CORDEL DE UM AMOR ADOLESCENTE

Teatro

SINOPSE

A peça retrata a relação amorosa de dois adolescentes no final dos anos quarenta, momento em que a sociedade brasileira celebra o fim da II Guerra Mundial e busca revitalizar a cultura popular. O cenário na região nordeste entre as décadas de 40 e 50 foi permeado por conflitos entre camponeses e latifundiários. Esses camponeses após anos de exclusão social passaram a mobilizar-se através de Ligas Camponesas na tentativa de defender seus interesses. A formação desses movimentos sociais colocou em questão a estrutura agrária presente no Brasil. Período em que a França dita a moda para o mundo e o desejo de migração do povo campesino para os grandes centros urbanos cresce assustadoramente. Conflitos familiares estabelecidos por oposições ao poder dos grandes latifundiários ressaltam a decadência canavieira no recôncavo baiano. Neste cenário, João e Maria, dois jovens opostos na condição social cumpliciam um plano de fuga para driblar os desmandos de um senhor do engenho. As cenas retratam os conflitos e as soluções encontradas pelos adolescentes para viverem um grande amor.

Personagens:

João – Jovem pobre, filho de dois lavradores canavieiros, 18 anos.

Maria – Jovem rica, filha de latifundiários, 17 anos.

Patrício – Pai de Maria, 50 anos.

Leonor – Mãe de Maria, 39 anos.

José – Pai de João, 45 anos.

Povo do samba de roda – Jovens.

2 Violeiros contadores de histórias – Adultos.

Cláudia – Filha da costureira de Leonor, 19 anos.

Cecília – Amiga de Maria (Filha de um fazendeiro 17 anos)

(Terreiro da casa grande)

Samba de roda – (Cantando) Foi agora que cheguei dona, foi agora que cheguei dona, foi agora que

cheguei dona, foi agora que cheguei dona, vim de viagem passando pelo

catende, fui atrás e vim na frente, só pra poder te encontrar, nessa viagem fui

passando de repente, descobrindo bem contente como é poder te amar...

Violeiros - Parem o samba agora

Quero pedir permissão

Pra contar uma história

Que arrepia o coração

É a história de Maria

A filha do meu patrão

Que morre de amor silencioso

Por um jovem chamado João

Mas é uma história longa

Por isso peço sua atenção

Os versos que não pedem rimas

Devem pedir compaixão

É cordel de um amor adolescente

O conflito da inspiração

Seu Patrício, Pai de Maria

É quem começa a contação

(Sala da casa grande)

Patrício - Por favor, minha mulher

Queira mandar entrar

O lavrador de nome José

Pra que eu possa lhe falar

Do desejo da minha vida

Que é fazer logo casar

O filho dele João

Com Cláudia de seu Juá

A moça é apaixonada por ele

E a resposta eu tenho que dar

Se o rapaz mexeu com ela

As conseqüências ele vai agüentar

Leonor - Permita-me meu bom marido

Que eu lhe possa perguntar

João tem tal interesse

Na filha de seu Juá?

Ou essa idéia é sua

Querendo os dois juntar?

Porque a moça tem cara de atrevida

E talvez até queira aprontar!

Patrício - Conheço a cara de moça direita

Não é essa que vai me enganar

Falamos nisso depois

Faça logo seu José entrar!

José - Bom dia meu patrão

Espero não ta incomodando

Assim que recebi a ordem

Tratei logo de ir entrando

Portanto ainda pude escutar

Aquilo que tava falando

Patrício - Então já sabe do se trata

E é claro que está concordando?

José - Desculpe-me seu Antonio Patrício

Mas deixe eu lhe perguntar

Foi João quem teve a idéia

De te pedir para casar?

Com a filha da costureira

E do ex-marido Juá

Se não estou enganado

Foi isso que acabei de escutar?

Leonor - Sente-se meu bom José

Que vou pedir um café

Pra prosa continuar

Sei que vamos nos entender

E eu não quero atrapalhar

Mas aviso que faço gosto

Se o fato se concretizar

Seu patrão oferece uma novilha

Pros noivos comemorar

Patrício - Cláudia, minha querida

Saia de trás da cortina

Daqui já pude notar

A sombra alongada e fina

Que a luz insiste em mostrar

Você não é mais uma menina

E deve participar

Falamos do seu destino

Você não quer opinar?

