ESTÓRIAS DO CRUZEIRO DAS ALMAS – LIVRO 1
É incomum Cruz das Almas
Uma cidade chamar.
Quem não sabe se espanta
E se põe a perguntar:
Se a cruz é o sofrimento
Das almas a se queimar?
História e lenda se mesclam
Para o nome explicar,
A história é portuguesa,
A lenda foi um rezar,
Dos tropeiros, no descanso,
Das lides de viajar.
A história diz que um portuga
Aqui chegou, bem ou mal,
Fincou morada nas terras
Lembrando de Portugal.
Chamou Cruz das Almas o sitio
Em honra à terra natal.
E realmente existia
Nas terras de Portugal
Uma cidade chamada
Cruz das Almas, e afinal
Eis ai a explicação
Para o sobrenatural.
Manuel o português,
Parece até gozação
E era Caetano Passos
Um sobrenome de ação
Adotou a terra agreste
Como o seu novo rincão.
Se é verdade eu não sei
A névoa da dúvida existe.
Se foi ele ou outro foi,
Nos livros inda persiste,
A memória não registra
E o historiador fica triste.
E a lenda o que é que diz
Para explicar este nome?
Mario e Alino Santana
Escritores de renome.
Dizem: “cruz vem de cruzeiro”
E assim a duvida some.
Os homens eram tropeiros
Que transportavam riquezas
De São Felipe à Cachoeira,
Nas mulas nas redondezas.
Chegavam aqui à noitinha,
Cansados, mas sem tristeza.
Descansavam os animais,
Davam milho no embornal.
Queimavam velas pras almas,
Para espantar o mal,
Que na escuridão da noite
Poderia ser fatal.
Sob árvores frondosas
Acendiam as velas, primeiro,
Ajoelhavam e rezavam
Para as almas no cruzeiro,
Ali fincado e sozinho
Como um santo padroeiro.
Este cruzeiro ficava
Lá na “Estrada de Ferro”,
Bem na estrada das tropas
No planalto de um aterro
Bem no inicio da ladeira
Mas o assunto eu não encerro.
Outros dizem que o cruzeiro
Era na igreja matriz,
Onde nem tinha palmeiras,
Só mato e bicho feliz,
Um casario ao redor
Onde o homem era aprendiz.
A lenda e a história se unem
Para explicar o topônimo
Cruz e Alma tão distintas,
Que até parecem antônimos,
Mas neste caso presente
Cruz e Alma são sinônimos.
Alma é o sopro da vida,
Não é sobrenatural,
É o espírito divino
Do homem, parte imortal,
É o simbolismo bem posto,
Nesta terra sem igual.
A cruz representa a fé,
Símbolo maior de Jesus,
Lembrança pra que sejamos
Amor, esperança e luz,
Razão, consciência e paz,
Destino que nos conduz.
A cruz e as almas se fundem
Formam um nome de verdade,
De uma cidade altaneira,
Emblema da liberdade,
No Recôncavo da Bahia
A promissora cidade.
Sobrenatural aqui
Só a lenda da mãe-do-ouro,
Esfera de estrela em fogo,
Cruzando o céu sem desdouro,
De sete em sete anos,
Trazia riqueza ou agouro.
Contam que ela nascia
Num grotão de arrepiar,
Da serra da Copioba
Cruzava o céu a buscar
Certa luz que brilhava
Na Serra do Aporá.
Se você quer saber mais
sobre o assunto narrado
Procure pessoas mais velhas
Que vão deixa-lo assustado,
E quem já viu a mãe-do-ouro.
Ou quem ficou encantado.
Mas na história real,
Vamos falar de verdades,
De coisas que aconteceram,
De bondades, de maldades,
De belezas, de tristezas,
Alegrias e saudades.
Cariris e Sabujás
Eram os índios presentes.
Tinha padre de batina,
Tinha padre com patente,
Conego Franca, seu nome,
Nosso primeiro intendente.
Que fizeram com os índios?
Ninguém sabe, ninguém viu.
Uns dizem que foram expulsos
Ou mesmo a tribo sumiu,
Por sua própria vontade
Depois que o branco surgiu
O negro aqui era escravo,
Plantava o canavial,
Fumo, mandioca e jaca,
Seu alimento principal
Nas senzalas lamentavam,
Lembrando a terra natal.
À noite, muito cansado,
Com sono e quase sem fala,
Finge não ver o senhor
Lá no fundo da senzala,
Fazendo amor com seu bem,
Mesmo raivoso se cala.
