ARUANDA - NA FUNDAÇÃO DO TALHADO

Este trabalho foi elaborado para ser apresentado pelo GECAN - Grupo de Cultura e Artes Cênicas Professora Maria Alian Nóbrega,que tem como coordenador o próprio autor do livreto, no dia 07/10/2003, no Seminário de Cultura Afro-Brasileira, enfocando a história e fundação do Quilombo do Talhado na Serra da Borborema, Município de Santa Luzia - Paraiba.

Obs. Todos os declamadores são membros do GECAN,

nascidos ou descendentes do Quilombo do Talhado.

FALA UMA RAINHA AFRICANA

ESCRAVIZADA NO BRASIL

O meu nome é AQUALTUME!

Eu fui nascida em Angola,

Uma terra de além-mar,

Vivia em meu paraíso

Com o povo a me consagrar,

Mas o branco interesseiro,

Na cobiça por dinheiro

Me trouxe de lá prá cá.

No porão com água do mar

De uma embarcação sem nome,

Jogaram minha família

Enfraquecidos de fome.

Por cama, lama e podrura,

Por alimento amargura,

Pra servir a brancos homens.

Os meus filhos GANAZONE,

GANGA ZUMBA e minhas filhas,

Por defender seus parentes

Dormiam presos nas quilhas.

Até fugirem pros matos

Se aquilombar em planaltos

Que haviam nas redondilhas.

FALA UM PRÍNCIPE AFRICANO ESCRAVIZADO

O meu nome é GANGA ZUMBA,

Um príncipe na escravidão.

Fugi pra o mato trazendo

Uma grande multidão,

Sem poder cruzar os mares

Me aquilombei em Palmares,

Formando uma nova Nação.

Lutando contra a opressão

O meu povo defendi,

Só dei trégua aos opressores

Para a minha irmã parir.

Lutando com a própria morte

Meu sobrinho nasceu forte

E foi chamado ZUMBI.

FALA UM REI NEGRO AQUILOMBADO

Eu sou ZUMBI DOS PALMARES!

Já nasci predestinado

A vingar Tio Ganga Zumba

Que morreu envenenado.

Tentando um tratado novo

Para libertar seu povo

Foi por um atraiçoado.

Cem anos tinha durado

Nossa querida Nação

Até o branco invadir-nos

E dizimar nosso chão.

Mas não nos desanimou

E a luta continuou

Até a Abolição.

FALA UM ESCRAVO FUJÃO:

O meu nome é JOSÉ BENTO.

Sei da história de Palmares.

Mas fugi de outras terras

De torturas similares,

Com tanta peia no lombo

Fugi, fundei meu quilombo

Com os meus familiares.

Com ferro nos calcanhares

Empurrei pedra em moenda

Junto com meus descendentes,

Padecendo em sujas tendas;

Com Zumbi Rei destronado

O negro fica assustado

Com medo de reprimendas.

Fugi de uma fazenda

No Estado do Piauí

Com minha mãe, meu irmão

E o branco a nos perseguir.

Foi uma longa caminhada,

Muitos meses de jornada

Pra chegar no Sabugi.

Antes de chegar aqui

Foi uma longa agonia,

Seguindo as sombras da noite

E a camuflagem do dia

Mas nunca desanimava:

Às vezes o medo chegava

Mas a coragem vencia.

A fome nos sucumbia,

O cansaço e a saudade

Mas a caça saciava

A nossa necessidade.

Se entregar ao capitão

Era tortura e prisão;

O mato era a liberdade.

Passando por uma herdade

Que não tinha escravidão

Uma galega bonita

Se encantou com meu irmão;

Conosco se acompanhou

E a coisa se complicou:

Foi dupla a perseguição.

Brasil em revolução

Foi favorável pra gente:

A Guerra do Paraguai,

A luta do Inconfidente,

Com a crise declarada

Desistiram da caçada.

E nós seguimos em frente.

E chegamos, finalmente,

Nesta terra de ninguém.

Pitombeira é um quilombo

Que muitos negros já tem.

Mas quilombo em tabuleiro

É isca pra fazendeiro.

Negro não se sente bem.

Avistamos mais além

O azul da serrania,

Continuamos em frente

Passando em Santa Luzia,

Da serra chegamos perto.

Mas pra achar o lugar certo

Foi preciso mais um dia.

Terminada essa agonia

Tratamos de descansar.

Construimos dois abrigos

Pois madeira havia lá.

Foi a nossa redenção:

Casei galega e irmão

Com a bênção de Oxalá.

