O Baile do Judeu (Adaptado da obra de Inglês de Souza)
Numa vila dessa floresta
Em que o tempo não anda
Onde velhos coronéis
Têm a patente que manda
E preza pelos bons costumes
Que a Santa Igreja comanda
Vive uma jovem faceira
Que expressa sua doçura
Um talento de mulher
Poranga por formosura
Que mexe a cabeça de homens
Sem dar chance para cura
Mas a bela Maria
Tinha em si grande paixão
Do apessoado Lulu
De valente coração
Se rendia aos encantos
Deste jovem rapagão
Mas nesta cidadezinha
Também vive outro valente
Homem viúvo e sem filhos
Que não se dá por contente
Quer o coração da bela
Neste momento presente
Seu nome é Bento de Arruda
Um tenente-coronel
Com tantos rogos, agrados
Pôs na jovem um anel
E mandou Lulu às favas
E Maria casou de véu
O casório foi uma festa
Alegria da vizinhança
Muitos homens lamentaram
Acabara a esperança
Lulu arribou da vila
Mas prometeu sua vingança
E pouco tempo depois
Ao normal tudo voltara
No meio daquela paz
Nenhum cristão mais lembrara
Que um dia Lulu fora embora
E que Maria se casara...
Já era chegado junho
O Amazonas subira
Ano de maior enchente
Que na região se vira
Havia engolido a praia
E quase a rua cobrira
As águas subiram tanto
Engolindo a ribanceira
Estava tudo inundado
Não se tinha mais ribeira
E ninguém passava a pé
Nem encostava na beira
E justo neste momento
O Judeu comerciante
Lembrou-se de dar um baile
Mandou convite adiante
Mas não chamou o vigário
Só família importante
Era bem de se saber
Por não chamar o vigário
Representante católico
Não entra num judiário
Nem o juiz de direito
Por medo judiciário
Mas era de se supor
Que ninguém acataria
A convite tão escárnio
De ir a uma judiaria
De assassinos de Jesus
Para uma profanaria
Entretanto que no dia
Muita coisa sucedeu
Até hoje na cidade
Ninguém sabe o que viveu
E naquelas oito horas
Foi o Baile do Judeu!
Os senhores e senhoras
Estavam todos pra lá:
O comissário das terras,
O delegado do lar,
O coletor, o agente...
Os maiores do lugar
E quem não foi convidado
Em frente da casa estava
Abrilhantada de luzes
A todos iluminava
A orquestra a tocar
O baile assim começava
A orquestra se compunha
De três membros tocadores
E se puseram tocar
Sem calcular os horrores
Logo saíram da missa
Para tocar sem pudores
(Contudo meses depois
Foram logo castigados
Que pelo amor ao dinheiro
Tocaram sem ver pecados
Um acabou na cadeia
Os outros dois afogados)
Muit’se dançou nessa noite
E muit’se bebeu também
Todos encheram a cara
E foram parar no além
Outros ainda diziam
Melhor que o baile não tem
A cerveja corria solta
Deslizando pela sala
Contentamento geral
Que nem consciência fala
Ninguém tinha mais deveres
Tudo foi parar na vala
Flauta, viola e rabeca
Incendiava o salão
A orquestra não parava
Era só animação
Os convidados dançavam
Em uma só entonação
Mas entre todos do baile
Um sorriso reluzia
Com sua beleza faceira
A noite virava dia
A rainha incontestável
Encantadora Maria
Que apesar de estar casada
Não deixou de ser amável
E sem dúvida nenhuma
Um rubi inestimável
Celestial faceirice
Formosura deslumbrável
Se estavam todos felizes
Só tinhuma cara sortuda
Porém ele não dançava
Ficava de perna muda
Encostado na parede
Estava Bento de Arruda
Que de olhos apaixonados
Sua esposa admirava
No giro de seu vestido
Calafrio lhe causava
Todo contente de amor
Num suspiro confortava
O baile se encaminhava
Pela noite enluarada
Dança, comida e bebida
A festa tava danada
Mas lá pelas onze horas
Vem uma estranha chegada
Todos se surpreenderam
Com a entrada de um sujeito
Feio, baixo, de casaco
C’um chapéu de um sem respeito
E com a gola levantada
Que esconde o rosto direito
O cabra foi pela sala
E tirou Dona Maria
Para mais aquela dança
No soar da cantoria
Mas era só mais uma troça
Todo povo já sorria
O rapaz caía de lado
Preso a dama pela mão
Ia os passos da mulher
em uma grande animação
Dona Maria não continha
E sorria pelo salão
E Bento se perguntava
Quem podia ser o rapaz?
Mas de onde é que ele veio?
E há quanto tempo faz?
Se ele veio no vapor
Deve ser jovem de paz
E a dança prosseguia
E o trio mais não parava
Muitos ainda sorriam
A rabeca friccionava
Mais alto era cantoria
E o casal só dançava
Entre um passo e outro
O figurão sacudia
E dava guinchos estúrdios
Sei nem o que parecia
Já dançava fora de ordem
Sabia nem o que fazia
A jovem a essa altura
Sorridente já não era
Não existia mais o fôlego
Que no início tivera
E o rapaz não parava
Nem se Seu Bento quisera
E o vozerio do trio
Mais e mais enlouquecia
Já era a quinta vez
De uma mesma melodia
Foi quando o cantador
Emendou a que arrepia
Todos foram ao delírio
Vibrando pelo salão
Pelo choro da rabeca
Sonatas do violão
E todos queriam ver
Essa grande confusão
Pois a dança continua
Maria nem mais respirava
O rapaz com seus grunhidos
Ninguém mais se agüentava
Até que enfim a orquestra
Num suave abafava
E entrava com uma valsa
Simples e cadenciada
Ao som da “Varsoviana”
O casal rodopiava
E num corpo preso ao outro
Por todo salão girava
E a jovem dama estreita
Presa no côncavo peito
Já não sentia mais os pés
Nem enxergava direito
Os dois vultos turbilhavam
Quando parou o sujeito
Foi quando o chapéu caiu
E deixou seu rosto nu
Bento o olhou assustado
Percebeu que era Lulu
Mas ele não era homem
Era sim um belzebu
Em vez do homem que era
Tinha cabeça furada
Agora era um grande boto
Uma besta fera assombrada
Saiu arrastando a moça
No meio da madrugada
Parou na frente de Bento
E um grunhido soltou
O tenente-coronel
Se benzeu e afrouxou
O boto cruzou a rua
Levou Maria como sua
E nas águas atufou
Bento de Arruda sumiu
E ninguém sabe o que deu
O povo não mais comenta
E só finge que esqueceu
Pois ninguém quis mais voltar
Para os bailes do Judeu.