Cláudia - Eu não estava escondida

Isso eu posso jurar

Fui limpar as cortinas

E o patrão foi conversar

Por isso fiquei aqui

Mas não queria atrapalhar

O assunto é de adultos

Acho que devo me retirar

Patrício - Nada disso menina Cláudia

Permaneça neste recinto

E responda o que vou perguntar

É engano aquilo que sinto

Ou João está a lhe interessar?

Cláudia - Meu patrãozinho está certo

Essa paixão é verdadeira

Meu amor por João

Garanto que é pra vida inteira

Mas ele nunca me deu bola

Porque sou filha da costureira

Não sei se falo certo

Ou pode parecer besteira

Quando ele me agarrou

Cheguei a sentir tonteira

Não tive forças nas pernas

E deu-me aquela suadeira

Ai ele se aproveitou

E me derrubou na ladeira

Eu fiquei entregue

Ao golpe de capoeira

Leonor - Isso é uma bobagem

João não tem preconceito

É ótimo trabalhador rural

Que tem modo perfeito

Seguiu o exemplo do pai

E sabe fazer tudo direito

Não entendo esse fato

Nem qual foi o seu pleito

Jogar uma moça no chão?

Agora não tem mais jeito!

José - Agradeço pelo elogio

Que foi destinado a João

Realmente é filho perfeito

E tem muita dedicação

Pra tudo aquilo que faz

Sempre me pede opinião

Mas devo conversar com ele

Sobre sua intenção

Se houver a concordância

Tomaremos provisão

A Cláudia eu peço desculpas

Pela tal agarração

O golpe de capoeira

Veio pela contramão

João só sabe tocar pandeiro

Mas nunca tira o pé do chão

Ele é muito bom de samba

Mas dar golpe nunca vi não!

(Terreiro da casa grande)

Violeiros - Virgem Maria mãe de Deus

Vejam que torpe situação

Seu Patrício decidindo

Sobre a vida de João

É abuso de poder

A receita do patrão

Dona Leonor envergonhada

Deu a sua permissão

Seu José o lavrador

Nunca aprendeu a dizer não

Como pode existir amor

Nessa triste imposição?

Pela cara safada de Cláudia

Isso não passa é de invenção

O rapaz não joga capoeira

Como jogou ela no chão?

A vida corre perigo

E a lei aqui é do patrão!

Samba de Roda - (Cantando)Se você é do samba ou batuque da zona rural, não troque sua terra querida pela

capital, Amor que faz amor tem que ser natural, a vida é o sentido completo do ser pessoal!

Vem, vem, vem dona Preta, pro canavial (piaba)

Pra fazer rapadura e tomar mingau

Pra tomar cana dura, levantar o astral

Pra encontrar o amor, nesse matagal

Pra mexer o corpo e espantar o mal

Vem, vem, vem seu José, pro canavial

Pra marcar o compasso, no coro do timbau

Pra catar caranguejo, lá no manguezal

Pra matar a cobra e mostrar o pau

Pra deixar o sonho se tornar real...

Violeiros - Para, para, para! É isso que não pode!

Samba de Roda - Não pode o quê violeiro?

Violeiros - Deixar o sonho se tornar real!

Samba de Roda - Que sonho violeiro? Ta falando do samba?

Violeiro - Não pessoal, vejam como seu Zé ta triste, ele nem sambou direito!

Samba de Roda - É verdade! O senhor pode explicar seu Zé?

José - Como posso explicar

Aquilo que não tem explicação

Ainda mais quando o assunto

É uma triste decisão

Que eu tenho que tomar

Em nome do meu filho João?

Samba de Roda - Não entendemos "foi" nada. O que é que está acontecendo?

Violeiro - Vou começar de novo

A tentar explicar o fato

Seu José não quer comer

Mas o queijo já ta no prato

E o filho que não tem nada a ver

É quem vai pagar o pato

Samba de Roda - Agora foi que tudo piorou

Ninguém entendeu foi nada

De tudo que se explicou

A palavra foi apagada

O susto que Zé tomou

Tem a ver com a nossa cantada?

