Caimbé de Natal - O Auto de Macunaima
Arcanjo Passarão:
Bem-vindos aqui todos vós
Que trazem no rosto esperança
No coração força e luta
Na alma perseverança
Trago-vos, pois boas novas:
- O nascer de uma criança!
Talvez essa história esteja
Viva em vossa consciência
Como a salvação do mundo
Pela infantil inocência
Mas não se engane com a outra
Que isso é mera coincidência
E o que haverá de importante
No nascer desse menino
Que como tantos no Norte
É filho de nordestino
E nascerá sem poder
Pra mudar nosso destino?
O questionamento é breve
Pois o mundo todo sabe
Que a sua mensagem toca
E isso é pura verdade
Todos vossos corações
Homens de boa vontade
A nossa história começa
Lá pras bandas do sertão
Podendo ser Paraíba
Pernambuco ou Maranhão
Qualquer canto do Nordeste
Ou em qualquer coração
Com a vida de um casal
Sofrendo necessidade
Uma mulher companheira
Beirando a maternidade
E um homem trabalhador
Em busca de mais verdade
Vivendo em situação
Por muitos bem conhecida
Morando em desilusão
Na terra seca e sofrida
Vejamos pois essa história
Esse decidir de vida
A PARTIDA
José:
Vida malograda vida
Dela o que posso esperar?
Mais uma boca chegando
É mais um pra sustentar
Chão sofrido, esturricado
Sem ter nem como plantar
Maria:
Pois homem pare com isso
Só ouço reclamação
De nada vale a lamúria
Se não existe oração
Em vez de se lamentar
Abre a Deus teu coração
José:
Você sabe que reclamo
Sem perder minha razão
Sou homem trabalhador
Basta olhar pras minhas mãos
Eu só queria um roçado
Pra plantar milho e feijão
Maria:
Semente é sempre semente
Nasce onde se semear
Se a terra aqui já tem dono
Outro chão vamos buscar
Que a vida nos vai sorrir
Quando menos esperar
José:
Maria, minha Maria
A tua boca é esperança
Mas devo te sustentar
Enquanto a vida se lança
E como vou fazer isso
Se o latifúndio só avança?
Maria:
Amo-te, querido José
Por que tens a alma forte
Sei que não foges da luta
Tenha ela qualquer porte
Juntemos nossa esperança
E vamos pro Extremo Norte
Arcanjo Passarão:
E seguiram no caminho
Pois se entregar não ajuda
E o que parece derrota
É só mais uma labuta
No rosto a certeza posta:
- Isso não é fuga, isso é luta!
Se a barriga está vazia
Cheio segue o coração
Repleto de fé e força
De ânsia e de devoção
Mas ainda há muita estrada
Até o setentrião
Cheiros, cores, outras formas
Olhares de nova gente
Entrando vão pelo Norte
Do Sertão tão diferente
Pois a terra não é dura
De seca e sol inclemente
O verde é pleno, abundante
Um novo aroma se sente
Pelo caminho de água
Que chega a assustar a gente
Um alívio para as almas
De peito quase descrente
A CHEGADA
Maria:
Repara, Zé, que beleza
Que terra linda de olhar
Tantos verdes, tantos bichos
Tanto chão pra se plantar
Aqui seremos felizes
Como não fomos por lá
José:
Maria, minha Maria
Você é vida em meu ser
Mas nesse mundo tão belo
Ainda não sei tecer
Algum caminho mais curto
E temo teu adormecer
Maria:
Meu marido tenha fé
Que essa há de nos guiar
Veja que por todo lado
Temos um mundo a criar
Eis a nossa nova casa
O nosso novo lugar
José:
Tens razão, minha querida
Tu és dona da verdade
Quando o homem doa vida
Essa doa liberdade
Caminhemos mais um pouco
Quem sabe avisto a cidade
Maria:
Afasta então os temores
Nos pés a força ainda há
Não poupemos os esforços
Que logo vamos chegar
E a bênção receberemos:
Um canto pra pernoitar
Arcanjo Passarão:
Com as belezas da terra
Já se encantara Maria
Mas o filho na barriga
Chegar logo prometia
E José, marido atento
Bem preocupado se via
“Pois que apareça o abrigo”
Esse era o pensamento
Mas não havia um amigo
Pelo primeiro momento
E se é bela a natureza
Não é viável o relento
E se nessa mesma noite
Cisma de vir a criança?
Se não receber cuidado
Na hora que a dor alcança
Vai transformar-se em tragédia
O que era pura esperança
O PEDIDO DE ABRIGO
José:
Seu moço me dê licença
Pra minha história eu contar
Foi de uma terra distante
Que acabamos de chegar
O senhor teria um canto
Pra mode a gente deitar?
Dono da casa:
Meu distinto viajante
Nem um quarto tenho a dar
Pois a casa está bem cheia
De gente do seu lugar
Chegam quase todo dia
Na ânsia de lavorar
José:
Sendo assim o que me resta
É por fim me desculpar
Por ter batido à sua porta
Bem na hora de deitar
É que minha doce Maria
Já nem pode caminhar
Ela andou o dia inteiro
Tendo pouco o que comer
E com a chegada da noite
Repouso merece ter
Pois a barriga anuncia
Que o menino vai nascer
Dono da casa:
Espere um pouco, meu jovem
Um quarto não posso dar
Mas aqui em nossa terra
Podemos sempre ajudar
Dando abrigo aos viajantes
Que acabaram de chegar
E fico triste, acredite
Mas só tenho a oferecer
O estábulo da casa
Por hoje é só o que vou ter
Palhas de buritizeiros
Serão camas. Venham ver
O lugar é bem cuidado
(Se o senhor não se importar!)
