai partir.

O marejar dos olhos foi imediato

pelo ultimato desferido contra eles.

Um silêncio doía os corações.

Nossa senhora notava-lhes a tristeza.

Vendo a mãe ao longe, Miguel acenou

e ela pelejou um tanto para chegar.

De nada entendeu aquele chororô,

o moleque dependurou-se à barra da chita

e pediu pelos irmãos alados.

Calados, ouviram o ralhar de Dona Zita:

- Gabriel, Rafael... que coisa é essa de asa?

Voltem já para casa e tirem essa roupa!

A Madona da Penha viu nos anjos, meninos.

Franzinos meninos de sonhos tão altos

e céus baixos a cada amanhecer.

Beijou-lhes a testa, deu-lhes a benção.

Dona Zita se foi margeada pela prole.

Sentiu água mole matar a sede do rosto,

Tratou de ocupar-se no banho dos meninos.

Pôs os uniformes da escola na cama

e os preparou para mais uma semana.

Com a distração materna

espremeram-se os moleques diante da janela

para ver a barca do monsenhor conde partir.

Ia ela pelo arco-íris a subir, subir.

Estampas de olhos, mãos e saudades

nas verdades escritas por eles.

Caminhavam com os pés de moleque

na predestinada poeira espessa,

os moleques de pés de fora.

Eram baldios, banguelas e boêmios.

Riscavam com o dedo o chão,

amarelinha, céu e inferno.

Felix Ventura
Enviado por Felix Ventura em 22/11/2013
Código do texto: T4581795
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.