Depoimento de um matuto
Estrofes: sextilhas
Rimas: A B C B D B
Número de estrofes: 24
Depoimento de um matuto
Quem pensa que matuto
É sujeito atrasado
Não conhece a realidade,
Nem o peso do seu fardo
Matuto é audacioso,
Sábio e valente um bocado.
Matuto é sujeito ligeiro
Não aceita enganação
Não tem o corpo mole
Derruba boi no chão
Acorda no dia cedinho
Pra cultivar plantação.
Vou contar pra vocês
A minha história vivida
De certos altos e baixos
Bastante agradecida
Ao Deus da criação
Toda a Ele arremetida.
Sou de uma família abastada
Só de saúde e irmão
Sem ter medo do trabalho
Em lavoura ou construção
Já até enfrentei cangaceiro
Com uma faca em cada mão.
Sou um sujeito capaz,
Embora sem muito estudo
Sempre trabalhei com ideias
A coragem é meu escudo
Quando quero aprender
A experiência me mostra tudo.
Não pude muito estudar,
Nem estou arrependido.
Aprendi tudo na vida
Sei de muito acontecido
Na história do Brasil
De um saber adquirido.
Com onze anos de idade
Bem aprendi a ler
Ouvindo versos de cordel
Também aprendi escrever,
Pois meu pai lia pra mim
Pouco antes de morrer.
Por isso não frequentei escola,
Mas isso não me prejudica
Sei tudo que preciso
Até planta que medica
Todo saber que adquiro
A experiência qualifica.
Certa vez conversei com um cara
Bastante abalizado
Formado em faculdade
Não me lembro em qual estado
Não soube me falar
De Tiradentes enforcado.
Não soube nem recordar
O movimento Parnasiano
Dizia que Alencar
Era escritor mediano
Afirmava que era em Angola
Que ficava o Vaticano.
Não quero aqui dizer
Que sou bastante esclarecido,
Nem sou melhor que ninguém
Não sei de todo acontecido,
Mas sei dizer que não sei
Pra não ficar na vida descrido.
Na arte de aprender
Eu sou muito atrevido
Não aceito tudo que dizem
Em muita coisa duvido
Quando não é coisa boa
No mesmo instante invalido.
Hoje eu sei ler bem
Já sem muita amarração
Muito aprendi com os livros
Sem fugir da plantação
Cultivava no planteio
Botava ideias em ação.
Ouvindo um político falar
Percebi sua ambição
Prometia o que não devia
Enganava a população
Somente aparecia no tempo
De se realizar votação.
Um dia entrei num bar
E veio uma mulher ligeiro
Pedindo uma bebida
E uma parte de dinheiro
Eu disse: — Sua proposta é cara
Procure um forasteiro.
Depois que bebi uma cachaça
Saí do bar sem demora
Na rua encontrei o político
Que veio logo na hora
Pedindo um voto eu disse:
— Peça ao finado Zé Hora.
É exatamente dessa forma
O regime Republicano
Capitalista à vontade
De politicagem e engano
O político fica mais rico
O pobre vai pelo cano.
Certa vez na lavoura
Armei uma engenhoca
Pra pegar um ladrão esperto
E meter-lhe a mão na broca
Ao lado da plantação
Botei o cachorro na toca.
Quando o ladrão veio
De susto soltou um grito
Saiu correndo pro mato
Num movimento esquisito
Sem saber que a engenhoca
Tirei de um conto maldito.
Falam de nível superior,
Mas eu não conheço a questão
Pra mim não tem importância
Essa denominação
Ninguém é melhor que ninguém
Seja ele estudado ou não.
Quero saber se o letrado
Derruba boi no chão
Se conhece a labuta
Da lavoura à plantação
Se sabe os meses de chuva
Sem fazer encenação.
Quero saber se o letrado
Na hora que dói a barriga
Conhece erva do mato
Chá que resolve fadiga
Se sabe se orientar pelo sol
Sem que isso ninguém diga.
Quero saber se o letrado
Numa granja de galinha
Saiba como se portar
Lhes dando ração e farinha
Se sabe tirar o leite
Apartando uma vaquinha.
De tudo o que eu sei
Aprendi na leitura e na lida
Matuto não é atrasado
Sua experiência o valida
Se quer saber de uma coisa
A curiosidade elucida.
Por isso a afirmação
De certas pessoas censuro
Quando falam que matuto
É atrasado, inseguro.
A experiência desqualifica
Isso tudo eu asseguro.
Por isso você que me lê
Preste muita atenção
Não vá pela ideia dos outros
Procure na sua razão
Matuto na faculdade da vida
Já possui graduação.