Sacristão por um dia
I
Depois de um sono agitado
E quase cair da rede
Acordei com muita sede
E com o corpo suado
Tive um sonho complicado
Daqueles que o cabra chora
Acordei antes da hora
E não pude mais dormir
Tentei até desistir
E ver o romper da aurora
II
Preparei o meu café
Às cinco da madrugada
A família ainda deitada
E o besta aqui em pé
Desejei comer filé
Mais só tinha pão dormido
Fiquei meio deprimido
Mas não me deixo abalar
Preciso me alimentar
E não me dar por vencido
III
Tomei um café bem forte
Pra aliviar a tensão
Pois tava com a sensação
Que era meu dia de sorte
Tendo Deus como suporte
Eu vivo com mais sossego
A fé é o meu apego
Dia e noite, noite e dia
Pois tudo o que mais queria
Era arranjar um emprego
IV
Em um jornal matutino
Fui ler os classificados
Sou um dos desempregados
Em busca de um destino
Com um vigor de menino
Comecei a procurar
Sabia que ia achar
Uma nova ocupação
Sentir-me um cidadão
Com direito a trabalhar
V
Um anúncio no diário
Aumentou minha animação
Queriam um sacristão
Para ajudar o vigário
Como não sou otário
Corri para a catedral
Não fiz nem “pelo sinal”
Nem me ajoelhei no chão
Era grande a emoção
De ter emprego formal
VI
Pra poder ser sacristão
Tinha que ser batizado
Confessar todo pecado
E receber o perdão
Só depois da comunhão
Pelo bispo abençoado
Podia ser contratado
Se tivesse documento
Pra apresentar no momento
Em que fosse entrevistado
VII
No dia da entrevista
Acordei muito animado
Tomei café reforçado
Como se fosse um artista
Passei tudo em revista
Pra ver se estava legal
E rumei pra catedral
Sem mais nenhuma demora
Chegando em cima da hora
Na Casa Paroquial
VIII
Cumprindo as formalidades
Fui convidado a sentar
E o padre a perguntar
Quais minhas habilidades
E quais as dificuldades
Que eu temia encontrar
Se tinha algo a perguntar
Aproveitasse o momento
E me pediu documento
Quase que sem respirar
IX
Tinha todo documento
Porque sou um homem sério
Apresentei batistério
Registro de nascimento
Certidão de casamento
E os diplomas que tinha
Diploma de coroinha
E de tocador de sino
Catequese de menino
E enfeitador de lapinha
X
Depois de todo o aparato
Que produziu o vigário
Acertei o meu salário
E assinei o contrato
Fiquei devendo um retrato
Para trazer outro dia
Rezei uma ave-maria
E mais outra oração
Pedi benção ao capelão
E fui para a sacristia
XI
O padre era exigente
E não queria preguiça
Pois era dia de missa
E tava chegando gente
Mas eu estava contente
Nem dava pra disfarçar
Comecei a trabalhar
Preparando os instrumentos
E arrumando os paramentos
Para o padre celebrar
XII
Ouvi um sino tocando
Para chamar os fieis
Olhei assim de vies
Para a multidão chegando
E o coral ensaiando
Quando chegou um recado
Fiquei muito aperreado
Pois um problema surgiu
O vigário descobriu
Que o vinho tinha acabado
XIII
Diante da emergência
Daquela situação
Busquei uma solução
Que atendesse à urgência
Usando a inteligência
Fui ao boteco do Zé
E preparei sem má fé
Uma bebida decente
Misturei com aguardente
Uma xícara de café
XIV
Antes de ir pro altar
O padre tomou um gole
Ficou assim meio mole
Mas resolveu encarar
Começou a celebrar
Com uma grande euforia
Na hora da eucaristia
Tomou outra talagada
E com a voz embolada
Já não falava, só ria
XV
O povo foi estranhando
Aquele comportamento
Beata deu passamento
Foi gente se levantando
O coral seguiu cantando
Para a atenção desviar
O padre mandou parar
E levantou a batina
Sentou-se na Serafina
E começou a tocar
XVI
Tocou tango de Gardel
Um pagode aputanhado
Um forró estilizado
E um samba de Noel
O padre ficou pinel
E saiu pelo salão
Pegou mulher pela mão
E saiu rodopiando
E todo mundo dançando
No ritmo do capelão
XVII
Na missa estavam presentes
O juiz o e delegado
O prefeito e um deputado
Também estavam os gerentes
Dos bancos e os presidentes
Do Rotary, Lyons, Maçonaria
Justamente nesse dia
Tinha tanta autoridade
Toda a cúpula da cidade
Assistiu a baixaria
XVIII
Ninguém tava acreditando
No que os seus olhos viam
Uns gritavam e aplaudiam
Ao ver o padre cantando
Batendo palma e dançando
Em plena celebração
E culparam o sacristão
Por toda aquela agonia
Logo no primeiro dia
Aprontara a confusão
XIX
Naquela situação
Não sabia como agir
Pensei até em fugir
E deixar a confusão
Mas como era o sacristão
Agi com desembaraço
Procurei abrir espaço
Pelo meio do salão
Alcancei o capelão
E o peguei pelo braço
XX
O padre pulava e ria
E me chamou pra dançar
Não parava de cantar
E me seguir não queria
Levei-o pra sacristia
E mandei o povo embora
Alguns saíram na hora
Outros não deram atenção
Quando voltei pro salão
Botei o resto pra fora
XXI
Foi um vexame danado
Que a cidade abalou
O escândalo que causou
O padre embriagado
Sendo o bispo informado
Do que tinha acontecido
O padre foi transferido
E pelo meu ato falho
Com um dia de trabalho
Eu acabei demitido