A SAGA DO CANGACEIRO COBRA CHOCA
Trecho do Cordel:
No tempo dos cangaceiros
Somente o mal imperava
Volante matava gente
Coronelismo ajudava
Faziam e aconteciam
Mas os jornais que assistiam
Só a Lampião culpava.
Essa nódoa que manchava
Os sertões antigamente
Não é coisa do passado
Pois existe no presente
Muito se ver hoje em dia
Ladrão rico em mordomia
E preso pobre inocente.
No Brasil antigamente
Na etapa cangaceira
Havia essa grande mancha
Por quase toda ribeira
Do meu Nordeste esquecido
Pobre sendo perseguido
Rico fazendo besteira.
Na cidade de Teixeira
Interior paraibano
Havia naquele tempo
Um sujeito bem estranho
Desses pobres, indigente
Porém metido a valente
Desassombrado e insano.
Esse tipo desumano
Quando chegava na feira
Enchia a cara de pinga
Pegava a fazer besteira
Brigava desassombrado
Com civil ou com soldado
De foice, soco ou rasteira;
Entrava na capoeira
Passava um mês escondido
Se encontrava cangaceiro
Sempre era bem recebido
Porém logo ele saía
Porque sozinho sabia
Que estava mais protegido.
O nome desse bandido
Se essa fama lhe toca
Era Antônio Rodrigues
Porém naquelas bibocas
Pela fama que trazia
Findou recebendo um dia
O apelido COBRA CHOCA;
Deixo esse curiboca
Aprontando onde morava
Pra falar de um coronel
Que em alto grau dominava
No Estado de Alagoas,
Vicentinho Vilas Boas
Era como se chamava.
Esse coronel morava
Pertinho de Murici
Um quilômetro mais ou menos
Sendo o mais rico dali
Grande latifundiário
Legítimo proprietário
Do Engenho Jundiaí.
Na cidade Murici
Era mal considerado
Pois várias mocinhas novas
Ele havia deflorado
Praticava atrocidades
E às responsabilidades
Ele nunca foi chamado.
Trabalhar praqueles lados
Alguns sertanejos iam
Com tres, quatro filhas moças,
Porque de nada sabiam
E nas garras do canalha
Terminavam na fornalha
E suas filhas perdiam.
No lugar onde ele ia
Se via uma menina bela
Logo seduzia a pobre
Findava junto com ela
Fingindo a todo momento
E depois o pagamento
Era matar o pai dela,
Praticando essas mazelas
Era assim que ele vivia
Por comum toda semana
Fazia e acontecia
Aquela sussuarana
Como uma fera tirana
E todo mundo o temia.
No engenho que ele geria
Em caldo não se falava
Mel também não se comia
E cana não se chupava
A vida era desumana
E no partido de cana
Um cabra não defecava.
Se alguém ali passava
E sem saber defecasse
Nos domínios dessa fera
E um empregado o pegasse
O inocente apanharia
E ainda comeria
A porqueira que ficasse.
Pra concluir esse impasse
Talvez o leitor conheça
Um ditado muito velho,
Lembro pra que não esqueça,
Pois o momento convida:
Quem com muitas pedras lida
Uma lhe cai na cabeça.
Viro a história às avessas
Com essa piranha na toca
Mordendo e matando gente
Como cobra em cana soca
Saciando seu desejo
Pra falar de um sertanejo,
O Antonio Cobra Choca.
Trabalhando com mandioca
Mas faltou água no chão
A pobreza se acabando
Sem o milho, sem feijão
Tudo que tinha acabou-se
E Cobra Choca obrigou-se
A deixar o seu sertão.
Como ave de arribação
Viajar foi o seu plano
Abraçou a sua mãe
Despediu-se do seu mano
Saiu pra ganhar dinheiro
E foi fazer paradeiro
No Estado alagoano.
Tecendo, fazendo plano,
Passou em Curimati
Canta Galo, Ponta Negra
Até que viu de per si
Extensos canaviais
Que não terminavam mais,
Era o Engenho Jundiaí.
