SILA - UMA CANGACEIRA DE LAMPIÃO
Trecho do Cordel:
Mais um caso do cangaço
Eu pretendo registrar
Pra não ser mais uma história
Que o tempo teima em apagar
Ou deixar no esquecimento.
É mais uma que apresento
À cultura popular.
Quando a vida não nos dá
Tudo aquilo que queremos
Nem sempre a vida que é má
Nem sempre mal nós vivemos
São consequências da vida
Nos metendo em investida
Que nem sempre conhecemos.
No cangaço nós tivemos
Homem de instinto forte
Mulher de sangue na veia
Que nunca temia a morte
Fosse na fuga ou na luta
Sempre enfrentava a disputa
A ferro, a fogo ou no corte.
Mulher de aspecto forte
Foi Sila de Zé Sereno
Dócil igual um cordeiro
Perigosa igual veneno
Que contou-nos sua história
De derrota e de vitória
Em tom suave e ameno.
Seu mundo, embora pequeno,
Mas se sentia abastada
Ilda Ribeiro da Silva
Costureira aposentada
Filha de um homem sensato
Viveu caçada no mato
Morreu homenageada.
SILA a alcunha adotada
Em criança começou
Foi uma sobrevivente
Do massacre que matou
Lampião, a companheira
E parte da cabroeira
Quando o cangaço acabou.
Assim ela nos contou
Como tudo aconteceu
Família de oito filhos
No sexto ela nasceu
Em uma pequena herdade
Com seis anos de idade
A sua mãe faleceu.
Com a irmandade conviveu
Seis irmãos e outra mana
No lugar Poço Redondo
Na caatinga sergipana
Às margens do São Francisco
Onde havia sempre o risco
Da má sorte desumana.
Pra sorte ser mais tirana
Aos doze o pai faleceu
Ela já uma mocinha
Cumpria o destino seu
Na fazenda com a irmandade
Até que uma certa tarde
O infortúnio aconteceu.
«Na fazenda apareceu
Um grupo de cangaceiro
Entraram de casa a dentro
Mas não queriam dinheiro
Falaram pra meu irmão
Preparar uma refeição
Com o galo do terreiro.
Esse chefe cangaceiro
Era ele, Zé Sereno
Zé Baiano e outros três
O grupo era pequeno
Mas era ameaçador,
Quando a meu irmão falou
Mostrou um tom mais ameno.
Mas foi ele, Zé Sereno
Que apontou pro meu lado
Dizendo pra eu levar
Onde eles tava acampado
Num riachinho que tinha
O galo pronto e farinha
Depois de estar cozinhado.
Fiquei com o corpo gelado
Respondi em tom feroz,
- Não vou! Mas o meu irmão
Respondeu em baixa voz
Vá atender seu pedido
Se não for esse bandido
Vem e mata todos nós.
Fui beirando uns aveloz
A Zé Baiano entreguei
A comida que levava
Por sorte não derramei
Ele disse: - Não se avexe
Com tu aqui ninguém mexe
Então eu me conformei.
E quando em casa cheguei
Me preparei pra fugir
Zé Sereno entrou dizendo
- Num adianta tu sair
Tu vai ser minha mulher
E se tu num me quiser
Mato todo mundo aqui.
Agora eu vou sair
Esse é nosso segredinho
Mas daqui a oito dias
Eu chegarei bem cedinho
Disse isso e foi embora
E eu sentí naquela hora
Faltar chão no meu caminho.
Com oito dias certinho
Chegou Zé com Luis Pedro
Por mim e pela família
Eu mantive o seu segredo
Acabou minha alegria
E eu que era sempre fria
Mas dessa vez sentí medo.
A mulher de Luís Pedro
Nenem, sempre sorridente,
Chegou-se pra mim e disse:
- Se despeça dos parentes
Se arrume sem demora
Pois hoje tu vai embora
Viver em outro ambiente.
Não precisa estar temente
Porque eu tou com voce
Sua vida vai mudar
Daqui pro amanhecer
Eu saí sem levar nada
Tremendo e muito apressada
Pra meu irmão não me ver.
Nada podendo fazer
Não quis me rebelar mais
Entramos de mato a dentro
O Zé na frente eu atrás
Chorar não adiantava
Parece que flutuava
Por aqueles carrascais.
O Zé na frente eu atrás
Pisando aqui e ali
Era tudo muito estranho
Nenem só fazia rir
Me amparando jeitosa
Brincava, dizia prosa
Tentando me distrair.
Vi Zé Sereno sorrir
Jeitoso, bem parecido
Devido ao temperamento
Ganhara esse apelido
E quando a noite chegou
Primeira noite de amor
E ele virou meu marido.
Todos muito prevenidos
E eu cada vez mais distante
Quando menos se esperava
Topemos uma volante
Foi um espernegue feio,
Fugimos do tiroteio
Correndo pela vazante.
Nessa luta de gigante
Somente Neném morreu
A minha primeira amiga
E mal nós se conheceu
Pra polícia era um a menos
E no bando de Zé Sereno
De mulher só ficou eu.
Meus ouvidos emouqueceu
Com tanta zuadaria
Fomos encontrar Lampião
E outra briga toparia
Eu indefesa no bando
Por ali fui começando
A aprender como fugia.