José - Não pessoal, a cantada do samba só me traz alegria,

O susto que acabei de tomar parece até que foi simpatia,

Ou feitiço mal arriado pra me dá tal correria

Na porta da encruzilhada quando a noite quer virar dia

É um mau presságio desonesto imposto pela tirania

Vou ter que tomar um gole de cachaça

Pra não virar zombaria

Mas a solteirice do meu filho tá com dias contados

E ninguém pode me dá garantia

Que ele não se rebele

E até arrote valentia

Pra se livrar de uma praga

Pregada pela covardia

Violeiro - A coisa é muito séria

E o tempo já ta passando

Maria não sabe de nada

Do que seu pai está tramando

A moça vai discordar de tudo

É isso que tou pensando

A coisa vai engrossar

E João já ta chegando

João - Bom dia povo do samba

Bom dia meu violeiro

Sua benção meu pai José

Hoje é folga no terreiro

A cana já foi levada

Pra adoçar o mundo inteiro

Por que o samba parou

Se eu quero ser o primeiro

A sambar e mexer o corpo

Com o toque do pandeiro?

(Toque de pandeiro, João samba sozinho)

José - Filho ouça seu pai

Precisamos conversar

Deixe o samba pra depois

E se prepare pra casar

O patrão me deu a ordem

E eu tenho que acatar

Cláudia será sua esposa

Esse é o sonho a realizar

João - O quê?

Violeiros - João ficou espantado

Com a notícia que recebeu

Não está entendendo nada

E nem sabe o que aconteceu

Uma mentira deslavada

É o que se sucedeu

A menina inventou uma história

E a mãe se convenceu

Contou tudo pro patrão

Que logo intercedeu

Decidindo a vida do jovem

Que de amor se entristeceu

Pôs-se a contar ao pai

Aquilo que de fato ocorreu

João - Pai isso tudo é mentira

E eu posso lhe explicar

Cláudia descobriu um segredo

Que eu estava a guardar

É o meu amor por Maria

E ela iria revelar

Ao pai da minha amada

Pra ele me castigar

Ela me pediu um beijo

E isso não pude negar

Pensava que desse jeito

Eu iria me livrar

Nunca passou pela minha cabeça

Que ela fosse me afrontar

Ela se jogou no chão

E começou a gritar

A costureira apareceu na janela

E viu eu me levantar

Prometeu naquele instante

Que iria se vingar

Fiquei desesperado

E tratei de me apressar

Corri pra contar a Maria

Que não demorou a me acreditar

Agora com essa invenção

Eu vou ter que me casar?

Samba de roda - Tadinho do menino

Pecou por inocência

O pai está aflito

E recebeu a incumbência

De acertar o matrimônio

Sem lhe faltar competência

Pra convencer o filho querido

Que deve ouvir com paciência

José - Foi isso que ele falou

Quando tomou a decisão

Achei que estava correta

E concordei com a solução

O casamento resolveria tudo

E você teria outra punição

Mas agora que me contou tudo

Vou mudar de opinião

Ainda não sei o que fazer

Mas sendo assim usarei a compaixão

Corra pro nosso barraco

Aproveitando a mansidão

Nada de desatino

Pra essa triste condição

Chega de concordar

Com as palavras do patrão

Samba de roda - Isso mesmo Seu José

Cláudia precisa de uma lição

A menina é irritante

E promoveu uma invenção

A idéia é lançar a isca

Pra fisgar o jovem João

Seu filho não fez nada

Ele tem bom coração

João - Oxente meu paizinho

O senhor duvidou de mim?

Sabe que tudo eu lhe conto

Nossa vida foi sempre assim

Como posso aceitar

Seu Patrício tramando meu fim?

Vou conversar com a louca da Cláudia

Saber daquela mente ruim

O que ela ganha com isso

Usando o falso da boca em carmim

José - Não se apoquente meu filho

Vou tentar lhe defender

A verdade está contigo

Seu Patrício vai entender

E vai desistir do casório

Quando tudo se esclarecer

Samba de Roda - (cantando) Todo bicho feio, sabe sair pelo meio, no meio da noite, o perigo rebate açoite! O perigo rebate açoite a parar, o menino não pode casar, O perigo rebate açoite a

parar, o menino não pode casar...

