Ditadura & inocência> Autor: Damião Metamorfose.

*

Nasci no meio do mato,

Nos cafundós do sertão.

Sem rádio, jornal, revista,

Cinema e televisão.

Cresci como um indigente,

Meio bicho, meio gente,

Sem eira, beira ou brasão.

*

Subvida, escravidão,

Cheguei a pedir esmola.

Fui pra roça muito cedo,

Sem direito a jogar bola.

Com dez eu fui estudar,

Mais pensando em merendar,

Do que pensando em escola.

*

Ainda bem rapazola,

Devido à necessidade.

Eu precisei me mudar,

De casa, estado e cidade.

Com ajuda de um pistolão,

Tirei minha certidão,

Mudei também minha idade.

*

Consegui maioridade,

Fui morar na capital.

Lá eu tive acesso a tudo,

Cinema, rádio, jornal...

Estudei e descobri,

Que por um tempo eu vivi,

Tratado como animal.

*

No meio do matagal,

Onde eu antes residia.

Trabalhando de meeiro,

A única festa que eu ia.

Era a treze de dezembro,

Da padroeira, inda lembro,

A casta Santa Luzia.

*

Pai e mãe por companhia,

Cada um em uma mão.

Seguindo atrás do andor,

Rezando e em procissão.

Se os meus pais se afastassem

E os meninos me pegassem,

Levava tapa e empurrão.

*

Tinha parque e diversão,

Trenzinho, roda gigante,

Joguinhos de laça-laça,

Musica no alto falante.

Eu via, mas não brincava,

Pai, sem dinheiro, falava,

Comida é mais importante.

*

Tomar um refrigerante,

Só quando estava doente.

Botavam no pé do pote,

Porque o bicho vinha quente.

E era sempre um guaraná

Antártica, o melhor não há,

Que idéia inteligente!

*

Meu país e continente,

Era o que a vista alcançava.

Pra mim a nevoa na serra,

Era uma nuvem que enganchava.

E o arco-íris celeste,

Quando eu via aquele peste,

Ia atrás, mas não pegava.

*

Nos anos de seca brava,

Quando a chuva não caia.

Se o açude secasse,

Até muçum eu comia.

Na lei da sobrevivência

E em caso de emergência,

Se não corresse, morria.

*

Água barrenta eu bebia,

Quente e achava gelada.

Com urina de animais,

Às vezes infectada

Mas Deus foi tão generoso,

Que eu cresci foi garboso,

Poeta e cobra criada.

*

Meu pai foi peão de estrada,

Cassaco, assim se dizia.

Em troca do seu trabalho,

O que ele recebia...

Óleo, fubá e farinha

E “buggy” um arroz que vinha

Das sobras, da burguesia.

*

O tal do “buggy” crescia

Na água, uns cem por cento.

Uma xícara dava dez,

Mas tinha um sabor nojento.

E a carne que ele ganhava,

Eu lembro que mãe falava,

Esse diabo é de jumento.

*

Eu via esse sofrimento,

Sempre esperando a melhora.

Ainda bem que o meu mundo,

Era o aqui e agora.

Porque o resto do país,

De ordem e progresso infeliz,

Matava o mundo lá fora.

*

Hoje tem que me ignora,

Quando falo do passado.

Dizem para eu esquecer,

Mas vou deixar arquivado.

Se poesia é cultura,

Os tempos da ditadura,

Pra mim não foi explicado.

*

D-eus me deu um dom sagrado,

A-gora eu tenho ciência.

M-eu passado foi sofrido,

I-mpossível é ter demência.

A-cabo o cordel dizendo

O-brigado à inocência.

*

Fim

*

27/05/2010

Damião Metamorfose
Enviado por Damião Metamorfose em 27/05/2010
Código do texto: T2284262
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