O cara que renasceu cachorro

Quero contar uma história

Que serve até de lição

Pras pessoas dessa vida

Que não tem bom coração

Não dou lição de moral

Mas serve como um sinal

Pra quem não tem compaixão

Na cidade de Irapuru

Bem lá na Alta Paulista

Soube dum acontecido

O espanto dá na vista

Não sei se bênção ou castigo

Nesse cordel eu lhes digo

Pra estória ser revista

É comum a gente dizer

Quando a situação apura

Que é vida de cachorro

Quando a nossa vida é dura

Pois nessa dureza ingrata

Só mesmo um vira-lata

Essa condição atura

Em todo e qualquer lugar

Em qualquer canto do mundo

Sempre tem um vira-lata

O mais comum vagabundo

Pela sarna já comido

Abandonado, esquecido

A fome batendo fundo

Magrelo e esfomeado

Soltando um fraco latido

O pobre cachorro de rua

Por alguém logo é corrido

Pois é rara a pessoa

Que tem atitude boa

Com esse pobre desvalido

Alguns lhe dão atenção

Uns poucos até comida

O olhar desse coitado

Mostra bem a sua vida

Nos olha triste e carente

Procurando entre a gente

Alguma ajuda oferecida

Pois nessa estória de cachorro

Agora entra um sujeito

Sempre senhor do pedaço

Sempre com ar de despeito

Um tipo bem prepotente

Dos que metido a valente

Dão mais medo que respeito

Uma vez um vira-lata

De chute ele quase matou

Só porque o animal

No pneu do carro mijou

Ele então enfurecido

Deixou o cachorro ferido

De tanto que lhe pisou

Era assim desse jeito

Que tratava os animais

Como um bicho sem valor

Que merecia apanhar mais

Pois essa sua atitude

Iria ter uma amplitude

Que não esqueceria jamais

Certo dia esse sujeito

Acordou bem diferente

Tava deitado na rua

De frio já batendo dente

Molhado, arrepiado

Se levantou assustado

Foi atrás de sua gente

Ele andava esquisito

Meio como se agachado

Pois sua visão do mundo

Via como se abaixado

De baixo pra cima olhava

Algum conhecido buscava

Pra isso ser explicado

Sem saber o que ocorria

Foi andando pela cidade

Atrás do seu pessoal

Com quem tinha amizade

Mas quando se aproximava

Deles ele só levava

Pancadas de muita maldade

Sempre que chegava perto

Da alguém que conhecia

Todo mundo se afastava

Algum mesmo até corria

Com tudo ruim pro seu lado

Já estava desesperado

Com o que lhe acontecia

Ao passar por uma vitrine

O que viu não tinha nexo

Foi um cachorro sarnento

Que ele viu no seu reflexo

Aquilo que ele desprezara

Foi no que se transformara

Isso o deixou perplexo

Acho que diz o hinduismo

Que nós podemos reencarnar

Na forma de animais

Outros bichos nos tornar

Pois parece que ele morreu

E como cachorro renasceu

Pra assim poder melhorar

Assustado com o que viu

Seu desespero não foi pouco

Saiu correndo pela rua

Gritando até ficar rouco

Mas quanto mais ele gemia

Era só uivo que se ouvia

Parecia cachorro louco

Ele pedia socorro

Mas saia só latido

Tentava entrar na sua casa

Mas logo saia corrido

Debaixo de vassourada

Chute e mesmo pedrada

Gemendo e soltando ganido

A coisa mais vergonhosa

Que lhe deixava mais brabo

era quando outros cachorros

Vinham lhe cheirar o rabo

Os menores ele mordia

Mas dos maiores corria

Senão ia ser o diabo

Ferido e apavorado

Sem entender a situação

Ele só encontrou abrigo

Num canto de um lixão

Disputando lugar com rato

Que ele foi pensar de fato

Nessa sua nova condição

Repassou a sua vida

Onde só tinha coisa errada

Gastava grana em boteco

Pra família quase nada

Os filhos quase não via

Que ele nem mais sabia

Quando deles ouviu risada

Lembrou as brigas que causou

Com seu jeito valentão

Ameaçando as pessoas

Como sua pose de durão

Teve sorte ao não encontrar

Ninguém para lhe enfrentar

Pois só era um fanfarrão

Foi nesse raro momento

Repensando a sua vida

Que ele então constatou

Não ser pessoa querida

Pois quando fazia arruaça

O que pra ele tinha graça

Era só coisa atrevida

Viu que não tinha amigos

Só colegas de buteco

Pra quem ele pagava pinga

Dia a dia em repeteco

Levando uma vida de luxo

De cerveja enchendo o bucho

Até quase ter um treco

Então o seu desespero

Se transformou em vergonha

Viu que no seu dia-a-dia

Ele só destilava peçonha

Sempre pousava de macho

Mas era só esculacho

Pois era mesmo um pamonha

Lembrou daquele cachorro

Que ele tanto chutou

Sentia a mesma dor no corpo

Pelos golpes que levou

Soltou uivos de lamento

Que espalhados pelo vento

Até ele se assustou

Então pela primeira vez

Ele se debruçou em pranto

Pedindo perdão a Deus

A Jesus e a todo santo

Com o coração ferido

Soltou um grande gemido

Encolhido no seu canto

Mas assim que levantou

Já suspirou aliviado

Pois sentado na sua cama

Viu que só tinha sonhado

Mas quando ele se mexia

Todo o seu corpo doía

Como se tivesse apanhado

Ele então juntou suas mãos

Rezando pra nosso Deus

Pedindo de novo perdão

Por todos os erros seus

Com o coração aliviado

Ele agradeceu emocionado

A nova chance que recebeu

Daquele dia em diante

A sua vida já mudou

Deixou até de beber

Pra família se voltou

Virou um cara pacato

Sossegado e de recato

Pelo que Deus lhe ensinou

O quintal da sua casa

Pros animais virou abrigo

Gato e cachorro de rua

Tinha nele um novo amigo

Se sonho ou realidade

Ele buscou de verdade

Fugir daquele castigo

Virou um cara correto

Um novo sujeito do bem

Que freqüentava a igreja

Na missa ajudava também

Nunca mais se ouviu falar

De ele querer brigar

Ou se indispor com alguém

Passou a participar

Até da comunidade

Dando muita sugestão

Pra melhorar a cidade

Quem causava confusão

Virou um bom cidadão

Era a sua realidade

Seu novo comportamento

Trouxe a todos esperança

Agora quando ele chegava

Era uma grande festança

A lição ele aprendeu

Mas virou um segredo seu

O motivo dessa mudança

Assim então foi levando

Seu novo jeito de viver

Cercado de bons amigos

Dava até gosto de ver

Mas a sua grande lição

Guardava no coração

Pra nunca mais esquecer

Um costume ele guardou

Que chegava a envergonhar

Não podia ver um poste

Que tinha vontade de mijar

Então ele corria ligeiro

Para o primeiro banheiro

Para um vexame evitar

Além disso ele passou

A ter uma nova mania

Queria olhar nos olhos

Todo cachorro que via

Pra ver se o seu gemido

Era de algum conhecido

Passando a mesma agonia

Jesus de Burarama
Enviado por Jesus de Burarama em 13/01/2011
Código do texto: T2727168
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