O homem que roubava livros - atualizado

Que os deuses da poesia

Deem a mim inspiração

Pra mode eu contar um “causo”

Que aconteceu no sertão

Pras bandas de Reriutaba

Pertinho de Guaraciaba

Nas terras de seu Simão.

No dia de São Sebastião

Aos vinte dias de janeiro

O céu rasgou-se em duas bandas

Foi o maior aguaceiro

Encheram-se os riachos

O sertão de cima a baixo

Transformou-se em atoleiro.

Raimunda Mão de Pandeiro

Muié fulêra e safada

Tava com o Zé Carneiro

Dando uma furunfada

Foi quando viu o Nonato

Entrando dentro do mato

Numa carreira danada.

Raimunda, desconfiada

Foi ver o que aconteceu

Sua casa estava aberta

Escura que nem um breu

E foi logo percebendo

Que o livro que estava lendo

Dali, desapareceu.

Sem saber o que aconteceu

Pensou ser alma penada

Que procurava uma Bíblia

Levando o livro, enganada.

Mas se lembrou de Nonato

Entrando dentro do mato

Correndo em disparada.

Como era desconfiada

Raimunda ficou cabreira

E pensou por que Nonato

Saía naquela carreira

Era melhor esquecer

Nonato nem sabia ler

E esqueceu a besteira.

Num dia de segunda-feira

Raimunda foi à cidade

Como gostava de ler

Comprou um “Mário de Andrade”

Dessa vez teve cuidado

Deixou o livro guardado

E foi à casa da comadre.

Falando com seu comprade

Do livro que havia comprado

Pra substituir o outro

Que tinha sido roubado

O compadre lhe falou

Que alguém lhe surrupiou

Seu “Quincas”, de Jorge Amado.

Depois de ter se informado

Com a população local

Viu que o roubo de livros

Por ali era normal

Qualquer papel amassado

Até escritor consagrado

Qualquer revista ou jornal.

Então não era anormal

Livro desaparecer

Porém o que admirava

E ninguém sabia dizer

É como o livro sumia

E pronde diabo é que ia

Se quase ninguém sabia ler.

Pra não confundir você

Que já tá se perguntando

Como ninguém sabia ler,

Se de livro tô falando?

Mas você entenda bem

Eu disse: “Quase ninguém”.

Não tou generalizando.

Caro leitor, vou dizer

Naquela comunidade

Não tinha nem uma escola

Por falta de boa vontade

Do “nosso honesto” prefeito

Que governava a dois pleito

Nossa querida cidade.

Pois não era novidade

Ninguém gostar de leitura

E o povo que ali morava

Levava uma vida dura

Nada mais tinha importância

E a santa ignorância

Levavam pra sepultura.

Nessa vida de amargura

Com o pobre endividado

Ralando feito jumento

Ou feito boi no arado

O povo vivia sem gosto

E ainda pagando imposto

Pra um bando de safados.

Já que tá tudo explicado

Ao causo vamos voltar

Pois o sumiço dos livros

Ninguém sabia explicar

E ninguém compreendia

Como que um livro sumia

Ali, naquele lugar.

Começaram a procurar

Uma pista que indicasse

O paradeiro dos livros

E qualquer um que pegasse

O tal maldito ladrão

Podia dar voz de prisão

E ao delegado levasse.

Como se isso não bastasse

A quem pegasse o ladrão

Seria dado uma recompensa

De um alqueire de feijão

Um costal de rapadura

Um burro com ferradura

E mais cem contos na mão.

Em todo aquele sertão

A notícia se espalhou

Que quem pegasse o cabra

Podia levar ao Doutor

Que seria recompensado

Pelo povo respeitado

Como um grande benfeitor.

Logo o povo começou

A caçar no matagal

Uma pista do ladrão

E veio a rádio local

Para cobrir o evento

Do grande acontecimento

Até então sem igual.

Até mesmo no jornal

A notícia já corria

E ganhar o grande prêmio

Todo mundo já queria

Quem quer que fosse passando

Já tinha alguém vigiando

Pra ver o que o outro fazia.

A partir daquele dia

Começou a confusão

Com vigia pra todo lado

Da serra até o sertão

Do interior à cidade

Acabou a privacidade

Todos queriam o ladrão.

Qualquer embrulho na mão

Era logo revistado

Por quem estivesse perto

E o rebú tava formado

Foi grande o constrangimento

E muito mais duzentos

Num dia só foram intimados.

Logo viu o delegado

Que aquilo era anormal

A confusão tava grande

Gente saindo no pau

E a coisa estava feia

Já tinha dado até cadeia

“Constrangimento ilegal”.

Combinou com o pessoal

Para pegarem o ladrão

Mas que respeitassem os outros

E evitassem confusão

Como vinha acontecendo

Era até constrangimento

Ferindo a Constituição.

Nos festejos de São João

Chegou um intelectual

Para curtir as novenas

Chegando da capital

Quando soube do ladrão

Cheio de empolgação

Disse: “Isso é muito legal!”

Achou sensacional

A história do ladrão

Por saber que a leitura

Se espalhou pelo sertão

Pois naquela terra dura

Vingou a literatura

Como se vinga feijão.

Com imensa satisfação

Foi falar ao delegado

Que perdoasse o ladrão

Case ele fosse apanhado

E quantos livros quisesse

Daria a ele, se tivesse

O seu nome revelado.

E saiu emocionado

Daquela delegacia

Jurando que aquele era

Na vida o seu melhor dia

Findou-se a perseguição

E toda a população

Encheu-se de alegria

Ninguém ali conhecia

Esse suposto ladrão

Que passou a ser herói

E que antes foi vilão

Todos acharam legal

Ter um intelectual

Famoso na região.

Zé Carneiro, o garanhão,

Um dia de madrugada

Viu um cabôco correndo

Pro mato, na disparada

Sumindo na escuridão

Levava um livro na mão

Já com uma página arrancada.

E naquela madrugada

Foi uma decepção profunda

Zé Carneiro, quando ia

“Se encontrar” com a Raimunda

Viu o Nonato agachado

Com um livro todo rasgado

Com as páginas limpando a bunda.

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Publicado integralmente em 04 de 08 de 2009. Qualquer pessoa está autorizada a copiar parte desta obra citando o autor. Proibido a publicação desta obra ou parte dela fora do Recanto das Letras sem autorização por escrito do autor.

Poeta do Riacho
Enviado por Poeta do Riacho em 04/08/2009
Reeditado em 02/02/2010
Código do texto: T1736243