Retirante às Avessas

Retirante às Avessas

Jorge Linhaça

Pra quem vindo de São Paulo

Vem parar em Salvador

Num caminho invertido

Junta o ódio e o amor

A natureza é linda

A cidade é um horror

Quem vem só de passagem

no seu papel de turista

se contenta com a paisagem

e faz pose de artista

Não conhece a fuleiragem

que pelas ruas se lista

Vivo na Cidade Baixa

e é tanta a buraqueira

que até o pneu se encaixa

Juro não é brincadeira

Pois quem muito se abaixa

mostra logo a bunda inteira

A sujeira se amontoa

nas esquinas e canteiros

tudo muito numa boa

mas o povo é festeiro

que até nos atordoa

é barulho o dia inteiro

Celular ninguém dispensa

seja de noite ou de dia

no elevador, na dispensa

sempre aquela gritaria

Não se pede nem licença

seu ouvido vira pia

Quem trabalha não tem pressa

que se dane quem espera

a conversa rola a beça

e voce se desespera

qual pagador de promessa

e já pensa em fazer guerra

Eu aqui fico perdido

medo até de trabalhar

vão me chamar de enxerido

se o trampo acelerar

e eu vou ficar mordido

de ver todos devagar

Cada mundo é um mundo

cada qual é cada um

mas aqui o poço é fundo

governo não há nenhum

agudo vira rotundo

e sardinha acha que é atum

Carteira de motorista

aqui se dá por sorteio

joga um punhado pra cima

e quem pegar é barbeiro

aqui tem que ser artista

pra sair da pista inteiro

Farol vermelho é piada

todo mundo atravessa

entram pela mão errada

como se tivessem pressa

com o celular na orelha

c'oa atenção só na conversa

Se a pista, por milagre

tiver faixa demarcada

uns andam em zig-zag

ou em cima da danada

quem quiser que os aguarde

para dar ultrapassada

O buzu são um terror

vão fechando os cruzamentos

premiados com louvor

com carteira de jumento

dirigir em salvador

só com calmante eu aguento

Os botecos e barzinhos

botam mesa até na rua

todo dono é espertinho

pensa que a pista é sua

e voce espremidinho

divide com o pedestre a rua

Se o Gregório fosse vivo

pediria pra morrer

Ou passava em tudo um crivo

como estou a fazer

Salvador é peixe-vivo

que não para de morrer

Salvador parou no tempo

só inchou mas não cresceu

e por isso eu lamento

mas o povo mereceu

deu o seu consentimento

pra tudo que aconteceu

Ninguém meche uma palha

pra mudar o que errado

não reclama e nem ralha

do governo empossado

vive preso na cangalha

escravo do seu passado

Enquanto houver cerveja

muito axé e carnaval

o povo a mão do rei beija

por mais que seja boçal

pois nada melhor se almeja

do que deixar tudo igual.

Província de Salvador, 9 de maio de 2012

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