A TRAGÉDIA DE SAPÉ - SEGUNDA PARTE
E o casal foi morar
Bem no estado vizinho
Um bairro bem popular
Chamado de “Moscouzinho”
Entre Recife e Moreno
Tendo um clima mais ameno
Muito bom pra fazer vinho
Compraram uma casinha
Na beira de uma lagoa
Sala dois quartos cozinha
A vista até que era boa
Muito melhor que Sapé
Nanu gostou tanto que até
Vivia sorrindo a toa
Maior foi sua alegria
Quando a feira conheceu
Tinha tudo que queria
Canela, cachimbo e breu
Fumo bom e mui cheiroso
Manguzá muito gostoso
Que era um manjar do céu
O destino tem das suas
Que parece brincadeira
No meio de tantas ruas
Colocou no meio da feira
Um velho pedindo esmola
Munido de uma sacola
Vestido uma molambeira
Nanu viu aquele trapo
Nem sequer desconfiou
Procurava genipapo
Pra fazer o seu licor
Mas aí o esmoler
Chegou perto da mulher
E gaguejando falou:
Pô-pô-ca-ca-ridade
Esmó-esmó-la para um cristão
Que dês-desde um ano de idade
Vi-vive na escuridão
Nanu então estremeceu
Pois logo reconheceu
Era a voz de seu irmão
Ali estava Fernando
Pagando por seu pecado
Dele foi se aproximando
Tomando certo cuidado
Deus sua ira derramou
Ao meu pobre irmão cegou
Deixando-o nesse estado
E com a voz embargada
Falou para o irmão:
Fernando não diga nada
Somente me dê a mão
Você vai morar comigo
Vou pagar o meu castigo
Por favor, não diga não.
Só podes ser tu Nanú
Disse ele gaguejando
Tentei correr para o sul
Acabei aqui ficando
No meio dessa feira
Dessa gente hospitaleira
Que me chama de Fernando
Depois se levantou
Tomaram uma ladeira
Nanú então perguntou
A razão de sua cegueira
Não sei se foi castigo
Mas uma coisa eu digo
Ser gago e cego é besteira
O pior é enfrentar
A consciência pesada
Não se poder perdoar
É ter a vida amarrada
Pela desgraça que fiz
Mereço ser infeliz
Não quero tua morada
Não adianta chorar
Sobre o leite derramado
Também quero me expiar
Por haver-te embriagado
Vou te dar casa e comida
Pois estou comprometida
Com teu destino traçado
Fernando aceitou
Mas com uma condição
De Sapé ele lembrou
Do coco a plantação
Quero morar no quintal
Pra evitar que o meu mal
Contamine o teu rincão
Nanú então mandou
Construir atrás um quarto
Pintou e rebocou
Aceitando assim o fato
De que o irmão escondido
Fazia melhor sentido
Considerando o seu ato.
Também ficou satisfeita
Com a sua providência
E tranqüila se deleita
Em paz com sua consciência
Mesmo estando no escuro
O irmão está seguro
Pela sua competência
Agora vamos deixar
Nanú e o seu licor
Pra história adoçar
Outro desvio eu dou
Quem se lembra de Severina
Aquela pobre menina
Que Valdemar desposou?
Quando o pai saiu
De Sapé envergonhado
Vendeu a casa e seguiu
O mesmo rumo tomado
Dois filhos ela já tinha
O Valdemir e a Lucinha
Valdemar era um danado
Com a mãe foi morar
Num pequeno bangalô
Pena que Valdemar
Emprego não arranjou
Resolveu ir pra São Paulo
Ver se achava trabalho
Seis meses por lá passou
Ao voltar foi trabalhar
Numa empresa de transporte
Que ficava em Jiquiá
Bairro de menor porte
Um ano ali ficou
Mas de novo viajou
Pra tentar de novo a sorte
E nesse vai e vem
Não conseguiu se firmar
Cresceu a prole, porém
Não tinha onde morar
Bibiu ficou preocupada
Mas uma irmã bem casada
Resolveu lhe ajudar
Todo Joaquim é Quinca
Todo José é Zé
E o povo assim brinca
E assim o povo quer
Todo Severino é Biu
Diga lá quem nunca ouviu
Que todo Manoel é Mané
Explicado o contratempo
Voltemos ao relato
Vamos ver um exemplo
De uma bondade de fato
Antônia a mais bondosa
Valente e piedosa
Resolveu tudo num ato
Foi no Alto do Nozinho
Comprou uma casa caiada
E doou-a com carinho
À irmã necessitada
Ela ficou tão contente
E disse pra toda gente:
Tonha é abençoada.
Aquela casa caiada
Não tinha a letra “i”
Não tinha água encanada
Mas tinha Valdeci
Um filho de Severina
Que aprendeu a fazer rima
É esse que está aqui
Contando esta tragédia
Em formato de cordel
Com um pouco de comédia
Pra adoçar o amargo fel
Que desgraçou a família
De João Pacheco e a filha
Com seu malvado papel
Depois dessa conversa
Vamos voltar pra Recife
Vou cumprir minha promessa
Exatamente o que eu disse
De verso em verso rimando
Às vezes até brincando
Mas juro que foi verdade, visse?
