A peleja virtual entre dois vates arretados - Gustavo Felicissimo e Piligra

Narrador
Pelas vias da internet
Se encontraram certa vez
Dois poetas arretados
Todos dois com altivez
Prum embate curioso
Como assim nunca se fez

Narrador
Sem pandeiro e sem viola
Felicíssimo e Piligra
Começaram a peleja
E causaram muita intriga
Frente a um computador
Foi assim aquela briga:

GF
Neste meu Brasil andei
Sempre atrás de uma peleja,
Enfrentei muitos poetas,
Seu Piligra, não graceja,
Reze três Ave-Marias
Sete noites, sete dias,
Peça a Deus que te proteja.

PI
Não sou homem de peleja
Nem gosto de confusão,
Deus me ajuda todo dia
Mas de briga corro não,
Fique calmo seu Gustavo,
Não sou de levar agravo,
Peça ao padre a extrema-unção.

GF
Seu poeta falastrão
Ouça o meu enunciado,
Eu não peço extrema-unção,
Nem à corte do papado;
Faça como fez Camões
Peça a mim dois mil perdões
Que hoje estou endiabrado.

PI
Sou um homem batizado,
Devoto de São José,
Temo a Deus e sou cristão
E alimento a minha fé,
Perdão eu não vou pedir
Você pode desistir,
Poeta você não é.

GF
Tenho dó de São José
Que tu pôs nesta conversa,
Pois até ao Zé Limeira
Ensinei como se versa.
Você é um aprendiz
Olhe só pro seu nariz
Peça arrego, se despeça...

PI
O que mais me interessa
Nesta sua sabedoria
É notar que o Zé Limeira
Sabe mesmo de poesia,
Se você foi professor
Eu então já sou doutor;
O Zé da Luz é o meu guia!

GF
Eu não vejo Zé da Luz
Nos versos que você faz,
Somente vejo o reverso,
Anedotas, nada mais,
Porém saiba, o Minelvino,
A fazer verso ferino
Ensinei a ser capaz.

PI
Sei que você é sagaz,
Um sofista consagrado,
De conversa é muito bom
Minelvino foi enganado,
Se ele foi o seu aluno,
Foi aluno inoportuno,
Coitado, foi reprovado!

GF
Sofismas não me interessam,
Sou versado na verdade,
Não dou canja para o azar
E não é por vaidade,
Tanto que o Franklin Maxado
Comigo fez um versado
De muita autenticidade.

PI
Para sua felicidade
Ou quem sabe até tristeza,
Eu também fui professor
De uma moça, uma princesa;
O seu nome é Coralina
Cora que encanta e fascina
Poetisa com certeza!

GF
Eu contemplo Coralina
Com os olhos do coração,
Mas é que não acredito
Que passaste essa lição.
Quero que você me prove,
Com seus versos me comprove
Sem nenhuma enrolação.

PI
Não preciso provar nada
E enrolado é que não sou,
Ao Minelvino e ao Camões
Foi você quem ensinou,
No entanto, até o instante,
Nada vejo de importante,
Enrolado é o senhor!

GF
Um poema é diamante
Carregado de sentido
E o poeta de verdade
Não pode negar pedido,
Por isso agora proponho
Que me fale destemido
Dos poetas grapiúnas
Nesse oitavão rebatido.

PI
Eu aceito a sua proposta
Pois meu verso é bem polido,
Não vejo qualquer problema
Nem me sinto arrependido,
Quero cantar o maior
Nesta terra conhecido;
Firmino Rocha é o seu nome
Nesse oitavão rebatido!

PI
Muita coisa ele escreveu,
Foi até reconhecido,
O seu nome está gravado
Lá na ONU e ainda é lido,
O Firmino é o melhor
Nunca será abatido
“Deram um fuzil ao menino”
Nesse oitavão rebatido!

GF
Louvo o grande Abel Pereira
Num verso desimpedido,
Pois foi ele no Haikai
Um poeta acontecido,
Amado pelos amigos,
Pelos leitores querido,
Isso eu provo pra você
Nesse oitavão rebatido.

GF
Mas o maior meu amigo
Foi um poeta aguerrido,
A sua graça é Sosígenes,
Grande vate alvorecido
Nas manhãs de “Iararana”,
Um libelo aplaudido
Pelo José Paulo Paes
Nesse oitavão rebatido.

PI
Louvo o Jorge Medauar
D’Água Preta bem nascido,
Esse sim é talentoso
E não será esquecido,
Sonetista de primeira
Digo isso e não duvido;
Pergunte pro Hélio Pólvora
Nesse oitavão rebatido.

PI
Vou citar algumas obras
Desse autor controvertido:
“Chuva sobre a tua semente”
Um livro bem produzido;
“Morada de Paz”,”Prelúdios”;
Foi amigo do Astrojildo,
Por isso que eu lembro dele
Nesse oitavão rebatido!

GF
Eu gosto do Medauar
Um gigante garantido,
Bom poeta, bom contista,
De talento pressentido,
Mas não posso me esquecer
Em um cordel bem vestido
Do grande Ildásio Tavares
Nesse oitavão rebatido.

PI
Quero parabenizá-lo
Por você ter me seguido;
Só conheço gente boa
Mas não fique convencido;
O Ildásio merece crédito
Pelo que tem produzido,
O destaco com louvor
Nesse oitavão rebatido!

GF
Sei que um verso bem escrito
Tem o Adelmo Oliveira,
Um poeta de primeira
Que não se dobra a um rito,
E tampouco escuta o grito
Do poeta pé-quebrado
Em seu verso desdobrado
Que não entra em confusão,
Desgosto ou desolação
Em seu canto celebrado.

