AUTO - BIO GRAFIA - CEZARIO PARDO
Pediu-me um dia uma amiga
Para contar minha história
Fiquei um pouco acanhado
Por meu passado sem glória
Logo depois meditei
Pois chegar aonde cheguei
Já é uma grande vitória
Papai nasceu em Salinas
E mamãe em Águas Belas
Lá no Estado de Minas
Tenho traços dele e dela
Vim nascer em Mato-Grosso
Neste estado colosso
Em uma cidade bela
Eu nasci em Três Lagoas
Hoje sul mato-grossense
No interior de São Paulo
E também paranaense
Onde vivi minha infância
Vida de pouca abundância
Que comentário dispense.
O dia foi vinte e oito
E outubro foi o mês
Ano de cinqüenta e cinco
Chegou a hora e a vez
A data do nascimento
Que feliz neste momento
Eu relato a vocês
Eu sou de família pobre
Sem dinheiro, poder e fama
Já fui na minha infância
Office Boy de mulher dama
Tarefas para criança
Fazer pequenas andanças
Nada assim tão desumana
Como comprar-lhes cigarro
Que não era proibido
Ir chamar um charreteiro
Ou algum outro pedido
Era um menino lampeiro
Ganhava algum dinheiro
E achava divertido
Meu pai se chama José
Mamãe se chama Maria
Junto com os meus irmãos
Eles foram bóias-frias
A lavoura cultivando
Ora colhendo, ora plantando
Na luta do dia-a-dia.
Às vezes eu também ia
Nas colheitas de algodão
Ou também de amendoim
Dava uma pequena mão
E acredite quem queira
Fui menino da porteira
Nesse saudoso rincão
Na Paulista e Noroeste
Vivendo daqui dali
Por volta de Guararapes
Araçatuba e Birigui
Piacatu a mais querida
E outras que nessa vida
Eu nunca mais esqueci
Na Paulista vem Tupã
Rinópolis e Iacri
Também vizinha Herculândia
Lugares onde vivi
Mudamos pra o Paraná
Não gosto nem de lembrar
O frio que tanto sofri
Com uns dez pra onze anos
Ao Paraná me mudei
E por diversos lugares
Junto com meus pais rodei
E assim quero narrar
As cidades que lembrar
Nos próximos versos direi
Nas cidades de Rondon
Nova Olímpia, Douradina
De fazendas em fazendas
Cumprindo assim nossa sina
No Jardim Indo Ivaí
E em Alto Piquiri
Conheci lindas meninas
Por aqueles cafezais
Ou lavoura algodoeira
Lá na Cidade Gaúcha
Umuarama ou Carboneira
Em Brasilândia então
Na colheita de algodão
Muito trabalho e canseira.
Na lavoura de café
Um capinar, um ruar, 1*
Derriça, rastela e abana
Pra os grãos das folhas separar
Pra o carreador transportadas
Sacas identificadas
Pra o guarda-livros (2) anotar.
Puxa capucho da caxeta
Usando às vezes duas mãos
Põe no balaio ou na sacola
Que se arrastava pelo chão
Por arroba se ganhava
À tarde o patrão pesava
Na porta do barracão
Na pequena Brasilândia
Na cidade nós morávamos
Mas. era de bóia-fria
Que todos nós trabalhávamos
E nas frias madrugadas
Gente e bóia congelada
Lá na roça nós chegávamos
Mas logo o sol se abria
E a catação começava
Na catação de algodão
Até paquera rolava
Pois muitas moças bonitas
Com seu vestido de chita
A roça toda enfeitavam
Que por si só já é linda
Algodão, maçãs abertas
A de se perder de vista
Parece de lençóis, cobertas
Que por nós despedaçados
Nas tulhas eram guardados
Pra vender na hora certa.
Em Assis Chateaubriand
Lá na Gleba Cinco Mil
Sendo área em litígio
Naquele torrão hostil
Passamos quase miséria
Nosso arroz era quirera
E feijão pouco se viu
Essa quirera era feita
De milho socado em pilão
Carne era só de caça
Não tinha outra opção
Sem falar no desespero
De encontrar os pistoleiros
Com armas e munição
Mudamos pra Silveirópolis,
Nessa mesma região
Pra mexer com hortelã
Que estava em ascensão
Pra vida de nomadez
De lá mudamos outra vez
Pro café ou algodão
Paredes de pau-a-pique
De varote ou varão
Ou as ripas de coqueiro
Embarreados ou não
Ripas de taquara rachada
Nas paredes amarradas
Para a calafetação
Calafetação que eu falo
Eram nos embarreados
Para fazer o reboco
Usava o barro amassado
Mas ficava muito chique
Os ranchos de pau-a-pique
De barro eram rebocados
Opções de cobertura
Como a baixo se vê
Era de palha de arroz
De coqueiro ou de sapê
De bica,3 ou de tabuinha, 4
Que era a mais chique que tinha
Eu nunca vou me esquecer
Nessas residências típicas
Na roça a gente morava
Quando chovia de vento
Pra todo lado molhava
E sem falar nas goteiras
Que molhando a casa inteira
Sem molhar nada ficava
Assim em noites chuvosas
A mamãe nos acordava
E enrolava o colchão
Que num canto colocava
Para o colchão não molhar
Tínhamos que que procurar
Um lugar que não pingava
Meus pais e tios reuniam
À noite pra conversar
Contavam lindas histórias
Tão boas de se escutar
Princesa, príncipes, dragões
De reis e de assombrações
Que eram de arrepiar
Fantasmas e lobisomens
Lugares mal assombrados
Feitiços e bruxarias
Tempos de reinos encantados
Sobre o pai e a mãe do mato
E os mitos de lobato
Eram por eles contados
Meus pais não tinham dinheiro
Para brinquedos comprar
Por mais simples e baratos
Não tinha como nos dar
Sem brinquedos nessa idade?
