DOTOR CAGANEIRA

João Martins de Athayde

Foi poeta cordelista

Um estilo diferente

Da poesia repentista

Escreveu muitos cordéis

Devorou muitos papéis

Esse poeta letrista.

Mil oitocentos e oitenta

No dia de São João

Veio ao mundo esse vivente

Entre fogueira e balão

Em Ingá de Bacamarte

Destinado para arte

E a cultura do sertão.

Depois mudou pro Recife

Onde adquiriu prestígio

Da pequena Paraíba

Saiu sem deixar vestígio

Poeta um tanto egoísta

Que aos colegas cordelistas

Causou muito prejuízo.

O livro UM AMOR IMPOSSÍVEL

Dois volumes escreveu

Mais 38 cordéis

Escritos com o nome seu

Um ou outro plagiando

Quando estava completando

Oitenta anos morreu.

Um dos seus cordéis antigos

Com humor e brincadeira

Eu reformo e reedito

Tirando alguma besteira

A história é interessante

E o título extravagante:

Chama-se Dr. CAGANEIRA.

“Sexta-feira da Paixão

Acordei de madrugada

Quando apalpei a barriga

Conheci que estava inchada

Por um arroto que dei

Do suco da panelada

Gritei pela ama

Ela me acudiu

Porém nada viu

O que fiz na cama

Tudo estava em lama

Eu muito borrado

Chamei o criado

Que logo chegou

Porém me encontrou

Bastante cagado.

Feijão dum dia pro outro

Com bagre de côco e bredo

Farofa de jerimum

Com fava de manhã cedo

Para quem não tem costume

Na barriga mete medo.

Por isso o repuxo

Não foi desse mundo

Abalo profundo

Eu senti no bucho

Queimando o cartucho

Foi grande a explosão

Deixei todo chão

Em mísero estado

Tudo impregnado

De bredo e feijão.

A ama por quem gritei

E em meu auxílio correu

Não chegou a entrar no quarto

De espanto empalideceu

Foi tão grande a infecção

Que a desgraçada morreu.

Dos pés à cabeça

Atolado estava

Já não respirava

Há quem enlouqueça

Com uma coisa dessa

Uma caganeira

Não é brincadeira

Assim de repente

Amolece a gente

A semana inteira

Quando o dia clareou

Não pude me levantar

Procurei sair da cama

Não tive onde me agarrar

Estava tudo emplastrado

E eu quase morto a boiar.

Saí do melado

Com muito trabalho

Quase me engalho

Com o tal guisado

Pois o bucho inchado

Jamais resistiu

E quando explodiu

De dentro pra fora

Eu disse: é agora

A tripa saiu.

Caguei que só o diabo

Camisa, meia e sapato

Caguei para toda gente

Numa cagada de fato

Na cabeça do orgulhoso

Despejei o maior jato.

Fiquei leso e tonto

Com o rosto escorrendo

Borrado e fedendo

Sem ver nenhum ponto

O resto não conto

Porque causa medo

A fava com bredo

É bicho sanhudo

Amostrou de tudo

De manhã bem cedo.

Depois de mil sacrifícios

Pude sair do atoleiro

Para vestir uma roupa

Tomei um banho primeiro

E debaixo do chuvisco

Passei quase o dia inteiro.

A cama, o colchão

Botaram no sol

Junto com o lençol

Estendido ao chão;

Que decepção

Contar eu não sei

Pelo que passei

Pela cama larga

Soltei a descarga

Prá tudo caguei.

Nesta vida tudo é trampa

Ninguém pode duvidar

Razão porque caguei tudo

E continuo a cagar

Pois em trampa a humanidade

Tem toda que se acabar.

Cheguei num lugar

Não pedi licença

Baixei a sentença

Danei-me a cagar

O povo a gritar

Chamou um soldado

Veio o delegado

Mas não me importei

Pois tudo deixei

Bastante cagado.

Dum miserável avarento

Que uma esmola nunca deu

Caguei um dia no cofre

Ele quando a mão meteu

O dinheiro virou bosta

E o bicho tudo comeu.

Uma sentinela

Que estava de guarda

Caguei-lhe na farda

Borrei toda ela

De bosta amarela

O pobre cristão

Pediu rendição

Gritou na guarita:

Que praga maldita,

Chame o capitão.

Ao passar em certa rua

Encontrei um almofadinha

Que estava conversando

Com sua namoradinha

Interrompi a palestra

Caguei-lhe na taiobinha.

Muito veemente

Se achava a falar

Um parlamentar

Tribuno eloqüente

Porém de repente

Sente a falar rouca

Uma frase louca

Soltou no discurso

Não houve recurso,

Caguei-lhe na boca.

Quando estava a dizer missa

O padre da freguesia

Ao botar o pé no altar

O mau cheiro já sentia

Eu entrei cagando tudo

Desde o coro a sacristia.

O pobre vigário

Saiu a correr

E foi se esconder

No confessionário

Que triste fadário

Fui tudo borrando

De trampa estragando

Caguei na capota.

De uma devota

Que estava rezando.

Eu disse então sem demora

Já aqui ninguém me escapa

Vi dois noivos bolinando

E logo borrei o mapa

Na França caguei nas modas

E do juiz a casaca.

E segui cagando

Para toda gente

Que na minha frente

Fosse atravessando

Arrotos soltando

De toda maneira.

Pois a caganeira

Foi tão grande e forte

Que até mesmo a morte

Fugiu na carreira.

Um engenheiro de nome

E de fama conhecida

Quando media um terreno

De uma extensão comprida

Arrotei em cima da hora

Ele perdeu a medida.

Numa reunião

De um salão de dança

Afrouxei a pança

Caguei no salão

Deixei todo o chão

Duma forma tal

Que limão e sal

Não fizeram nada

Foi uma cagada

Quase que fatal.

Depois indo certa vez

Numa encrencada eleição

Houve um barulho terrível

Quando cheguei na sessão

Pois caguei dentro da urna

Derrotei a votação.

Nossa vida inteira

É uma cagada

E muito bem dada

De qualquer maneira,

É uma caganeira

Do plebeu ao nobre

Do fidalgo ao pobre

Cagões à vontade

Toda a humanidade

De bosta se cobre.

Passando por minha porta

Um cego pedindo esmola

O jeito que pude dar

Foi cagar-lhe na sacola

Uma cagada tão rala

Que o cego quase se atola.

Por trás dele vinha

Uma moça fogosa

Falando vaidosa

Com um almofadinha

Borrado eu já tinha

Muitas criaturas

E as duas figuras

Dos tais namorados

Tinham se atolado

Até nas cinturas.

De tudo quanto caguei

Ninguém censure de mim

Porque talvez que um dia

Precise cagar assim,

O mundo inteiro não passa

De uma cagada sem fim.

Série Parceria - Vol. I

Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 12/02/2012
Reeditado em 04/07/2014
Código do texto: T3494120
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