Décimas à Luiz Gonzaga Pinto da Gama*
Jorge Linhaça
 
Enquanto que alguns faziam poesia
Sendo notórios por esse seu feito
Tornavas real a tua utopia
Em mil tribunais, doutor em direito
Pois se o poema tem lá serventia
Nada conserta se nada for feito
Centos de escravos ali libertaste
Da condição que tu mesmo amargaste
 
Filho de fidalgo e de mãe escrava
Vendeu-te teu pai de forma ilegal
Pois que ao jogo a tudo entregava
Dando sumiço ao seu capital
Já tua mãe que sempre lutava
Na Sabinada e entre os Malês
Deportada ao Rio, sumiu-se de vez
 
Tua tez negra e tua carapinha
Deram as costas aos tons do lirismo
Sátiros versos encheram-te as linhas
Tu combateste a todo cinisno
E afrontaste todas camarilhas
Dias viveste com o bolso precário
Sem desviares-te do afã libertário
 
Como Gregório tu não te calavas
Ante os grandes, patifes, vilões
E no teu estro lançavas as clavas
sobre as cabeças dos novos barões
Se qualquer asno nobre se tornava
tu te ocupavas em romper grilhões
Ao narcisismo de outros poetas
tu respondeste com obras concretas
 
Parcos aplausos rendeu-te Erato
Pelos teus versos hoje esquecidos
Enquanto o coxo enchia teatros
Tu libertavas a mil desvalidos
Quem pois mais fez, de direito e de fato
pelos escravos sangrentos sofridos?
Se mil estátuas ao outro ergueram
Por seres negro logo te esqueceram
 
Quem haverá de fazer-te o resgate
Doutor escravo e negro baiano
Que três estados em grilhões andaste
que dum alferes foste ser mucamo
E que a sorte por fim encontraste
Aprendeste a ler e viste o engano
Para São Paulo logo te evadiste
Como cabo na milícia serviste
 
De jornalista ganhaste renome
Em tua luta pela liberdade
Pois esse ideal era a tua fome
em dar aos homens a tal igualdade
Coisa que hoje ainda nos consome
Quanto a mentira sufoque a verdade
tanto fizeste em tua penúria
que não lembra-te é coisa espúria
 
O diabetes enfim te venceu
mas permaneceu o teu ideal
à Consolação o povo acorreu
Como até então não se vira igual
Uma tribuna ali se ergueu
cem discursavam um adeus final
Tua grandeza no uso da lei
Pôs-te de escravo no trono dum rei.
 
Foste os poeta dos mil desvalidos
De quem tiraste os torpes grilhões
Talvez não sejas com'outro tão lido
Pois tua lira tocava outros tons
Pois só quem sabe os horrores vividos
é quem sofreu em si mesmo agressões
Somente esses sabem de verdade
O que é ansiar pela liberdade.
 
Cantem mil hinos, encenem-se peças
encham-se as salas ao som dos saraus
Louve-se ao coxo qual grande poeta
Não se despreze o seu ideal
Mas se resgate a história depressa
Pois tua saga não teve rival
Deem-se os louros a quem trabalhou
A quem c'oa lei seus irmão libertou.
 
Salvador, 21 de fevereiro de 2012
 
 
 