Violeiro - Ninguém pode imaginar

Como dói o coração

De um jovem adolescente

Que se entrega a uma paixão

E vê perdida a chance

Da sua maior realização

O amor que é de verdade

Merece toda admiração

Porque amor não tem idade

E o respeito é a condução

Seja ele na maturidade

Ou mesmo na debutação

Mas o veneno da inveja

É de curta duração

(Cecília passa correndo)

Que ventania foi essa?

Será que foi furacão?

É a amiga de Maria

Que entrou em erupção!

(Jardim da casa grande)

Cecília - Maria, Maria (ofegando) estou a sua procura...

Maria - O que foi Cecília, o que foi amiga? Fala.

Cecília - Quando a gente ama, de tudo é capaz?

Até deixar a riqueza pelo amor de um rapaz?

A gente vive o presente e deixa o reto para trás?

A gente aprende a reconhecer aquilo que vale mais?

Acredita que sem guerra a gente não encontra paz?

O amor que é revelado tem sempre os mesmos sinais?

O beijo quando acontece tem gosto de quero mais?

Maria - Amiga, você quer que eu responda a todas essas perguntas de uma vez?

Cecília - Diga-me apenas o que é o amor?

Maria - O amor é um pedaço de papel que levanta vôo numa brisa rasteira e parece que não

vai pousar em lugar nenhum, sabe? É assim como beijar na chuva e não ficar gripada! O amor é uma brincadeira de esconde, esconde no canavial, se você se abaixa dar pra ver as pernas do outro por entre as hastes! O amor é um cheiro de comida boa, que você não precisa provar pra saber que é gostosa! O amor é um abraço apertado que não dá vontade de soltar mais! Ele é como o nome da pessoa que a gente ama, tem muitos homônimos, mas reconhece apenas uma única voz! O amor é como uma tempestade que não destrói nada, mas sacode a gente por inteiro...

Cecília - Puxa amiga! Adolescente ama desse jeito?

Maria - Claro Cecília! Cada pessoa tem o seu jeito diferente de descobrir o amor! Não me diga que você está amando?

Cecília - É desse jeito que você ama o João?

Maria - É assim mesmo! Fico toda boba quando sei que ele vai chegar e vai me encontrar naquele esconderijo que é só nosso! Dá uma tremedeira no corpo inteiro!

Cecília - E se você o perder, o que acontece?

Maria - Eu morro! Nem fale nisso amiga. Isola! O que foi? Fala Cecília, fala.

Cecília - O pessoal do samba ta falando que seu pai vai tirar João de você!

Maria - Como assim? Meu pai...

Cecília - Venha, vou te contar tudo!

(Terreiro da casa grande)

Povo do samba - (Graças a Deus que eu já trouxe...) Tava na roça pra cortar o canavial, tava na roça pra cortar o canavial, ele é um mar de cinzas, um matagal! Ele é um mar de cinzas, um matagal! Lavei minha alma e estendi lá no quintal, lavei minha alma e estendi lá no quintal, o amor que tava nela, foi pro varal! O amor que tava nela, foi pro varal!

(Área do canavial)

José - João, meu filho querido

Ouça o que seu pai está falando

Já fiquei calado o tempo todo

Por educação só fui escutando

Esses donos das terras de Santo Amaro

Aprenderam a ficar mandando

Nós sempre obedecemos a tudo

Mas nenhum de nós ta se enganando

Sabemos dos nossos direitos

E de como eles estão nos usando

Pra enriquecerem cada vez mais

Sempre, sempre explorando

Eu garanto que não sou besta

E uma decisão estou tomando

Vou romper com seu Patrício

Pra de mim não ficar zombando

Pode colocar seu plano em prática

Que eu vou lhe ajudando

João - Deixe-me dar um abraço apertado

Nesse pai da minha confiança

Garanto-lhe meu pai querido

Que isso me traz esperança

Maria é o amor da minha vida

Que trago sempre na lembrança

José - Eu sempre acreditei no amor

Mesmo sabendo que não tive sorte

Porque o amor da minha vida

Perdi cedo por morte

Sua mãe foi exemplo de mulher

E isso foi que me deixou mais forte

João - Pai, o senhor acha que nós vamos conseguir?