Mas ao passar por ali
Deu-lhe uma dor de barriga
Entrou no canavial
Pra aliviar a fadiga
E quando estava abaixado
Um guarda mal encarado
Chegou procurando briga.
Pra começar a intriga
O vigia com dureza
Disse, «Cabra, tu agora
Come essa safadeza!
E ainda vai apanhar
Sem conversa e sem chorar,
Pois aqui não tem moleza.»
Cobra Choca com firmeza
Tratou logo de falar:
«Sim senhor, eu como tudo,
Não precisa se alterar!»
E sem conversa ou porfia
Saltou, pegou o vigia
Na intenção de o enforcar.
O vigia quis gritar
Mas já estava aberturado
Cobra respondeu-lhe logo:
«Se gritar tá derrotado,
Seu cara de muriçoca!
É com Antônio Cobra Choca
Que voce está pegado!»
E arrastou o coitado
O pobre se maldizendo
No lugar da seboseira
Ia apanhando e comendo
Chorando desconsolado.
«Se não comer é sangrado!»
Cobra Choca ia dizendo.
Terminou, saiu correndo
Que nem para trás olhou
E Antônio Cobra Choca
Pra casa grande marchou
Sorrindo feito um incréu
Chamou pelo coronel
E ele se apresentou.
Vicentinho perguntou:
- Que deseja, amigo meu
Aqui por este terreno?
Cobra Choca respondeu
Todo alegre e prazenteiro:
- Desejo ganhar dinheiro,
Pois o meu sertão morreu.
Do Teixeira venho eu
Do Sítio da Pororoca
A minha mãe é Jacinta
Meu pai é Pedro Janoca,
Nunca tive matrimônio.
Meu nome próprio é Antônio
O apelido é Cobra Choca.
O coronel desemboca
A rir antes de dizer:
- Em que o senhor trabalha?
- Em tudo que aparecer
Em qualquer hora e lugar,
Eu sou homem pra topar,
Só boto pra derreter.
- Tenho emprego pra voce.
Aquela barraca lá
É seu ponto de dormida
Pegue seus troços e vá
Logo pro seu aposento
Que aqui a volta é por dentro
Como barba de embuá!
- Vorta se faz desmanchar,
Cobra Choca respondeu,
- Porque eu também sou homem
Ninguem é mais do que eu.
Comigo a coisa é assim,
O cabra que der em mim
Pode saber que morreu.
Quando o dia amanheceu
Juntou-se toda maloca
Foram na dita barraca
Chamar Antonio Cobra Choca
Deram-lhe uma roçadeira
E junto com a cabroeira
Foram para uma broca.
Lá no eito Cobra Choca
Brigou com um tal Gavião
Meteu-lhe a foice num braço
Que o braço caiu no chão
E foi trabalhar sozinho
Da casa grande pertinho
Bem nas vistas do patrão.
Deixe esse caso em questão
Para falar de Isabel
Menina de quinze anos
Filha do tal coronel
Tinha as feições de um poema
Bonita como Iracema
Virgem dos lábios de mel.
Certo dia Isabel
Ia alegre e cantando
Passou por perto onde estava
Cobra Choca trabalhando
Travessa, bem safadinha
E com a roupa curtinha
Bonitas pernas mostrando.
Cobra Choca observando
Disse: - Oh. menina aloprada
Das pernas do meu agrado!
Perto tinha um camarada
Que ouvindo ele falar
Ao coronel foi contar
Aproveitando a parada.
A fera endiabrada
Mandou lá um portador
Pra buscá-lo sem demora
Cobra Choca disse, - Eu vou,
De ir lá mesmo estou afim.
Quando chegou disse assim:
- Às suas ordens, senhor.
Mal Cobra Choca chegou
Perguntou-lhe o coronel:
- Disseram-me que voce
Está um lobo cruel
Afoito, mal educado
E andou botando olhado
Nas pernas de Isabel...
Respondeu-lhe: - Coronel,
Quem disse não tá errado.
Vi as pernas da menina
E fiquei ababacado
Com a cara de pamonha.
Mais outra coisa disponha
Que eu não gosto de recado.