*
Filho de um fidalgo português (cujo nome ele jamais revelou), que gostava de pesca, caça, cavalos, jogo de cartas e de festas e que assim esbanjou toda fortuna que herdara em 1836 de uma tia, e de Luísa Maheu (ou Luísa Mahin), africana da nação Nagô, nascida na costa da Mina, liberta. Sua mãe trabalhava no comércio como quitandeira, sendo conhecida na cidade de Salvador (Bahia). Conforme texto autobiográfico do próprio Luís, a sua mãe foi detida em várias ocasiões, por se envolver em planos de insurreições de escravos, como a Revolta dos Malês (1835). Em 1837, acusada de participação na Sabinada, a sua mãe foi deportada para o Rio de Janeiro, onde desapareceu. Como nunca se converteu ao cristianismo, Luís só aos oito anos de idade foi batizado. Em 10 de novembro de 1840, o jovem, então com dez anos de idade, foi vendido ilegalmente por seu próprio pai como escravo, afirma-se que devido a uma dívida de jogo.
Luís Gama foi transportado como escravo no patacho Saraiva até à cidade do Rio de Janeiro, ficando com o comerciante Vieira, estabelecido na esquina da Rua da Candelária com a Rua do Sabão. Ainda em 1840 foi vendido para o alferes Antônio Pereira Cardoso num lote de mais de cem escravos, sendo todos trazidos para a então Província de São Paulo pelo Porto de Santos.
De Santos até à cidade de Campinas a viagem foi realizada a pé. Em Campinas ninguém o comprou por ser baiano. Os escravos baianos tinham fama de revoltosos ("negros fujões"). Já que o alferes não conseguiu vendê-lo, foi utilizado na sua fazenda em Lorena, onde aprendeu os ofícios do escravo doméstico - copeiro, sapateiro, lavar, passar e engomar.
Em 1847, quando tinha dezessete anos, o estudante Antônio Rodrigues de Araújo hospedou-se na fazenda do alferes. O jovem tornou-se amigo de Luís Gama e o ensinou a ler e escrever. Gama, conscientizando-se da ilegalidade de sua condição, evadiu-se para a cidade de São Paulo em 1848, inscrevendo-se nas milícias, onde deu baixa em 1854 na patente de cabo graduado, após ser detido por causa de um ato que o próprio Gama classificou como "suposta insubordinação" já que, segundo afirmou, apenas se limitara a responder a um oficial que o insultara. Nessa cidade, por volta de 1850, casou-se, e freqüentou, como ouvinte, o curso de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, que não chegou a completar. Em 1856, retornou à Força Pública, como funcionário da Secretaria da Repartição.
Na década de 1860 tornou-se jornalista de renome, ligado aos círculos do Partido Liberal. Entre 1864 e 1875 colaborou no Diabo Coxo e no Cabrião, de Angelo Agostini, no Ipiranga, Coroaci e em O Polichileno. Fundou, em 1869, o jornal Radical Paulistano, com Rui Barbosa. Participou da criação do Club Radical e, mais tarde, da criação do Partido Republicano Paulista (1873), ao qual se manteve ligado até à sua morte, em 1882. Por volta de 1880, foi líder da Mocidade Abolicionista e Republicana.
Advogado provisionado, passou a ganhar a vida como rábula, a partir de sua demissão do emprego de amanuense por motivos políticos, ligados à veemência da sua atuação jurídica a favor da libertação dos escravos. Com o apoio (inclusive financeiro) da Loja Maçônica abolicionista , Loja América, à qual pertencia, desde então despenderia a maior parte de suas energias em levar aos tribunais causas cíveis de liberdade.
Sua liderança abolicionista criou, em torno de si, o movimento abolicionista paulista. Gama, sozinho, foi o responsável pela libertação de mais de mil cativos - um feito notável - considerando-se que agia exclusivamente com o uso da lei. A sua morte, vítima de diabetes, comoveu a cidade de São Paulo, e o féretro foi o mais concorrido até então naquela terra. Foi sepultado no dia 25 no Cemitério da Consolação. A cada momento alguém subia numa tribuna improvisada, promovendo um discurso emocionado.
Um de seus amigos foi Antônio Bento, que continuou seu trabalho para a libertação dos escravos na Província de São Paulo.
Seu túmulo encontra-se no Cemitério da Consolação, em São Paulo

Literatura
Os poemas de Luís Gama estão vinculados à segunda geração do Romantismo no Brasil. A sua primeira obra veio a público em 1859, com o título Primeiras Trovas Burlescas do Getulino. Nela reuniu poesias satíricas que ricularizavam a aristocracia e os poderosos da época, tendo a primeira edição se esgotado em três anos.