Para a criatividade
Nós tínhamos que apelar
Carrinho de carretel
Ou cavalinho de pau
No mundo do faz-de-conta
Mergulhávamos a final
Jogo de bola de meia
No gramado ou na areia
Tudo era muito legal
E junto com as meninas
Brincávamos de casinha
Batizados de bonecas
Que faziam comidinha
Não tinha fanta nem coca
Mas tinha suco e pipoca
De verdade e mentirinha
Brincávamos de pega-pega
De pique de se esconder
De salva, de pé-na-lata,
Outras, sempre de correr
E assim a meninada
E até a rapaziada
Sempre ao anoitecer
Como vê, vida na roça
Não era só sofrimento
Felicidade e alegria
Tinha lá os seus momentos
As festas que eram lindas
Que eu me lembro ainda
Das festas de casamentos
Porém a vida não era
Feita só de sofrimentos
Felicidade e alegria
Tinha lá os seus momentos
As festas que eram lindas
Que eu me lembro ainda
Das festas de casamentos
Hora da valsa dos noivos
Momentos de emoção
Convidados de mãos dadas
Formava um grande cordão
O feliz casal circulava
Ao lindo som valsava
Da saudade de Matão
Até ao romper do dia
Na maior animação
Churrasco e muita bebida
Com muita paz e união
A sanfona não parava
E o festeiro assim gritava
Vamos pegar o sol com a mão
Tinha também outras festas
Sempre muita diversão
As quermesses nas capelas
E as festas de São João
Ao redor de uma fogueira
Tinha muita brincadeira
Batata assada e quentão
Junto ao santo colocava-se
Nota de certa quantia
Passava sebo no mastro
Pra ver quem é que subia
Subindo e escorregando
Muitos meninos tentando
Até que um conseguia
Nas quermesses muitos jogos
De bingo, de pescaria,
A casinha do coelho,
Que a gente divertia,
A vida simples e bela
As novenas na capela
Santo terço todo dia
Na casa de algum vizinho
A gente também rezava
Servia-se chocolate
Quando o terço terminava
Para mais vezes tomar
Eu tava em todo lugar
Onde a chaleira passava
Depois rapazes e moças
Reuniam pra brincar
De raminho ou passar anel
Ou que mês a perguntar
Com letras bem divertidas
Tinham bonitas cantigas
Pra jogar verso ou dançar
Resume assim minha vida
Da infância e juventude
Na luta do dia-a-dia
Eu sempre fiz o que pude
Enquanto eu for aguentando
Quero continuar lutando
E que Deus sempre me ajude
Pra encerrar quero falar
Da minha vida afetiva
Como ninguém é perfeito
Houve coisa negativa
Das emoções que vivi
Eu posso lhes garantir
Muitas foram positivas
Como tive três famílias
De compromisso concreto
E assim tive dez filhos
Dois biológicos, oito de afeto
Que me deram até agora
Nesta tão feliz das horas
O prêmio de sete netos.
Contei assim esta história
Em resumo a minha vida
Zelei para não causar
Alguma mágoa ou ferida
Respeito e muito acato
Infinitamente grato
O pai e à mãe querida
Porque a vida continua
Esta história segue em frente
Recordarei o meu passado
Enquanto continuamente
Irei prosseguir de pé
Reanimado pela fé
A viver sempre contente
Deus deu-me uma mulher linda
Alguém que me completou
Com quem vivo tão feliz
O Senhor me abençoou
Sou mais feliz que mereço
Todo momento agradeço
Aquilo que tenho e sou
1-ruar, era o processo de limpar embaixo dos pés de café, retirando as folhas e entulho com a terra fofa, que era enleirado entre as carreiras, que a gente chamava de rua, para facilitar a colheita e após a colheita espalhava-se novamente, utilizando como adubo biológico e dava-se o nome de esparrama;
2-guarda-livros, era o contador, certamente sem formação em contabilidade, que fazia o controle da produção de cada trabalhador
3-bica, era feita de toras de coqueiro rachado em duas partes, das quais retirava-se o miolo;
4-tabuinha, eram pequenas tábuas, mais ou menos do tamanho de uma telha francesa, sempre de madeiras bem macias, pois eram retiradas de pequenas toras, no tamanho desejado e rachadas com um facão.