Coronel, mal humorado,
Disse: - Eu mandei lhe chamar
Pra saber se era verdade
O que vieram me contar
Agora estou satisfeito
Pois eu gosto do sujeito
Que só diz pra sustentar.
Cobra Choca viu entrar
Isabel com um ar de riso
Ficou muito admirado
Quase perdia o juizo
Despediu-se e foi embora
Pensando caminho a fora:
«Do teu amor eu preciso!»
Do precipício consciso
Uma cartinha anotou
E no outro dia quando
O fim do dia chegou
Pelo escuro se esquivando
Da casa se aproximando
A carta a ela entregou.
Pra fugir a convidou
E marcando logo o dia
Ela respondeu que sim
Com perfeita garantia
Novamente lhe sorriu
Deu-lhe um beijo, ele saiu
Pra barraca onde vivia.
Até que chegou o dia
Na hora se dirigiu
Meia noite mais ou menos
Com a mocinha saiu
Palestrando no caminho
E o coronel Vicentinho
Tava dormindo e não viu.
Tão logo o dia surgiu
A criada fez na hora
O café e acordou
O coronel sem demora
Chorando de comoção
Foi lhe dizendo: - Patrão,
Dona Isabel foi embora!
Coronel naquela hora
Ficou igual um leão
Chamou Coruja e Castelo
Aratanha e Putrião
Os seus cabras mais valentes:
- Vão imediatamente
Numa arriscada missão.
Cobra Choca é um ladrão
- Disse assim o coronel -
Pois ontem de madrugada
Me carregou Isabel,
Tirou minha filha de mim.
Peguem e lá mesmo dê fim
Façam um trabalho cruel.
A bandidagem fiel
Lhe respondeu, - Apois bem.
O coronel disse: - Agora
Resolvi e vou também
E na hora que encontrá-lo
Eu mesmo quero sangrá-lo
E bebo o sangue que tem.
Com cinco léguas além
No sítio do Rafael
Os quatro cabras seguindo
Tendo a frente o coronel
Na entrada de uma loca
Avistaram Cobra Choca
No colo de Isabel.
Quando ela ouviu o tropel
Valeu-se logo em chorar
Porém Cobra Choca disse:
- Sente-se, vá descansar
Que não dá nem meia hora
Pois voce vai ver agora
Cobra Choca vadiar.
Armou-se pra esperar
Até que a tropa veio
Abriram fogo cerrado
E Cobra Choca no meio
Firme enfrentando a disputa
Com dez minutos de luta
O estandarte era feio.
Tinha tres mortos no meio
Daquela situação
Só Castelo estava vivo
Mas quase morto no chão
No aceiro do caminho,
O coronel Vicentinho
Viu preta a situação.
Aí mudou de feição
Ao ver a fera assanhada
Partindo para pegá-lo.
Sem poder fazer mais nada
Vicentinho acovardou-se
Viu que morria, entregou-se
Mesmo no meio da estrada.
Não me mate, camarada,
Suplicou o coronel,
Que eu lhe dou com muito gosto
A minha filha Isabel
Pra sua esposa e amante
E serás de agora em diante
Meu genro amado e fiel.
Foram onde estava Isabel
O pai com ela abraçou-se
Ele suspendeu as armas
O barulho terminou-se
Acabou-se todo empenho
Voltaram para o engenho
O prazer manifestou-se.
E Cobra Choca casou-se
Com sua noiva Isabel
Ficou o maior amigo
Da sogra e do coronel
Reinou a paz e a alegria
E o coronel dizia;
- Cobra Choca é cascavel!
O engenho virou um céu
Cobra Choca prazenteiro
O coronel Vicentinho
Deixou de ser cangaceiro
Ria de orelha a orelha
Ficou igual uma ovelha
Depois que apanhou primeiro.
No engenho do desordeiro
Hoje não tem mais maloca
Come-se mel à vontade
Ali todo mundo emboca
E caga até no terreiro,
Graças a Jesus, primeiro,
E a Antonio Cobra Choca.
Série Cangaceiros - Vol. XXXVII