PI
Eu preciso concordar
O Adelmo é muito bom;
Escreve sempre no tom
Sabe como impressionar;
Sua poesia tem lugar
Coisa que a sua não tem,
Já que o amigo é um Zé Ninguém,
E terá que fazer mais
(Pacto até com Satanás)
Para poder ser alguém.

GF
No meu saco tem farinha,
Na panela tem pirão,
Nos meus versos a razão,
Em meu peito uma andorinha
Que nunca voou sozinha
Para as terras de além-mar
P’reu poder me preocupar
Com que tens a me dizer:
Precisas de mais saber,
Pra não mais se equivocar.

PI
Não se ofenda meu amigo
Não falei nada por mal,
Sei que você tem “Know How”
Não sou seu arquiinimigo,
Mas anote o que eu digo
Num verso bem burilado:
Ser Ninguém não é pecado,
Ao contrário, é um privilégio;
Veja Ulisses: nasceu régio,
E foi alguém dissimulado!

GF
Eu conheço a sua fama
De grande maledicente
E não é por acidente
Que a mim você difama,
Pois meus versos têm a flama
Do grande Pablo Neruda
Que a toda mulher desnuda
Traduzindo nos seus versos
Todo encanto do universo
Sem ousar na forma ruda.

PI
Minha fama ganha o mundo,
Meu nome rima com glória,
Já sou parte da história,
Pois sou poeta fecundo;
Na peleja vou ao fundo,
Nada tenho que temer,
Sei rimar e vou vencer
Esta disputa poética;
Respeito toda estética
- Serei mestre pra você!

GF
Sou chumbo do grosso e certeiro arrebato
Quem canta tão mal esse mundo real,
Arraso com versos quem for desleal,
Dou voltas no globo e sensato combato
Quem versa e conversa sem ter aparato.
Você não engana a quem sabe cantar
As coisas da terra e a graça de amar,
Por isso não podes, Piligra, querer
Ser vate e ser forte, o meu mestre ser,
Nos dez de galope na beira do mar.

PI
Sou bala certeira, sou tiro no pé,
Acerto cem vezes no alvo em que miro;
Aponto sem medo e o revólver atiro,
Com balas, com rimas, pra por no chulé
Poeta vaidoso que vem da ralé.
Não engano a ninguém, nem desejo enganar,
Por isso repito e outra vez vou cantar:
“Serei o seu mestre” e também o seu guia;
Concorde Gustavo, aqui na Bahia,
Sou mestre em galope na beira do mar!

GF
És “tiro no pé”, pois maltratas a lira
De ouro e safira nos dada por Deus,
Mas calma que ainda seus versos plebeus
Com mestres de fato quem sabe se afira
Alguma verdade entre tanta mentira.
Serei seu guru pra você recordar
O dia de hoje que vai confirmar
Que o rei da peleja nas tramas da net
Ninguém acomete sem ganhar cacete
Nos dez de galope na beira do mar.

PI
Guru não preciso pra nada na vida,
Talento de sobra foi Deus quem me deu,
Mas fique tranquilo não sou fariseu,
Nem cuspo no prato, nem bulo em ferida
- Sou rei consagrado na rima vertida.
Seu mestre estou sendo, não queira negar,
“O dia de hoje” pra história entrará,
Porque foi comigo, na rede internet,
Que o “grande” Gustavo virou marionete
“Nos dez de galope na beira do mar”!

Narrador
Foi assim como eu narrei
E ensinei como verseja
Desse modo aconteceu
Correu como Deus planeja
Terminando com acróstico
Aquela bela peleja:

GF
Gostei da nossa peleja
Uma grande formosura
Sei saudar a quem mereça
Todo apreço com lisura.
Amanhã, meu nobre amigo,
Vais poder contar comigo
Onde a paz se configura.

PI
Pro poeta cantador
Irmão de verso e peleja,
Lavro aqui uma sentença
Inclusive sem inveja:
Gostei deste desafio;
Rimado, sério e sadio,
Até mais - Deus lhe proteja!

Neste inusitado Folheto de Cordel, vencedor do Prêmio Bahia de Todas as Letras, edição 2009, os poetas Gustavo Felicíssimo e Piligra realizam uma peleja virtual, inspirados nas pelejas dos repentistas e emboladores, como já fizeram anteriormente Jotacê Freitas e Antônio Carlos Barreto. A diferença está basicamente na diversidade das estrofes. Em “A peleja virtual entre dois vates arretados”, os autores introduzem um narrador que inicia a contação em estrofes de seis sílabas. Após, o embate principia com estrofes de sete; passa pela de oito com o Oitavão rebatido; pela estrofe de dez sílabas; onze, com um Galope à beira-mar. Então retorna o narrador com uma sextilha, abrindo espaço para a conclusão da Peleja com um acróstico de cada poeta.
Comenta Jotacê Freitas a respeito desse folheto que “a peleja é uma forma poética de disputa de qualidades e exibição de cultura, é importante rebaixar o oponente e exaltar-se para a platéia. Tradicionalmente, entre violeiros repentistas, os poetas saíam até na mão para resolver uma questão poética. No folheto premiado, os duelistas fazem uma exposição de vantagens pessoais e passeiam pela história da literatura grapiúna através dos seus maiores autores. Todo esse trabalho é construído com belos versos compassados pelas rimas, métricas e diversas formas do cordel, como pede uma boa peleja”.