JARARACA - O CANGACEIRO ARREPENDIDO

Já falei de Jararaca

Num cordel anterior

Disse que esse cangaceiro

Em santo se transformou

Sua vida e desacato

Mas não expliquei o fato

Que o povo o beatificou.

A injustiça o transformou

Num terrível cangaceiro

Aliou-se a Lampião

Se tornando um desordeiro

Os cantos que ele passou

E os crimes que praticou

Contei no cordel primeiro.

Naquele grande entrevero

Que Massilom projetou

De assaltarem Mossoró

Jararaca se animou

Afoito, sempre na frente,

Mas a coisa ficou quente

Pois Mossoró revidou.

O povo se preparou

Pra essa batalha fremente

Quem falseasse morria

Porque havia até gente

Armada para a peleja

Entrincheirada na igreja

Da matriz de São Vicente.

Colchete avançou na frente

Enfrentando o tiroteio

Levou um tiro na testa

Soltou um urro tão feio

Que não findou a viagem

Ensanguentando a paisagem

Já caiu morto no meio.

Com todo aquele esperneio

Jararaca o viu caído

Foi resgatar os pertences

Do colega falecido

E no meio da baderna

Levou um tiro na perna

Voltou soltando gemido.

Fugiu o grupo bandido

Jararaca ficou lá

Debaixo de uma ponte

Por não poder caminhar

Aquele cabra valente

Agora estando impotente

Ficou a se lamentar.

Vendo um ancião passar

Disse: - Velhinho, me ajude,

Me dê remédio e comer

Pra eu tirar fome e grude

Me salve desse entrevero

Que eu lhe dou muito dinheiro

Se você me der saúde.

Do velhinho a atitude

Foi atender com perícia

Mas em vez de ajudar

O velho foi à polícia

E sem ninguém perguntar

Resolveu denunciar

Lhes dando logo a notícia.

Logo chegou a milícia

Pra levá-lo pra cadeia

Ele parecia um bicho

Com a cara muito feia

Como a imaginar:

«Dessa vez eu vou pagar

As honras de filha alheia.»

Jogaram-no na cadeia

Já gravemente ferido

Com uma perna quebrada

Sangrando sem dar gemido

Logo alguém o assassinou,

Dizem que quem o matou

Era muito mais bandido.

Porém não foi esquecido

Ficou sua fama no mundo

A alma dele partiu

Levando rancor profundo

E grande malicunia

Contra o velho que um dia

Lhe traiu em um segundo.

Um dia, no outro mundo,

Jararaca estava só

Viu a alma de um velho

Barbudo, penso e cotó

Logo voltou-lhe o sentido

Pois achou bem parecido

Com o velho de Mossoró.

Jararaca achou melhor

Interrogar o velhinho:

- Meu senhor, de qualquer forma

Me ensine aqui um pouquinho

Seja qual for o roteiro

Que eu vou sem paradeiro

Porque não sei o caminho.

Lhe perguntou o velhinho:

Onde é seu natural?

É de Sergipe ou Bahia

De Pernambuco ou Natal

De Teresina ou Belém?

Se fez o bem colhe o bem

Se fez o mal colhe o mal.

E Jararaca afinal

Contou-lhe o que tinha feito

O velho muito espantado

Disse: - Você tá sem jeito

Pra você não tem camim

Porque só fez o que é ruim,

Nunca quis andar direito.

Jararaca contrafeito

Disse: - Eu já fiz de tudo

Não conheci a verdade

E me criei sem estudo

Nada bom me acontecia

Quando na terra eu vivia

E eu era homem pra tudo.

Matei muito cabeludo,

Major, capitão, tenente,

Só me arrependo de um crime

Do tempo em que fui vivente

Nunca que eu me conformei

Foi no dia que eu matei

De punhal um inocente.

Tinha um aninho somente

Sorriu me vendo chegar

A família toda morta

Não tinha outro jeito a dar

No meio do estardalhaço

Botei ele no meu braço

Comecei a imaginar.

Oh, meu Deus, o que será

Desse inocente sozinho?

Sem pai, sem mãe, sem irmã,

Sem leite, pão nem carinho,

Fica agora desvalido

Igual um pássaro perdido

Sem saber onde é seu ninho.

Nas lutas pelo caminho

Das quebradas do sertão

Matei o pai e a mãe

Seu tio, avô e irmão

Ficou sozinho, sem nome.

Para não morrer de fome

Tomei uma decisão.

Entre o medo e a confusão

Venceu-me a força do mal

Joguei pra cima a criança

Pra lhe aparar no punhal

Nessa hora de agonia

Quando ele desceu trazia

Um sorriso angelical.

Quis desviar o punhal

Terminei não desviando

Coitado, sorriu porque

Pensou que tava brincando

Foi triste a sua agonia

Mas a dor que ele sentia

Eu também tava amargando.

Me lembro de vez em quando

Do sorriso do menino.

O velho disse: - Maldito,

Bandoleiro e assassino,

Arrogante e prepotente,

Tu foste o pior vivente

Desse solo nordestino!

Jararaca em desatino

Na garganta deu um nó

Deu um pulo e quatro gritos

Rodopiou num pé só

E disse com muito alarde:

- Velho maldito e covarde,

Já te vi em Mossoró!

Te prometi ouro em pó

Te dava muito dinheiro

Se você desse remédio

Pra curar o cangaceiro

E tu, cheio de malícia,

Foi me entregar pra polícia,

Velho ruim e traiçoeiro.

Tá certo que eu vim primeiro,

Mas tu também tá aqui

Podia ter ficado rico

Deixado eu me escapolir.

Cadê a tua matéria?

Tu morreste na miséria,

Num adiantou me trair!

O velho tentou fugir

Naquele momento horrendo

Jararaca disse; - Calma,

Não precisa ir correndo

Você não mais trairá.

Também não sabe onde está,

É isto que eu estou vendo.

O velho ficou tremendo

Sem proteção de ninguém

Mas Jararaca acalmou-se,

Pois se a matéria não tem

Se acaba o ódio, a maldade,

Vingança, perversidade

E a valentia também.

Jararaca diz: - Pois bem,

Eu ia puni-lo por isto

Mas vou lhe dar o perdão,

Da surra agora eu desisto

Pra ver se lhe perdoando

Um dia, quem sabe quando,

Alcanço o perdão de Cristo.

Encerro aqui o registro

De um valentão corajoso

Que arrependeu-se e foi salvo

Por Jesus, Pai generoso

Mossoró guarda um mistério

Porque no seu cemitério

Jararaca é milagroso.

Cangaceiros, Vol. XXXII

Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 01/02/2011
Reeditado em 09/08/2014
Código do texto: T2765774
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