O CONTO QUE VEM DO MATO
Plantei nas terras de meu pai
Herança de meu avô
Toda a esperança que eu tinha
Para colher a ideologia
Que eu queria para o meu país
A quem diga que eu plantara
Sobre o solo que consola
A discórdia e a desgraça
Que ocorreu com minha família
Na ganância de vencer
Com a morte em seus caminhos
Que na emboscada do destino
Emboscou até o divino
Que somente conseguiu
Pegar nos braços um menino
O resto da negra família
Foi banida e devorada
No cuspe da ventania
Como terra que endurece com o tempo
E vira barro na enxadada
O que será deste menino
Tio não tem nem mesmo tia
Filho de negros nem a morte queria
O tempo ia passando
E negro ali crescia
Criando-se nas terras
Que ao olho mundo não existia
Dormia num avião
Que há anos ali caíra
Lá dentro havia um botão
Que apertado uma voz dizia
Palavras gravadas em fitas cassetes
Que iam e sempre vinham
E com a voz que ouvia
O negrinho manteve o dom de falar
Com outras fitas que ali havia
Com livros, revistas e gibis
Que o tempo lhe fez conhecer
Fazia do negro autodidata um novo ser
Ele lia sem entender
Falava sem escrever
Entre cadernos e documentações
Da velha tripulação
Espalhado naquele velho avião
Ensinava ao negro novo idioma
Outros povos outras nações
Um dia moço feito se viu no direito
De conhecer uma nova civilização
Ao chegar se assustou com a cidade
Vivera longe dos luxos e vaidades
Dentro da sua simplicidade
Deparou-se com uma realidade
Cheia de perversidade
Foi quando reconheceu seu corpo
Sentiu que a dor do homem
Sempre se manifesta por meio do coração
Conheceu na pratica a morte, a pobreza e a ruína
A dor, o amor e a corrupção
Chorou um sentimento que não tinha
A vida não combinava com tudo que ele lia
Cadê aquele paraíso que li, mas que nunca via
Onde está que todo mundo tem direito a família
Que a guerra era palavra só encontrada em poesia
Arrependido de tanta hipocrisia
Das noites que em claro não dormia
Resolveu voltar para a mata onde tinha tudo que queria
Pois todo o ser que lá viviam, viviam com alegria
O nego voltava pra mata de onde sair não devia
Mas o destino não lhe avisou
Que a vida na cidade é uma vida vazia
Violência é o bem praticado todo dia
Num tiroteio desavindo
E num tiro sem destino
Destinou-se lhe atingindo
O negro sentiu na alma
A dor da sua família
Que na fúria de um vento
E num breve momento
Levou tudo ao relento
Até as vidas miseráveis
Daqueles miseráveis negros
Com a dor que perfurava
Sua alma de fantasia
Montou no lombo de seu cavalo
Que ironia do destino
Chamava-se ventania
E rumou rumo à mata
A casa que lhe criou
Arrastou-se pela cidade
E sobre sua canoa de cipó entrelaçado
Na barriga do bambu
Desceu a encosta do rio
E ancorou no rio Iguaçu
Caminhou pra sua mata
Até o velho avião
Que a mata já encobria
Com as mãos ensangüentadas
Pegou o livro que um dia
O negro se alfabetizou
Pra saber quem era o autor
Que tantas mentiras contou
O mundo ali escrito
Não era o mundo que ele encontrou
E num olhar mais atento
O negro num movimento
Achou embaixo de um acento
A capa daquele livro
Que tanto lhe enganou
O livro chamava-se bíblia
O livro que todo tempo regia
As suas idas e vindas
E o negro não compreendia
Como o livro foi escrito
Por pessoas de varias idades
Que nunca sequer dormiram
Nas ruas dessas cidades
Onde foi que os autores
Leram essas profecias
De ter paz no coração
Que o mundo é um paraíso
Mas que triste fantasia
Então pensou consigo
Autores desconhecidos
Que contam suas vidas
Num livro considerado a mãe da filosofia
Viu que o sangue lhe escorria
Já não mais lhe aquecia
A palma do coração
Seus olhos então se fecharam
O braço, já não o sentia
Muito menos suas pernas
Que mesmo ao sol se mantiveram frias
Com a boca o negro cegueta
Pegou com os lábios um graveto
E rabiscou alguma das frases que ele sabia
Frases que acordaria a mente fechada da soberania
Com dificuldades deixou anotado
Molhando o graveto no sangue da vida
Escreveu no casco daquele velho avião
“Para aqueles que saem dos matos
Dos braços da terra forte
Em busca da cidade grande
Com suas casas gigantes
Com suas maquinas com força de elefante
Onde deus é um brinquedo
E o diabo é um infante
Saiba que na guerra dos homens
Não existe vitória
O que existe são vidas sem sorte
Que quem comemora no fim
É quem levanta o troféu da morte”
(Mauricio Ife)
Contato: maumau_cezar@hotmail.com