Minha Língua

Se, da grota, pinga a gota
Neste árid'escaldante
Corre a língua já marota
(não me cabe mais na boca)
Vai-s'à ela num instante

Minha língua anda fervendo
E se ferve já se assanha
Quanto mais vou aprendendo
Do que vou ( e não vou) vendo
Mais vontades ela ganha

Mais coisas vou percebendo
Enquanto faço campanha
E o que sei ( dou e não vendo)
Nunca disto me arrependo
Desta fome assim tamanha

Se, da grota, pinga a gota
Neste árid'escaldante
Corre a língua já marota
(não me cabe mais na boca)
Vai-s'à ela num instante

Minha língua é bem criada
Malcriada? Pode ser!
Quando fica assanhada
Pelas ganas abrasada
Quer em tudo se meter

Explora a gruta encharcada
Pra umidade sorver
Percorre o chão da estrada
Chega ao cume da chapada
Sempr'alegre a se mover

Se, da grota, pinga a gota
Neste árid'escaldante
Corre a língua já marota
(não me cabe mais na boca)
Vai-s'à ela num instante

Fere a alma, ao corpo afaga
Canta o amor e as mazelas
Qual será a minha paga?
(Serão bençãos; uma praga?)
Aos usos que faço dela.

Quem sabe ainda me traga
Elogios, mais que querelas
Ou nas costas a adaga
Da traição que à tudo traga
E às verdades esfarela.

Se, da grota, pinga a gota
Neste árid'escaldante
Corre a língua já marota
( não me cabe mais na boca)
Vai-s'à ela num instante

Mas se à língua faço morta
Todo cheio de cuidados
Não transponho nunca a porta
Morre à míngua minha horta
Mor de todos meus pecados

Se ao pingo o i comporta
No escrito e no falado
Deus escreve em linha torta
O certo, qu'é o qu'importa...
Aceito, pois, o meu fado!

Se, da grota, pinga a gota
Neste árid'escaldante
Corre a língua já marota
(não me cabe mais na boca)
Vai-s'à ela num instante

Boca de fel, me alcunham;
Língua de mel, me elogiam.
S'em dois, diversos, me cunham
Onde minha língua poriam?
O que, pois, co'ela fariam?
Será que versos compunham
Ou dos assuntos fugiam?
Pimenta nela já punham
E aos seus versos não pariam!


Se, da grota, pinga a gota
Neste áridod'escaldante
Corre a língua já marota
(não me cabe mais na boca)
Vai-s'à ela num instante