E lá na cama de palha
Da senzala, a brincadeira,
Do amo fazendo amor
Com a escrava faceira,
Surgiu também por aqui
A mistura brasileira.
Não esquece sofrimentos,
Mas luta por seus direitos,
Buscando melhores dias,
Com importância e respeito,
É o povo cruz-almense
Cheio de brio e conceito.
No Engenho de Santa Ana
Francisco de Magalhães
Plantou cana em sua terra
E um novo sol nas manhãs
Erigiu a casa grande
Paro o filho e as cunhãs.
Mas a cidade crescia
Nos dois extremos o oposto
A cruz na estrada de ferro,
A corrente próxima ao posto
Pros lados da estação velha
Na alegria e no desgosto.
Da estação de Dioclécio
Ou se chegava ou partia
Pra aqueles que aqui voltavam
Era sempre uma alegria
E aqueles que iam embora
Pensavam voltar um dia.
Isto foi a introdução
Pras coisas que eu vou contar
Do povo que aqui viveu,
Das construções do lugar,
Do progresso e das vitórias
Desta gente singular.
Muitos que lerem estes versos
Sequer ouviram falar
Das pessoas fascinantes
Que passo a apresentar,
Foram eles os construtores
Deste torrão invulgar.
As primeiras construções
Feitas com muito ardor
Com marcas de mestre Franco,
Excelente construtor,
De Mestre Sala, o italiano,
E de Otens, o inovador.
Enquanto Franco fazia
As casas, e muito bem,
Mestre Sala arquitetava
Construções como ninguém,
E Otens fazia pro fumo
Espaçosos armazéns.
E a casa mais bonita
Era a do Major Alberto
Que eu nem sei quem construiu
Só sei que era abrigo certo
Pra compadres e eleitores
Que vinham de longe ou perto
Não se tinha arranha céu
Nem construção suntuosa,
Só a Escola de Agronomia,
Que surgia majestosa,
Saída das mãos de Sala
De dentro da mata airosa
As praças e ruas antigas
Traçadas com muito esmero
Tinham curvas desnecessárias
Hoje delicioso tempero
Para quem nelas transita
Sem temor ou desespero.
O povo da minha terra
Que passo a enumerar,
Muitos eu nem conheci,
Cito só de ouvir falar,
Mas acreditem, existiram
Não é nenhum bla, bla, bla.
Agora falo de um vulto
Feio, mas de feitos belos,
Era Cícero Nazareno,
Doador de caramelo
Atendia aos moribundos,
Com amor, e com desvelo.
Temístocles da Rocha Passos,
Filho ilustre e de valor,
Vereador, Deputado,
Intendente e Senador,
Conselheiro e Coronel,
Do Império Comendador.
A política, o seu fascínio
Cruz das Almas, seu carinho,
Muito simples e querido,
De estatura, um baixinho,
De alma um grande senhor,
Era assim o Seu Maninho.
O Prefeito Januário
Velame fez a cadeia
Em novecentos e vinte
e dois pra servir de peia,
Mas hoje abriga cultura,
Liberdade ali campeia.
O Major Alberto Passos,
Pessoa muito querida,
Conselheiro experiente,
Pela vida bem vivida,
Hoje em reconhecimento
Virou nome de avenida.
Para se aprender a ler
Não era uma brincadeira,
A palmatória batia
Em mãos ilustres, certeira,
Caso se errasse a lição
Do mestre Mata Pereira.
E o Crisogno Fernandes,
Nome de rua hoje em dia,
Vestia roupa de linho,
Comprada lá na Bahia,
Tinha relógio de ouro
Herdado da sua tia.
Dizem que nesse relógio
Número não existia,
Mas as letras do seu nome
Marcavam as horas do dia,
Mostrava essa coisa rara
Com orgulho e picardia.
Ele era o mais galante,
Um homem fenomenal,
Aromático, ele fumava
De fumaça especial,
Vestia terno engomado,
Linho branco, Diagonal.
Aqui quando se morria
O velório era carpideiro,
Regado à cachaça e doce,
Café forte e candeeiro,
Pra ser depois enterrado
Pelo Cirilo coveiro.
Cirilo era uma figura,
Sempre bêbado e simplório,
Cavava a cova com gosto
Não perdia um só velório,
Comia, bebia cachaça,
Chorava sempre o finório.
Outra figura lembrada
Dono de uma estória bela
Era um livre pensador
O senhor Venâncio Trela,
Cachaceiro inveterado,
Orador sem taramela.