Começamos a tratar

A terra pra plantação,

No povoado encontramos

Alguém que nos deu a mão

E plantamos com orgulho

Milho, feijão com gorgulho

E uma quarta de algodão.

Traidos pelo verão

Nada podemos colher,

Mãe, que era boa “loiceira”,

Com a galega a aprender

E eu na arte da madeira

Fazia e vendia na feira

Pra poder sobreviver.

De tanto a serra descer

Fui ficando “escambimbado”,

Fazendo porta e janela,

Mamãe no barro amassado.

Para identificação

Batizei a região

Como SERRA DO TALHADO.

Vinte anos são passados

Desde que aqui cheguei.

Nasce a primeira sobrinha,

Minha família aumentei.

Uma linda mulatinha

Que foi ficando mocinha

E com ela me casei.

No Brasil, O Senhor Rei,

Viaja pra Portugal

Deixa a Princesa Isabel

No Palácio Imperial.

Ela abre o coração

E acaba com a escravidão,

Numa alforria total.

Com o negro livre afinal

Se espalha pela Nação

Procurando um lugar certo

Prá poder ganhar o pão

E foi assim que o Talhado

Ficou sendo um povoado

Depois da Abolição.

E foram marcando chão

Pelo matagal fechado

Aumentando aquele império

Que por mim fora criado.

Logo em três se multiplica:

Riacho Grande, Oiticica,

E Olho D’água do Talhado.

Mas todos aqui chegados

Me guardavam serventia

Acatavam meus desejos

E assim todos vivam

No nosso canto sagrado,

De todo mundo afastado,

Mas em perfeita harmonia.

FALA UM NETO DE ZÉ BENTO

Meu nome, não interessa

Porque nunca interessou.

Nasci aqui no Talhado,

Na casa do meu avô.

Sou casado com uma prima,

Três meninos e uma menina

A gente já fabricou.

Desde que aqui chegou

Nesse mundo abandonado,

Meu avô sofreu pressão,

Por todos discriminado.

Se um da rua nos encontra

Grita logo e nos aponta:

É um negro do Talhado!

Nosso canto é isolado

De tudo no Sabugi,

Ninguém quer saber da gente,

Nem passa perto daqui,

E se pudessem fazia

Como fizeram algum dia

Com o Mestre, Rei Zumbi.

Mas nós ficamos aqui,

Plantando e caçando coelho,

Todos unidos, seguindo

Uma espécie de conselho

Na mais total liberdade.

Pra nossas necessidades

Nem precisa de “aparelho”.

No chão de barro vermelho

Se tira a matéria-prima

Pra mulher fazer panela,

Ensinando pra menina

E na noite de Quinta-feira

Sair pra vender na feira

Praquela gente granfina.

E quando a feira termina

Com o dinheiro arrecadado,

Se compra nosso alimento,

Insumos para o roçado

E vez por outra uma cabrinha,

Um porco, uma galinha

Pra se criar no talhado.

Quando o ano é atrapalhado,

Vem então a estiagem,

Não se colhe quase nada,

O negro perde a coragem,

Muitos, por necessidade,

Vão embora pra cidade,

Pra viver de vadiagem.

FALA AGORA UM BISNETO DE ZÉ BENTO

Eu moro aqui no Talhado

Mas vou embora pra rua,

Nosso quilombo acabou-se,

A serra tá quase nua,

Muita gente já desceu,

Outros, desapareceu,

Esta é a verdade crua.

Mãe ainda continua

Fazenda “loiça” com a mão

Mas ninguém compra mais nada.

E as “nega” da região

Tão cheias de vaidade.

Só quer viver na cidade

Procurando diversão.

Essa modernização

Só nos leva à desvantagem,

Não chove mais no roçado,

Pros bichos não tem pastagem,

Tanta casa abandonada

E a serra toda pelada

Por causa da estiagem.

Onde existia uma barragem

De potentosa parede

Hoje só resta os escombros

Com aranha tecendo rede

E um quadro triste, irrisório,

De abelhas no velório

Da flor que morreu de sede.

Já não se conhece o verde,

A cor que eu conheço é terra,

Algum cabrito ainda vivo

De tanta fome não berra,

Miséria e calamidade,

Essa é a realidade

Que o meu Talhado encerra.

Não queria ver na serra

Tanta casa abandonada,

Umas se desmoronando

E outras tantas fechadas,

Negros a serra descendo

E os que ficam, sofrendo,

Por não poder fazer nada.

PALAVRA FINAL DE UMA

PENTANETA DE ZÉ BENTO

Sou uma moça da cidade,

Não sei o que é passar fome,

Criada dentro das modas

Que a sociedade consome.

