DOIS SAPOS E DUAS VERDADES
I
Feliz é quem tem cabeça
Não só pra botar chapéu
E sabe que há mais coisas
Sobre a Terra e sob o Céu,
Mais que a vã Filosofia
Ou a Ciência que alumia
A ignorância com véu.
II
Quem vive vagando ao léu
Caminha na viela ou via
E quem busca a Verdade
Muitas vezes se extravia,
Porém nunca se engana,
Com a Verdade se irmana
No altar da sabedoria.
III
Num verde vale havia
Um velho poço profundo
Lá onde um sapo nasceu
E cresceu só e sujismundo,
Na fossa estava sozinho
No seu existir comezinho
Nada sabendo do mundo.
IV
No seu lamaçal imundo
Obtinha o que queria,
Pousado sobre uma pedra
Só tinha paz e alegria,
De insetos se alimentava
E nada mais desejava,
Comia, bebia e dormia.
V
O seu mundo consistia
Num espaço diminuto:
Um poço com pouca água
E o negro granito bruto
Era tudo o que ele tinha
E nada mais lhe convinha
Naquele parco reduto.
VI
Pouco ou nada é absoluto,
Tampouco a paz é eterna,
Se a sorte erra o passo
O azar passa-lhe a perna;
Todo um sistema ruiu
Quando outro sapo caiu
De cabeça na cisterna.
VII
Foi tal como na caverna,
Como as sombras de Platão
Ilustrando a realidade
Na estampa do paredão,
Onde enxerga o de costas
E se engana nas apostas
Porque só crê na ilusão.
VIII
Nosso sapo de plantão
Assustou-se e foi safo,
Pois o estranho é temido
Até mesmo por seu bafo:
Aquele que se aproxima
Sempre lisonjeia e mima
E depois desce o sarrafo.
IX
O sapo engoliu o abafo
E se postou na defesa,
Mirando o outro anfíbio
Que o visitou de surpresa;
Fez-se silêncio no poço
De águas turvas, um fosso
De limitada estreiteza.
X
Mas em fim veio a proeza
Duma pergunta inicial:
“Quem é você donde vem,
Que quer de mim, afinal?
Sou o dono deste poço
Aqui vivo desde moço
Longe do bem e do mal.
XI
“Eu jamais tive um rival,
A água é o meu espelho
E nela eu me contemplo
Sem nunca ficar vermelho,
E eis que aqui você vem
De lugar algum do além,
Sem sequer dobrar o joelho.
XII
“Com você eu me aparelho
Pois entendo, sobretudo,
De filosofia e ciência,
O meu preferido estudo
Que aprendi comigo mesmo
No meu circular a esmo
Neste poço que é meu tudo.
XIII
“Eu só sei que sou sortudo,
Mas você, o que me diz?
Só a verdade eu lhe digo
E em que me contradiz,
Sendo um sapo como eu
Que me achando se perdeu
Diante do próprio nariz?”
XIV
Disse o outro: “Sou aprendiz
Que saiu e está chegando,
Sou um sapo peregrino
Que passa a vida pulando,
Sem saber que nada sabe
E a verdade que me cabe
É o caminhar perguntando.
XV
“De início vou declarando
O que está comprovado:
A nossa Terra é redonda
E o erro é ser quadrado;
Sou de longínquos lugares,
Praias, oceanos e mares,
De lá venho deportado.
XVI
“Se aqui caí despencado
Foi por dar um pulo falho,
Mas me vejo no caminho
Sem me perder no atalho,
Venho com fé e humildade
Para encontrar a verdade,
Pois é este meu trabalho.
XVII
“Nossa vida é um baralho
E as cartas estão na mesa
No caso esta fria pedra
De grossa crosta e dureza,
Que separa o bate papo
Dum sapo com outro sapo
Entre a dúvida e a certeza.
XVIII
“Este poço de estreiteza
Não passa de uma prisão
Para quem já nasce livre
Como eu e o meu irmão,
Porque não há nada pior
Do que o grilhão maior
Da mente e do coração.
XIX
“Eu me criei na amplidão
De vastas margens dum rio,
Nadando cheguei ao mar
Um lago imenso e bravio,
Vi o céu coberto de estrelas
E eu daqui posso revê-las
Num brilho pálido e frio.
XX
“Ignorante eu me guio
Num caminho iluminado
À procura da Verdade
Neste mundo atrasado,
Onde o Sol ilumina o dia,
E à noite a Lua alumia
O Céu infinito estrelado.”
XXI
Ouvindo atento e calado,
Cabisbaixo e pensativo,
Falou o sapo anfitrião:
“Sou solitário e aqui vivo
Sem de lugar nenhum vir,
Não tenho pra onde ir,
Mas sou um feliz cativo.
XXII
“Com seu papo discursivo
Intimida e me amedronta
E ao questionar minha fé,
Sua ousadia me afronta,
Porém sem veracidade,
Já que acerca da verdade,
Conheço-a ponta a ponta.
XXIII
“Pelo que você me conta
O seu mundo é infinito,
Só que eu sei logicamente
Que o espaço é restrito;
Se este é grande para mim,
Neste seu mundo sem fim
Juro que eu não acredito.
XXIV
“Seu lar imenso é um mito,
Nada existe além dum poço
Como este em que estamos,
Pelo qual dou meu pescoço
E entrego o meu coração,
Assim se encerra a questão
Sem mais porfia e alvoroço.”
XXV
Disse o outro sapo: “Eu ouço
Seu discurso estarrecido,
Pois o mundo é bem maior
Do que um poço reduzido,
Tem praias, rios, montanhas
E outras belezas tamanhas,
O irmão sapo está iludido!
XXVI
“Não sou sapo convencido
É livre o meu pensamento
Que vai além deste poço,
Um estreito confinamento
Da abrangente realidade...
Mas no embate da verdade
Aprendo a cada momento.”
XXVII
Eu, poeta, só acrescento
Em prol da sabedoria:
Dar-me-ei por satisfeito
Se agradar esta poesia,
Mas frustrado o leitor deixo
Por não saber do desfecho
Desta incansável porfia.
XXVIII
Quando um batráquio dizia:
"Há todo um mundo lá fora,
O outro anfíbio retrucava:
"Só existe o aqui e agora
E nada além deste poço
Aconchegante, um colosso,
Sem crepúsculo e aurora".
XXIX
Só posso afirmar por ora,
Conforme a inspiração:
Nunca se soube jamais
Quem ganhou a discussão
Entre aqueles dois sapos,
Se acaso houve sopapos
Ou mesmo um pescoção.
XXX
Disso se aprende a lição,
Tal qual se ouve dizer:
Mesmo sabendo bastante,
Busca o sábio mais saber,
O ignorante, contudo,
Achando que sabe tudo
Nada mais quer aprender.