Bêbado, subia ao coreto,
Discursava e criticava
Os políticos da terra
E tanto espicaçava
Que acabava na prisão,
Local onde se acalmava.
Num hospício das estrelas
Cheiroso, Ruzia e Bitela,
Flora Carango, o desejo,
Todos se lembram dela
Luiz do Riachinho, Xoxa,
Capeta, Pirria e Trela.
Pelas coisas que faziam,
Jamais serão esquecidos
Ilustravam a nossa crônica
Por muitos anos seguidos
Seriam eles normais
Ou então loucos varridos?
Porque hoje o que fazemos
Com o nosso mundo atual,
Poluindo e destruindo
De forma irracional,
Eu volto a me perguntar
Será que isso é normal?
Eles apenas dançavam
Cantavam e não destruíam
Felizes com seus trejeitos
Será que loucos seriam?
Ou oradores inflamados
Gritando quando bebiam?
Mestres Augusto e Barroso,
Famosos de profissão,
Augusto, mestre do fumo,
Barroso, mestre em balcão,
De farmácia e drogaria
Salvou vidas de montão.
Para se ir a Bahia,
Que era ir a Salvador,
Se pegava a marinete,
De Baratinha, o condutor,
Nos deixava em Cachoeira
Para pegar o vapor.
Oh! Viagem tão sonhada,
Pra qualquer moça ou rapaz,
No vapor da Cachoeira
Que já não navega mais,
Se ia para a Bahia
Cidade bonita demais.
Também se ia à Bahia
Por trem comum ou mochila,
De manhã cedo em São Felix,
Na estação tinha fila,
Ver a paisagem passando
Rio, monte, sítio e vila.
Mas voltando à nossa terra,
Que tem coisas de valor,
Tem mata de Cazuzinha,
E a fonte do Doutor,
Onde à tardinha eu ia
Para um banho sedutor.
A mata tá menorzinha
A fonte se acabou,
Os mais novos nem conhecem
Ninguém nunca se lembrou
De preservar os banheiros
Só a lembrança ficou.
E as festas que não tem mais?!
Lembro os ranchos de Dadinha,
Bumba Boi de Derrapante,
O teatro de Lozinha,
Batuque de Leonel
E os “Reis” de Maricotinha.
E o carnaval, esperado
Por homem, moça e menina,
Pois tinha baile infantil
Com confete e serpentina,
Meninos com “Rodo” na mão
Pra enfeitiçar a traquina
E o Baile da Prefeitura
Que não entrava um qualquer
Bailes na Lyra e na Euterpe,
Mais animados, até,
Nas ruas, blocos, caretas,
E homem que nem mulher
As “Pranchas” de Teodoro,
Alegorias de Verdival,
Mascarados e mandus,
Tudo muito original
E a alegria das marchinhas
Quarta feira era o final.
Ai, o Padre Deraldo
Passava cinzas na testa
De foliões bem cansados,
E de quem não foi à festa
Num latim arrevesado,
E quarenta dias nos resta...
Pra reconciliar com Deus,
Pra orar e pedir perdão,
Para fazer penitencia,
Jejum e muita oração.
Hoje em dia é diferente
É só farra e arrastão.
Quem não lembra das retretas
Das filarmônicas de então?
A Lyra e a Euterpe
Que até hoje ai estão,
Fazendo vibrar as almas
Com dobrados e emoção.
A Lyra de Seu Sizino
De Batuta afinada,
Silvestre Mendes na Euterpe,
De batuta premiada,
As batutas eram espadas
De uma guerra imaginada.
Quantas vezes eu ouvi
Esta guerra no coreto,
Levavam horas tocando
Um desafio em dueto,
E o povo ali, delirando,
Velho, novo, branco ou preto.
Que orquestra maravilhosa
Se eu pudesse criaria
Cabo Inocêncio na viola
Miro e a saxofonia,
O Violão de Gordilho
E Tonho na bateria.
O som do banjo de Pedro,
O trompete de Florzino,
Brazilinho no cavaco,
João Carango, bombardino,
Vivaldo no pé-de-bode,
Que lembrava um violino.
Martiniano de Melo
E seu fole pregueado,
Tiago tocando trompa,
Doré muito ritmado,
Com seu pandeiro estiloso,
Tudo muito combinado.