José - Você tem alguma dúvida sobre o amor de Maria?

João - Não! Maria me ama, pai!

José - Então, filho. Converse com ela...

João - É isso que vou fazer... quero falar mais uma coisa, estou muito orgulhoso pelo pai que tenho! Eu não entendia muito a sua submissão...

José -No dia em que se tornar pai você vai compreender tudo. Mas vou lhe contar um pouco das coisas que faço. Desde que a II Guerra Mundial terminou, nós estamos vivendo uma tensão com esses latifundiários, de uma lado celebramos o fim da guerra, mas do outro, estamos preocupados com a saída em massa de muitos trabalhadores do campo para a cidade, principalmente para São Paulo. Os camponeses estão cansados da exploração, nós estamos dispostos a mudar a história desses anos de exclusão social, queremos nos mobilizar através das Ligas Camponesas na tentativa de defender nossos direitos. Nosso movimento social coloca em questão a estrutura agrária do Brasil e isso vai gerar muitos conflitos. Estou estudando escondido, porque pela vontade do patrão, só os filhos dele é que saem pra estudar, os nossos devem aprender o caminho da submissão...

João - Pai, o senhor me surpreende! Aumenta ainda mais a minha vontade de fugir com Maria e iniciar uma nova vida, mas quero que o senhor saiba: Nada disso estava planejado pra gora...

José - Eu confio em você meu filho! Aquele dinheirinho que a gente ta ajuntando vai ajudar vocês.

João - Preciso falar com Maria. Acredito que ela ainda não sabe de nada...

José – Venha meu filho, vamos organizar as coisas...

(Sala da casa grande)

Maria - (Apressada) Papai, papai...

Leonor - Maria!

Maria - A senhora estar a par da decisão de papai?

Leonor - Quem foi que te contou minha filha?

Maria - Isso não vem ao caso, quer dizer que é verdade? Papai quer obrigar João a casar com Claudia?

Leonor - Ele abusou da pobre menina! Não é por ser filha da costureira que faremos vistas grossas.

Maria - Isso não pode ser verdade! João é um ótimo rapaz...

Leonor - Eu sei. Mas infelizmente a decisão está tomada. O pai dele concordou.

Maria - Seu José concordou com o casamento? E João, o que disse?

Leonor - Estamos aguardando José voltar com a resposta. Cláudia gosta de João...

Maria - Mas João não gosta de Cláudia!

Patrício - Isso ele tinha que pensar antes de cometer o desatino...

Maria - Que desatino papai? O senhor conversou com ele?

Patrício - Nem precisava. A mãe da menina viu tudo!

Maria - Viu o quê?

Patrício - Ora minha filha, você é muito Nova pra se meter nessas coisas...

Maria - Eu não sou nenhuma criança papai, sei que o senhor vai cometer uma grande injustiça.

Patrício - Calada! Eu sou o dono dessa fazenda e faço as leis por aqui. Agora chega! Leonor, tire essa fedelha daqui.

Maria - Mamãe, a senhora não pode concordar com isso.

Leonor - Seu pai está certo, Maria. O pai de João entendeu a situação e foi conversar com o filho.

Maria - Cadê aquela dissimulada? Onde está Cláudia? Cláudia!

Cláudia - A senhorita me chamou?

Maria – (Dá um tapa no rosto de Cláudia) Sua ordinária! Miserável! Por que está fazendo isso?

Cláudia - Você está com ciúmes!

Patrício - O quê?

Leonor - Que história é essa menina?

Cláudia - É isso mesmo, minha patroa. A sua filha está se encontrando com João as escondidas.

Maria - Cretina! Dissimulada!

Patrício - Maria Rosália Bitencourt, isso que Cláudia está falando é verdade?

Cláudia - É a mais pura verdade seu Antonio Patrício! Eles se encontram no canavial...

Patrício - É por isso que você não quis estudar no Recife, não é? E anda cheia de amores comigo, colocando a música de Vicente Celestino na vitrola? Sua descompreendida! Interessada num miserável que não tem nada pra lhe oferecer! Isso tem cabimento?

Leonor - Diga que não é verdade querida! Vamos, diga ao seu pai que Cláudia está mentindo.

Maria - É verdade mamãe! Eu amo o João!