Lampião repreendia
Sereno por me levar
Pois eu era uma criança
Mas Zé não quis conversar
Dizendo que me queria
Que finalmente eu seria
A mulher pra ele casar.
Maria veio me pegar
Pra barraca levaria
Me deu um vestido dela
Que o meu não mais servia
Estava todo manchado
E tinha até se rasgado
Quando no mato eu corria.
Nunca vi selvageria
No meio dos cangaceiros
Lampião era simpático
E nunca foi desordeiro
Ele se preocupava
Com o bando que comandava
Era um grande companheiro.
Passei dois anos inteiro
No bando de Lampião
O Zé Sereno era chefe
Comandava uma guarnição
Os homens quem comandavam
Mas no bando respeitavam
Da mulher a opinião.
No dia que Lampião
Morreu com os outros do bando
De noite eu vi uma luz
Acendendo e apagando
Até mostrei a Maria
Ela disse que sería
Os vaga-lumes passando.
Era os «macacos» chegando
Pronto pra nos atacar
No outro dia cedinho
Zé saiu para rezar
E haja tiro descendo
Saí descalça, correndo
Sem quase nada enxergar.
Na luta pra escapar
Saí em toda carreira
Bala zunindo ao meu lado
Gente no chão era esteira
Peguei na mão de Enedina
Fugi da carnificina
Sangrando na espinheira.
Mas vi minha companheira
Ser do meu lado atingida
Com uma bala na cabeça
E cair no chão sem vida
Com ela eu também caí
E me arrastando saí
Pela terra ressequida.
E haja bala perdida
Em cima de mim passando
O cangaceiro Criança
Também vinha se arrastando
E saímos lado a lado
Trezentos metro abaixados
Do inferno se afastando.
Se ouvia «macaco» gritando:
«Acertemos Lampião!»
Zé apareceu nas moitas
Abrandou meu coração
Mas onze a vida perderam
E dentre esses que morreram
Havia um meu irmão.
Diferente e Mergulhão
Entraram para o cangaço
Estavam sempre comigo
Até o dia do fracasso
Mergulhão foi nesse dia
Diferente, à revelia
Sumiu no tempo e no espaço.
No meio do estardalhaço
Fugimos sem proteção
Escondidos pelo mato
Sem qualquer informação
Sereno tomou a frente
Mas tudo era diferente
Sem o chefe Lampião.
Ecoava no sertão
As festanças nas cidades
O povo comemorava
Aquelas barbaridades
A morte de Lampião
Também surtiu comoção
Em muitas localidades.
Mas teve uma novidade
Pra toda cangaçaria
O presidente Getúlio
Ofereceu anistia
A todos da nossa classe,
Aquele que se entregasse
A polícia não prendia.
Sereno reuniria
Os cabras que resolveram
Fomos pra Jeremoabo
E um bocado se renderam
Entramos pela cidade
Foi a maior novidade
E os «macacos» não prenderam.
Até nos ofereceram
Comida e hospedaria
Só não saísse da vila
Pra esperar a anistia
E eu fui mais Zé Sereno
Na igreja e resolvemos
Casar nesse mesmo dia.
Veio a tal da anistia
A nossa vida mudou
Moramos uma temporada
Na capital Salvador
São Paulo, Minas Gerais
E outros lugares mais
Até que o tempo passou...»
Zé Sereno se findou
No ano de oitenta e dois
Sila em dois mil e cinco
Também daqui se transpôs
Ainda há muito estardalhaço
Sobre o tempo do cangaço...
Porém eu conto depois.
De um galego descendente de Holandesa com
Português e uma bisneta de Índia Panati, nas-
ceu José Medeiros de Lacerda, mais um des-
cendente das sete irmãs da Cacimba da Velha.
Aos 8 anos, já escrevia estórias do seu imagi-
nário, como O Aventureiro, descrevendo a saga
de um garoto criado entre as matas da Várzea
Comprida na Fazenda Passagem do Meio, de
seus avós maternos. Com 12 anos, extremamen-
te amante dos estudos, viu seu sonho desmoro-
nar-se. Só homem já feito conseguiu voltar às
salas de aula, de onde nunca mais saiu. Primeiro
como aluno, depois professor. O sangue de Tro-
peiro da Borborema herdado do pai, o fez percor-
rer o Brasil, de Roraima ao Paraná, carregando
seus sonhos, compondo seus poemas, idealizan-
do seus cordéis. No teatro foi ator, dançarino, co-
reógrafo, autor, na poesia um aprendiz, do Cordel
é professor. Em Santa Luzia, constituiu família, em
Patos concluiu seu curso de Letras na atual FIP.
Hoje se realiza vendo seus cordéis lidos, em todos
os Estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste brasi-
leiros. E mais feliz fica, vendo várias escolas pelo Brasil
a fora vivenciando sua poesia em sala de aula. Seus cordéis
têm cunho educativo, informativo, histórico, nunca
usados como desabafos íntimos, válvulas de escape
diante das pressões existenciais. Hoje com mais
230 folhetos escritos, faz da poesia sua terapia ocu-
pacional. Seus netos, e sua primeira bisnetinha lhes
proporcionam tudo que ainda lhe resta para se emo-
cionar, procurando dar-lhes o que ele não teve direito
em sua infância... Seus pais, de saudosa memória,
foram apenas o começo de sua história!!!...
Série Cangaceiros - Vol. XXV
José Lacerda