O martírio de Clara
Essa estória que vos conto é triste
Nela uma moça perde sua juventude
Se deixando levar pelo desengano
E se entregando em toda sua virtude
Perdendo o aval de ser gente um dia
Por ter amado com tanta plenitude
Certo dia, Clara vai até a mercearia
Comprar fósforos para acender o fogão
Era cedo da manhã e ela faria café
Para tomar com leite e comer com pão
Quando um estranho a interpela
Já tentando ganhar-la com persuasão
João já era um homem bem vivido
Que levava um mundo nas costas
Até que conheceu a menina Clara
E passou a perder nas suas apostas
Pois com o coração nunca se brinca
E dele não se tira quaisquer respostas
Era coronel nas terras das redondezas
E mandava em Brejo de Santa Cruz
Mas vivia nos botecos das esquinas
De onde só saia afugentado pela luz
Do primeiro raio de Sol da manhã
E saia seguindo seu passo cambaluz
Clara era uma jovem meiga e prestativa
Prendada, aprendera tudo com sua avó
Que foi quem a criou e tirou da orfandade
Mas a pobreza delas era um grande nó
Que as privava de ter perspectiva de vida
Assim Clara quis livrar-se desse caxingó
Seu pretenso marido era um boêmio nato
Como tal sabia encantar qualquer mulher
Pois era na noite tudo o que ele aprendia
A fazer das moças o que ele bem quiser
Mas nessa ele vira algo muito diferente
A moça ainda brincava de bem-me-quer
Essa menina era sozinha no mundo
Toda sua família era apenas sua vó
Então João foi traçando seus planos
Para conquistar aquela moça só
Já via que ela era muito carente
Mas a paixão dele não lhe teria dó
A moça tinha apenas quinze anos
Assim era coberta de ingenuidade
Na primeira vez que falou com João
Esqueceu-se que um dia teve vaidade
Não ligou para sua má aparência
Nem tão pouco à diferença de idade
Clara levou sua avó consigo
E casou-se com o coronel João
Mas a senhora não viveu muito
Não agüentou ver a decepção
De consolar Clara em prantos
E ver sua neta sofrer desilusão
Dia e noite era Clara trabalhando
Ela não dormia até amanhecer
Esperando João chegar da farra
Que sempre tinha que acontecer
Mas um dia ela não suportou mais
E fugiu para de João se esquecer
Acontece que toda noite Clara sonhava
E esperava a volta de seu primeiro amor
Seria Tobias, seu grande amigo de infância
Quem a salvaria daquele penoso andor
Pois voltara do Rio formado em médico
Para se transformar em seu salvador
Desde crianças os dois se gostavam
Mas cada um seguiu o seu destino
A menina Clara ficou órfã logo cedo
Tobias realizou seu sonho de menino
Viajou alhures atrás de sua formatura
Mas por amor morreria como paladino
Através dos fuxicos das comadres vizinhas
Clara soube que Tobias voltara à cidade
Pôs-se então a planejar seu reencontro
E recompôs-se em sua esquecida vaidade
Voltou a ser mais bela que uma princesa
Uma flor no desabrochar de sua mocidade
Mas João desconfiado das atitudes de Clara
Mandou um jagunço segui-la até a cidade
E o cabra viu de longe ela entrando numa casa
Amoitou-se e viu, com mais proximidade
Que Clara conversava com outro homem
Então voltou disparado para contar a novidade
Dito isto, João nem sequer pestanejou
Foi correndo recobrar sua honra perdida
Pegou Clara e Tobias num abraço saudoso
E com toda a coragem, vinda da bebida
Acertou os dois com uma única bala
Se tornando, assim, um duplo homicida
Do rosto de Clara escorreu uma lágrima
Mas ela teve seu momento de alegria
Por ter reencontrado quem tanto amara
E por se livrar, por instante, da agonia
E do grande sofrimento e martírio
De ter que mentir e fingir o que não sentia