Maria teve uma menina
Branquinha como um ovo
E disse pra Severina
Já posso sonhar de novo
Ela vai ser uma artista
Vai ser capa de revista
Há de ver esse povo
Com oito anos de idade
Dançava bem o balé
Era a melhor da cidade
No bairro de São José
A mãe toda orgulhosa
Registrava tudo em prosa
Sem esquecer Sapé
Num diário anotava
Tudo o que acontecia
Quando a filha perguntava
Ela então lhe dizia:
São contas para pagar
Não deves te importar
Vai aproveitar teu dia
Um dia a garota
Pelo pai então perguntou
E a mãe toda marota
Finalmente lhe explicou
O seu pai mora distante
Ele é um comerciante
Português de mui valor
Quando a filha completou
Treze anos de idade
Pra São Paulo viajou
Pois houve a necessidade
De colocar no registro
O nome do pai, pelo visto
Filho sem pai é maldade
Na verdade a mãe queria
Inseri-la na herança
Pois no fundo ela sabia
Dos direitos da criança
Garantir o seu futuro
Um destino bem seguro
De fartura e bonança
E assim aconteceu
Foi grande a alegria
O pai a filha conheceu
Como a mãe assim queria
Retornaram a Pernambuco
O português ficou maluco
Vir com elas não podia
Interessante o que se deu
Ao descer do avião
A menina se contorceu
Quase caindo ao chão
A mãe viu-lhe a face exangue
No banheiro viu o sangue
Isso é menstruação
Na casa da mãe contou
Altamente extasiada
Ela nem sequer notou
A casa estava lotada
Os primos todos presentes
Arreganharam seus dentes
Numa gostosa risada
É que ficaram encantados
Com a beleza da prima
Os seus cabelos dourados
Mudaram até o clima
A manhã se fez bonita
O seu corpo de artista
Fez cair uma luz divina
Depois de cinco anos
Uma coisa aconteceu
Entre tantos desenganos
João Pacheco morreu
Não teve a oportunidade
De vingar-se da maldade
Que seu mano cometeu
Porém inda no leito
Já bem perto de morrer
Pensou no que tinha feito
E o que podia fazer
Chamou a filha de lado
Encontre aquele safado
Não deixe ele viver
Descanse em paz meu pai
Vou cumprir o seu pedido
Juro, um dia ele vai
Pagar pelo acontecido
Se ele ainda não morreu
Pode deixar que eu
Vou achar aquele bandido
Um dia Valdemar
Foi trabalhar em Jaboatão
Entre outras foi tomar
Um conhaque de alcatrão
Mas faltando a tal bebida
Outra foi oferecida
Um licor de artesão
Quem é que faz esse manjar?
Logo ele quis saber
Não podia imaginar
O que ia acontecer
Dizem que é uma mulher
Que veio de Sapé
Aqui se estabelecer
Valdemar ficou sisudo
Com aquela coincidência
Só uma mulher no mundo
Produzia aquela bênção
Juro que é aquela danada
Que também veio arribada
Fugindo da violência
Em casa ele contou
Pra mulher a novidade
Ela logo se alegrou
E seguiu para a cidade
Vou contar isso pra Tonha
Pois aquele sem-vergonha
Não merece piedade
Melhor esclarecendo
Quando a tragédia se deu
Todos ficaram sabendo
De tudo que aconteceu
E assim Nanú ficou
Marcada e o seu licor
Acabou como réu
E assim no outro dia
Maria do Carmo seguiu
Para achar a casa da tia
E também saber do tio
Valdemar também foi junto
Para ele aquele assunto
Lhe causava calafrio
Não foi difícil achar
A casa procurada
Só que ela deu azar
Porque estava fechada
Perguntaram aos vizinhos
Eles moram aí, sozinhos
Não sabemos de mais nada
Não posso ficar aqui
Esperando o dia inteiro
Pra casa tenho que ir
Pois o tempo é dinheiro
Outro dia a gente vem
Quem sabe titia tem
Notícias do desordeiro
Fernando lá no seu canto
Estremeceu de pavor
Quase grita, no entanto
Gemendo se segurou
Pela voz da sobrinha
Viu logo que ela tinha
No peito a mesma dor
Voltando ao apartamento
Penha se contrariou
De repente um tormento
A filha engravidou
O caso vinha rolando
E ela estava lutando
Pelo fim daquele amor
É que o homem era casado
E vivia com a mulher
Até parece que o danado
Descendia de Sapé
Pois armou uma armadilha
Pegando a sua filha
E depois dando no pé
Foi tão grande a dor
Que Carmo adoeceu
O coração não agüentou
E então ela morreu
Enterrou-se com seu ódio
Mas espere que o episódio
Não chegou ao apogeu
Feito então o arrolamento
Tudo se estabeleceu
Chegou enfim o momento
De pegar o que é seu
Lembrou-se do pai distante
O rico comerciante
Que um dia conheceu
Enquanto assim pensava
Um diário encontrou
Lembrou que a mãe o guardava
Devia ter mui valor
Tremendo foi para a cama
No peito sentiu uma chama
Pensou na mãe com amor
O diário então abriu
Nome da mãe no rodapé
O olhar logo subiu
E se espanta com o que vê
O título é intrigante
Mas a letra é elegante:
“A TRAGÉDIA DE SAPÉ”
“Vou contar a minha história
Desde o tempo de menina
Eu sonhava com a glória
Eu era bela e divina
Mas vi meu sonho abortado
Quando meu tio malvado
Resolveu mudar-me a sina”