Mamãe é de um branco pardo

Mas papai é do Talhado,

Sanfoneiro de renome.

Meu pai tem Bento no nome,

Vindo do meu pentavô,

Eu não conheço o Talhado

Mas sei que de lá eu sou.

E nesta oportunidade

Apelo às autoridades

Que ora aqui se apresentou.

Nosso Talhado marcou

Sinônimo de abundância,

Hoje é reduto da fome,

Preconceito, ignorância,

Meu povo perde a vontade,

A religiosidade,

O estímulo, a esperança.

Entre adultos e crianças

Já foram mil e oitocentos,

Em oitenta só restavam

Mais ou menos setecentos,

Sem ter onde trabalhar

Hoje os que moram por lá

Talvez não chegue a duzentos.

O resto é isolamento,

Falência, mísero estado,

O desprezo, o abandono,

É bem mais acentuado,

Por isso, por caridade,

Eu peço às autoridades,

Resgatem nosso passado!

Falam tanto no Talhado,

Quilombo de tradição,

Material de estudo

Em quase toda Nação,

Dizem tudo por dizer

E nada fazem pra manter

O negro na região.

Com miséria e precisão,

Quem é que vai ficar lá?

Na cidade discriminam,

Nada fazem prá ajudar,

Vão exterminando aos poucos

Os decendentes “cabocos”

Do Nagô, do Iorubá.

O povo que mora lá

Não sabe o que é euforia,

Não sabe nem que existe

A palavra alforria

E na concepção deles,

TREZE DE MAIO pra eles

E apenas mais um dia.

Talhado fez travessia

Pra Rio, São Paulo e Brasília

Com talhadinos perdidos,

Longe de suas famílias.

Vendo a esperança perdida

Se aventuraram na ida,

Na volta perderam a trilha.

A ausência da família

Em sua mente desenhou

A memória das correntes

Marcadas pelo rancor

E o ódio acentuado

Daqueles que no passado

O seu povo escravizou.

Os herdeiros do Nagô,

Do Jéje, do Iorubá,

Estão agora mais tristes

Por ter que abandonar

A terra que os viu nascer,

E para sobreviver

Foram pra outro lugar.

Talhado ainda está lá

Do jeito que começou,

A mesma serra cinzenta

Quando o Sol esturricou,

Com a chuva o mato folhando

E o mesmo barro de quando

Meu pai Zé Bento chegou.

Se o inverno se firmou

Tem uivantes ventos frios

A noite escuta o murmúrio

Dos vales em assobios

E o som dos galhos soando

Como o negro soluçando

Nos tais negreiros navios.

Nosso quilombo saiu

Da serra por precisão,

Veio em busca de luz

Que nasce da escuridão,

Veio mitigar a pobreza,

Não foi atrás de riqueza

Nem de miscigenação.

Tem negro da região

Que não pertence ao talhado

E diz que somos um bando

De negros aciganados.

Um desse não tem valor,

Não olha pra sua cor

Nem lembra do seu passado.

Do Quilombo do Talhado

Só rastros da ocupação,

Ainda tem 50 casas,

Muitas em destruição

Outras sem porta e janelas,

Somente 23 delas

Ainda tem ocupação.

Cultos, ritos, religião,

Hoje o branco é quem comanda.

Negro esqueceu o Matungo,

O Caxixi de Uganda,

O Atabaque de Pau

Usado com Berimbau

Em saudação a Aruanda.

Tudo é o branco quem comanda

Aqui nesta região

Branco e índio em maioria

Fizeram a diluição,

Alteraram o pigmento

Da cor do negro Zé Bento,

Numa miscigenação.

Pela despretização

Quilombo agora é história

E por trás desse arco-íris

Se dilui nossa memória,

Talhado pra trás ficando

E a cidade levando

Nosso povo à compulsória.

Prometem tanta melhora

Pra nos deixar satisfeito

Mas não realizam nada,

Continua do mesmo jeito.

Vão prometendo, falando,

Mas continua faltando

Tudo que faltou ser feito.

Veremos se esse pleito

Que hoje aqui se realiza

Traz algo pra nossa gente

Que de melhorias precisa.

Se o projeto for feito

Turista sai satisfeito

E o turismo traz divisa.

Santa Luzia-PB, 05 de Setembro de 1983

SÉRIE ESCRAVIDÃO - VOLUME 5

Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 22/12/2009
Reeditado em 17/11/2022
Código do texto: T1991351
Classificação de conteúdo: seguro
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