No mês de Setembro inteiro
Os carurus festejados
De Souza e Dona Marocas
Eram os mais disputados,
Rezava-se para os santinhos
Queridos e respeitados
E as festas de São João
Hoje tão modificadas,
Em cada casa, um forró,
Milho canjica e cocada
Llicor de maracujá
Para animar a moçada
Veio depois Jenipapo,
Mas servia para alegrar
E hoje virou o primeiro
No gostinho popular,
Deixando todos afoitos
Pra verem espadas rolar.
Zeca Sampaio tocava
As espadas amarradas
No tronco dos oitizeiros
Bem em cima das calçadas,
Não feria nem queimava
Em surpresas encantadas.
Aqui haviam escritores
De lembrança bem saudosa:
Jacinta Passos, guerreira,
Cordel de Conde Barbosa,
André Peixoto, inspirado,
Sismil de rima gostosa.
E Galeno d’Avelírio,
Que a sua terra cantava,
Cantava o amor e amadas,
Nos seu cantar delirava,
Amores nunca sonhados
E a nossa alma enlevava.
Dois Chicos eu conheci,
Chico Boi e o do Rolete,
Um artesão de sapato
O outro com voz de falsete
Mercava roletes de cana
Que fazia o nosso deleite.
Julinho e Cula também
Calçavam os pés da gente
Com solado de pneu,
Seus sapatos, de repente,
Por nós os mais odiados
Mereciam até patente.
Hoje Walmart é mercado
E era a Suerdieck de então,
Indústria muito importante
De charuto feito à mão
Por mais de cem operárias,
Oh! Quanta recordação.
Folhas curadas, marrons
Do lavrador a canseira
Eram bem esculturadas
Por mãos morenas, ligeiras
Viravam charutos ninados
Nos colos das charuteiras.
Charutos cruzavam os mares,
Partindo de Salvador,
Agradava bocas ricas
De reis, plebeus ou doutor,
Padres, ricos, sábios, nobres,
Em terras do exterior.
Aqui tinha dois cinemas,
Coisas que hoje não tem.
Cine Glória que virou Ópera
Tinha o Popular também
Lá fabriquei fantasias,
Viajei em sonhos de além.
Guardo até hoje um pedaço
Da celuloide cortada,
Com seus furinhos do lado
Mostrando a curva adorada
Dos belos seios de Marylin
Monroe, a musa sonhada.
Hoje o mundo tá inundado
De telefone celular,
Nos tempos de antigamente
Para se telefonar
Ou era Bila ou Litinha
Que fazia a gente falar
Eram duas cabines com vidro
E um telefone a chiar,
Zumbidos, roncos, estáticas,
Difícil comunicar
Com alguém do outro lado
Que não podia escutar.
A cidade viu surgir
Seu primeiro arranha céu
Dois pavimentos modestos,
Foi motivo de escarcéu,
A audácia de Seu Zé Curi,
Um vendedor de chapéu.
Novenas da padroeira
Eram tempos de namoro,
Olhar furtivo era o gozo,
Alegria, paixão e choro,
E se a escada deixasse
O namoro era no coro.
Oradores inflamados,
Zé Rocha e Aderbal Pereira,
O caminhão de Irineu
Era o ônibus de carreira
E o Viriato e a tesoura
Aparavam a cabeleira.
Nossa feira era na praça
Que hoje é fonte luminosa,
Tudo vendido no chão,
Farinha, carne, “penosa”,
Milho amendoim, feijão,
Verdura e fruta gostosa.
Da feira da minha infância
Que eu ia toda semana,
Tóim vesgo e os cavalos
Feitos de flecha de cana,
E Colher de Pau mercadeando
machucador de imburana.
Ao vate Luciano Passos,
Que nesta terra vivia,
Eu dedico este trabalho
Sobre a sua Estrela Guia,
Que é também Lençol Perpétuo
Na sua última moradia.
Em dois livros ele nos conta
Estórias desta cidade,
Procurem pra ler que é bom,
Com metáforas sem idade.
Vai do ontem ao amanhã
Com magia e com saudade
Se acham que esqueci
De algum vulto famoso
Mande seu nome pra mim
Que escreverei, sem repouso,
A sua estória contada
Em outro livro precioso
Este é o primeiro livro
Deste longo itinerário,
Que é contar a história
Desta terra, um breviário,
No próximo ano, farei
Um outro livro lendário
Trazendo histórias recentes,
Contando fatos reais,
Ainda bem na lembrança
De avós filhos e pais,
Pra que fiquem registradas
Também coisas atuais.
Que num futuro, quem sabe,
Sejam lembranças totais
De um tempo, hoje, recente
Que não existirá mais,
Como estes que eu relato
Neste livrinho fugaz.