Lençóis limpos e encostos
Vamos providenciar
Pelo menos para estrada
Já não precisam voltar
Arcanjo Passarão:
De todos aqui presentes
Quero uma coisa saber
Existe maior magia
Que o nascimento de um ser?
Claro que não, me dirão
Como haveria de ter?!
E juntos concluirão
Com a lágrima contida:
- Nada é mais belo ou mágico
Que o surgimento da vida!
E que mistério, esperança
Trazia aquela nascida?
Por que sabemos que o mundo
É movido a sentimento
E que vida esbanja graça
Quando existe encantamento
E o princípio disso tudo
É do homem o nascimento
Eis que nessa hora surge
Vindas no sopro do vento
Como quem carrega a cura
Como quem traz um alento
Três figuras que em palavras
Reverenciam o momento
OS TRÊS VIAJANTES
Gaspar:
O meu nome é Gaspar
A alma eu lavo no rio
Sustento eu tiro das águas
Não passo fome nem frio
Há muito espero um sinal
Pois pelo céu eu me guio
Espero algo de paz
Algo que traga esperança
No alto o brilho da estrela
Trouxe aviso de bonança
Refletido pelas água
Numa imagem de criança
Pois nos olhos de quem vive
Minha terra nunca espera
Uialã, Mucajaí
Cotingo e Uraricoera
Deixo pois a minha pesca
Brindando essa Nova Era
Melchior:
Percorro os Campos Gerais
No lombo da montaria
Não deixo gado pra trás
Na lida do dia-a-dia
Igarapés (refrigérios)
Banhando-me de alegria
De viver não tenho medo
Dessa estrada eu bato o pó
Vim seguindo aquela estrela
Que é a luz de um mundo melhor
Deixe que eu me apresente
Sou o vaqueiro Melchior
Trouxe comigo esse mimo
Da lida que não me cansa
Uma pele de carneiro
Que carrego nas andanças
Deixarei na manjedoura
Para aquecer a criança
Baltazar:
O meu nome é Baltazar
Da terra conheço a manha
Tiro ouro e diamantes
A riqueza que lhe banha
Lá das serras vi a estrela
Essa beleza tamanha
Varei selva, corri mato
Seguindo por Pacaraima
Cotingo, Uiramutã,
Subindo o monte Roraima
No rastro do brilho eu vim
Nas terras de Macunaíma
Agora estou bem ciente
Por que ela apareceu
Para trazer esperança
Na criança que nasceu
Deixo-lhe pois esta noite
O ouro que a terra me deu
Arcanjo Passarão:
E num discurso marcado
Todos a finalizar
Chamaram a atenção dos muitos
Que dormiam no lugar
Deixando ao fim uma mensagem
Que não se deve apagar
O DISCURSO
Melchior:
É preciso que se entenda
O que a história vem contar
Parece muito com a outra
Aquela bem popular
Mas existem diferenças
Que bem se pode notar
Aqui não nasceu messias
Ah, isso não nasceu não!
Quer saber desse menino?
Olhe no seu coração
É só mais uma criança
Que nos banha de emoção
Baltazar:
Olhe a rua à sua volta
Na calçada, no jardim
Não reconheceu? Que pena!
Olhe bem o curumim
De você traz tanto nele
Como também traz de mim
Estão por todos os lados
Muitas vezes sem um lar
Sem carinho, sem abraço
Que lhes possam acalentar
Alguns, soltos pela vida
Não tem dela o que esperar
Gaspar:
Retire a venda dos olhos
Que lhe cegou o ano inteiro
Mas não por que é natal
Por propósito certeiro
E ao mundo doe de si
O que há de bom e verdadeiro
Doe amor, compreensão
Um gesto de humildade
Sua atenção, seu cuidado
Respeito e mais igualdade
Anule a indiferença
Que assola a sociedade
Arcanjo Passarão:
E para que essa estrada
Seja menos desgastante
Para que nossas crianças
Possam seguir mais adiante
Lembre-se menos da festa
Mais do aniversariante
Lembre-se dessa passagem
Da vida, que é tão pequena
Tão curta, tão inconstante
Tão frágil quanto uma pena
Pois afinal somos todos
Astros de uma mesma cena
Somos todos grãos de areia
Nesse infinito de espaço
Tão pequeninos sozinhos
Mas quando juntos um laço
Tão forte quanto uma rocha
O mar, o cobre ou o aço
Com o dom de traçar um futuro
Banhado em rara beleza
De justiça e igualdade
Simples como a natureza
(Se o homem aprender a usar
Da alma a sua nobreza)
FIM
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NOTA: Escrito em 2005, o auto de natal em cordel “Caimbé de Natal -
O Auto de Macunaima” foi encenado em praça pública por três anos
consecutivos durante os festejos natalinos da Prefeitura de Boa Vista-RR, sob direção de Renato Barbosa.