Patrício - Onde já se viu crianças amar? Crianças como você amam os pais, os irmãos, os estudos...

Leonor - Filha, você tem apenas dezesseis anos, nem terminou seus estudos. Isso vai ser um prato cheio pra Santo Amaro, o nome da nossa família vai estar na boca do povo...

Patrício - Tudo por conta de uma fedelha tirada a rebelde. Com tantos rapazes de família na cidade...

Maria - João é de família papai, o senhor sabe disso.

Patrício - Família de lavrador, família de dois homens, nem mãe aquele miserável tem.

Cláudia - Mas eu gosto dele assim mesmo seu Patrício.

Patrício - Eu sei, mas vocês são da mesma classe. O que eu não quero é a minha filha envolvida...

Maria - Nós nos amamos papai e ele não vai casar com essa mentirosa.

Leonor - E se ele quiser casar?

Cláudia - Ele quer sim, seu José já falou com ele e ele aceitou.

João - Mentirosa! Porque não fala a verdade?

Patrício - Que ousadia é essa João? Quem lhe autorizou a entrar na minha sala?

João - Eu vim procurar Maria, ouvi vocês falando e como não sou covarde entrei para esclarecer os fatos. Essa menina mentirosa e a mãe dela inventaram uma história com o meu nome, mas já ouvi o que me importava. O amor da minha vida não acreditou em nada!

Patrício - Que amor da sua vida seu fedelho? Você não tem nem aonde cair morto. Você e seu pai vivem na minha terra de favor...

João - De favor não, de exploração! Nós trabalhamos duro de sol a sol no canavial e a sua família fica rica a custa do nosso suor, mas as coisas vão mudar, esse mole vai se acabar...

Patrício - Calado seu atrevido, calado se não quer que eu mande lhe dar uma surra de cipó caboclo!

João - O senhor pode até manda me matar. Mas eu morrerei satisfeito por não ter deixado de amar Maria. Agora eu só quero a verdade. Fale Cláudia.

Cecília - (Invadindo a sala) Eu sei de tudo!

Patrício - Cecília! Seu Francisco Lopes sabe que você está por aqui?

Cecília - Meu pai sabe de tudo. Eu contei a ele o que o senhor está fazendo com o João e ele me disse que se João quiser pode ir com o pai dele trabalhar lá em casa.

Leonor - Eu duvido que seu Francisco Lopes tenha dito uma coisa dessas. Ele é um homem fino!

Cecília – É fino, mas é honesto e é justo. Ele não concorda com a atitude de vocês... agora Cláudia, diga na minha frente o que foi que aconteceu com você e João. Vamos, fale!

Cláudia - Minha mãe viu tudo.

Cecília - Mentira! Fale a verdade, ou vou contar a sua mãe quem é você, sua dissimulada!

Cláudia - Tudo bem. Eu gosto de João e descobri que ele estava se encontrando com Maria, aí eu pedi um beijo a ele pra não contar tudo à dona Leonor, quando ele foi me dar o beijo no rosto eu puxei ele pra cima de mim, me joguei no chão e gritei, mainha só viu ele caído por cima de mim, aí contei a minha versão e ela a creditou.

Patrício - Fora da minha casa, sua cretina, mentirosa, sirigaita! (Cláudia sai aos prantos)

Leonor - Sendo assim, eu acho que João não precisa casar, né Patrício?

Patrício - Eu vou mandar matar esse demônio que está desvirtuando a minha filhinha...

Cecília - Corre João! (João sai correndo)

Leonor - E você Cecília é melhor voltar pra sua casa. Acho que não é uma boa amizade para Maria.

Cecília - Isso quem vai dizer é ela, mas agora vou me retirar e garanto que não piso mais os pés nessa casa. Podem me chamar de desaforada, mas não podem mandar em mim, com licença!

Maria - Meu Deus, quanta maldade! A guerra acabou, mas o ódio parece que ficou plantado no coração das pessoas, quanta crueldade. Papai, estou decepcionada com o senhor e com a mamãe! Vocês são maus...

