Salvador abandonada

Salvador Pitoresco

Jorge Linhaça

Nesta cidade, dita Salvador

Muito há que se ver e se enxergar

Sentir no corpo o forte calor

Sentir na pele a brisa do mar

Aqui não falta paixão e amor

Mas falta o dom de saber os usar

Vejo nas faces alegria e dor

Como o vejo em outro lugar

As bicicletas, carrinhos de mão

Viram empresas e tudo oferecem

Vão suas rodas riscando o chão

Enquanto os sonhos ao largo fenecem

Os jornaleiros ind'andam a pé

Como se a vida parasse no tempo

Como diz o Gil, é andar com fé

Buscando a sorte a cada momento

Como a moeda, aqui duas faces

Quem vê a cara não vê a coroa

Se aqui vieres espero não passes

D'olhos vendados por mais que te doa

Triste abandono do tal João Henrique

Que deixou órfão um povo fraterno

Findo o mandato quem sabe se pique

E vá governar o fundo d'inferno

Linda cidade de muita fartura

Pr'uns tudo "farta" pra outros é farto

Quem se entrega ao deus da usura

Melhor seria morresse no parto

Eis que desponta mais um carnaval

Ah que delicia, beijar e rolar...

E tome abadás por centos e tal

Para os bolsos d'alguns engordar

De popular, essa festa virou

Coisa d'elite em seus camarotes

Sinal dos tempos, alguém já lembrou

Enquanto abria mais uns papelotes

Ah, o carnaval, que vende ilusões

Dos subempregos mais que temporários

Pobres cordeiros com calos nas mãos

Para proteger donos milionários

Finda a semana da festa de momo

Foi-se a renda de mil badameiros

Dia e noite driblando o sono

Catando latas pra fazer dinheiro

Nos camarotes dos donos da festa

Sobra fartura e falta bom-senso

O povo vê carnaval pelas frestas

Pulando ao lado dos trios imensos

Tome cerveja: skol, periguete

Pra amortecer a indignação

Bem lá no alto as coxas da Ivete

E lá embaixo o que estiver à mão

A cada ano que vai se passando

Mais a cidade se torna vazia

Quem é local, soteropolitano

Pega as tralhas, se manda pra ilha

Quem dera a grana que por aqui rola

Que o turismo nos traz aos roldões

Desse saúde e boa escola

Ao invés de ir pras mãos de Joões

Meu São Gregório de Mattos e Guerra

O que tu viste inda hoje eu vejo

O torpe poder inda hoje impera

Povo sugado por uns percevejos.

Mudam as moscas, a merda cá fica

Vive de esmolas o povo gaiato

E numa terra tão boa e tão rica

Tanto contraste é um desacato

Ah, São Gregório, da boca ferina

Que triste a sina deste purgatório

Como ofertório meu estro ilumina

Guia-me a rima em tom meritório

Salvador, 30 de novembro de 2011

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