Patrício - Calada Maria! Você não tem o direito de falar em crueldade. O que é isso que você fez? Enganar seu pai e sua mãe, isso é correto? Agora você vai prometer que nunca mais vai encontrar esse moleque! (Entra José e pisca o olho para Maria que sai apressada)

José - Como prometi ao senhor, estou de volta para falar sobre a sua proposta, seu Patrício. Mas quero adverti-lo, meu filho não é um moleque!

Patrício - Que decepção hein José, que decepção, há mais de 20 anos que você trabalha pra nossa família e eu nunca iria desconfiar que logo você fosse trair a nossa confiança. Ou vai me dizer que não sabia de nada? Se seu filho tocar a mão em Maria, eu acabo com a vida dele. Você me conhece muito bem!

José - Eu prefiro não responder

Mas quero lhe informar

Que chega de sofrimento

Da dor que agüentei passar

Não guardo ressentimento

E o amor o senhor quer me tirar

Me traz mal pressentimento

Mas devo lhe avisar

Vou pro confinamento

Se sua mão no meu filho tocar

Mato até o seu último pensamento

Um pai que aprendeu a amar

Não conhece o descontentamento

Mas até a minha vida eu posso dar

Sem sentir arrependimento

Pois meu filho consagrado

Vai realizar outro casamento

Patrício - Que casamento, que casamento? A história acabou! Isso é uma ameaça?

José - Não. É uma promessa!

Leonor - Meu Deus, como o senhor está transformado! Parece ter arquivado ódio no coração...

José - Um dia a gente acorda senhora e descobre que na vida não vale a pena rastejar por ninguém, principalmente quando nos tornamos agentes de direitos esquecidos e sujeitos ultrajados pela justiça injusta dos senhores donos das terras de santo Amaro e quase todo o recôncavo baiano!

Leonor - Mas o senhor sempre foi um homem muito calado, até o jeito de falar está diferente...

José - A educação brasileira passou por grandes transformações nas últimas décadas, dona Leonor, não sei se a senhora sabe, mas houve uma ampliação significativa do número de pessoas que têm acesso a escolas. Mesmo assim, ainda falta igualdade de oportunidades que a educação deve proporcionar a todos os cidadãos...

Patrício - Esse seu jeito de falar não é o de um matuto criado aqui dentro da nossa fazenda...

José - Sabe o que é seu Patrício, tenho buscado a minha libertação e a do meu filho através da educação, mesmo sem ter faltado um dia sequer ao duro trabalho no canavial, aliás, uma herança do Engenho Real Sergipe, o rei dos engenhos reais de cana-de-açúcar de Santo Amaro da Purificação...

Leonor - Que história é essa seu José?

José - Essa prosa não vai durar muito tempo, dona Leonor, eu e meu filho estamos estudando à noite e o Dr. Vladimir de Sá, que é um advogado bastante conhecido na cidade, está me preparando para ingressar na Universidade, por tanto, estou indo embora da fazenda de vocês e, deixo claro que não sou um lavrador tapado como tantos outros que aqui trabalham, me calei por todo esse tempo, mas isso não é traição, é libertação pela educação!

(Música de Augusto Calheiro – Ave Maria (Maria e João passam o fundo carregando malas))

Violeiros - Foi assim que se deu o fato

Seu José deixou de lado a cortesia

Botou o patrão pra entender

Que ser educado não é ter covardia

E a exploração dos mais sabidos

Chega ao fim num certo dia

Em que a guerra que mata o homem

Também ensina a maestria

De gente que toma a hóstia

Por acreditar na eucaristia

E deixa a arma de lado

Pra agir com simpatia

O patrão mal acostumado

Não sabe rimar poesia

João - O Cordel de um amor adolescente

Deve servir de inspiração

Pra se amar com responsabilidade

E fazer jus ao coração

Maria - Porque pra amar não se tem idade

E ter preconceito é traição

Ao respeito e a honestidade

Quando explode uma paixão

Samba de Roda - O amor tem que ser verdadeiro

E pode virar nota de uma canção

É no samba do bate pandeiro

Que o povo faz a revolução

Agora é hora de contar outra história

Que nos ensine uma grande lição!

(Toque de pandeiro, João e Maria entram na roda com o povo do samba de roda, depois se beijam)

Chico Nascimento ou Magonleji
Enviado por Chico Nascimento ou Magonleji em 29/02/2012
Reeditado em 05/03/2012
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