AS RAPOSAS DO CABAÇO
(Trecho do cordel)
Dizer que quem mente rouba
É conversa corriqueira
Pois tem verdades mentiras
E mentiras verdadeiras
Tem pessoa incompetente
Afirmando que não mente
Mas só conversa besteira.
Pai-de-santo, rezadeira
Só acredita quem quer
Há quem disto não faz caso
Mas existe quem tem fé
Assim, mentira e verdade
Com toda disparidade
Tem também o seu mister.
Tem homem que por mulher
Se arrisca em aventura
Escala qualquer parede
Despenca em qualquer altura
Qualquer distância ele tira
E inventa qualquer mentira
Pra ganhar a criatura.
Chega de tanta misura,
De conversa em desatino
Pois agora eu vou contar
Um caso bem severino
Que um dia aconteceu
Com um certo primo meu,
O Eufrásio Saturnino.
Eufrásio era um menino
Esperto e muito sapeca
Gostava de trabalhar
Caçar e jogar sueca
Coragem, disposição,
Mesmo sendo do sertão
Não tinha nada de Jeca.
Bom tocador de rabeca
Nisso ninguém o vencia
Se o pai foi bom caçador
Nisto o filho o seguia
Topava qualquer parada
No campo ou mata fechada,
Só raposa ele temia.
Morava em Santa luzia
E na roça trabalhava
Arranjou uma namorada
Que no Cabaço morava
Na luta a semana inteira
No Sábado, dia de feira,
Sua casa frequentava.
Só no domingo voltava
Pra começar a labuta
Noivou com ela, casou
E continuou na luta
Junto com sua consorte
Mas num duelo com a morte
Findou perdendo a disputa.
Não é bem dessa disputa
Que eu pretendo falar
É de outra aventura
Quando estava a namorar
Na viagem costumeira
No Sábado, dia de feira,
E não conseguiu voltar.
Como sempre a trabalhar
No roçado de um patrão
Pra casa da namorada
Ele ia de caminhão
E no domingo, sozinho,
Voltava pelo caminho
Chutando pedras no chão.
Numa certa ocasião
Quando voltando ele ia
Houve um fato inusitado
Durante essa travessia,
Bem na quebrada da serra
Um grande tremor de terra
No momento acontecia.
Na região existia
Nos campos e matagais
Preá, ticaca, tatu
Mocó, guaxinim, guarás
Lambu, ribaçã, rolinha,
Raposa era o que mais tinha
Entre todos animais.
Não podendo seguir mais
Devido aquela zoeira
Ele esqueceu o cansaço
Voltou em toda carreira
Seu corpo todo doía
Quanto mais ele corria
Mais ouvia a quebradeira.
Chegou, caiu na soleira
Em total esgotamento
Tremendo igual vara verde
Ficou por alguns momentos
Ofegante, sem falar,
Sem poder se explicar
Porque tanto sofrimento.
Formou-se aglomeramento
Em torno do atordoado
Todos querendo animá-lo
E ele desacordado
Com a cara desfalecida
Parece até que da vida
Estava desenganado.
Botaram ele deitado
Ver se passava a canseira
Lhe deram um chá de jalapa
Mais um chá de quixabeira
Quando se viu melhorado
Levantou-se atordoado
Saiu batendo a poeira.
Passado uma hora inteira
Foi que conseguiu dizer:
«Quando ia detrás da serra
Nunca mais vou esquecer
Aquelas terríveis coisas,
Umas cento e vinte raposas
Me botaram pra correr.
Nada podendo fazer
Pois era bicho de mais
Elas em cima de mim
Pior do que satanás,
Corrí porque não vencia,
Mas quanto mais eu corria
Mas elas corriam atrás.»
Seu sogro disse: «Rapaz,
Você tá exagerando!
- Seu Inácio, por acaso,
Não está acreditando?
Pois vá ver a quebradeira.
Ficaram lá na porteira
Pra quem tiver duvidando.
- Apenas estou achando
Que cento e vinte é de mais
- Mais tinha pra de cem
Raposa em frente e atrás.
O velho disse: «Cambada,
Junte o que for de espingarda
Pra enfrentar os animais.
Cerquem lá pelos currais
Vão pela pedra da venta,
Ainda estou achando muito,
Nosso campo não aguenta.
- Meu sogro tá duvidando
Mas continuo afirmando
Que tinha mais de setenta.»
Uma equipe violenta
Todos muito bem armados
De faca, foice e cacete
Tinha até rifle blindado
Eufrásio com a cabroeira
Foram até a porteira
Onde elas tinham ficado.
Nenhum rastro ali deixado
Mais uma interrogação,
«Vocês demoraram muito
O vento fez sua ação.
Não há rastro em nenhum canto
Porque elas corriam tanto
Que vinham altas do chão.
- Você viu assombração
Caipora ou fulozinha
- O que eu vi foi raposa
Na baixa da lagoinha
- E era mais de setenta?
- Se não era umas cinquenta
Mas umas vinte e seis tinha.
- Vamos lá na lagoinha
Pra desmanchar esse nó
Pelo jeito que estou vendo
Raposada virou pó
Também está comprovado:
Meu genro é abilolado
E gosta de um quiprocó.
- Era uma nuvem de pó
Surgida de um redemonho,
- O que eu vi foi raposa,
Num terremoto medonho.
Por pouco não me pegaram.
Se elas não me agarraram
Foi graças a Santo Antônio.
- Tu viu raposa num sonho,
Nenhum sinal aqui tem
Raposa corre da gente
E de zoada também.
Quanto mais se aproximavam
Mais o que Eufrásio contava
Não convencia ninguém.
Enfim, eram mais de cem
Ou cento e vinte talvez
Depois baixou pra setenta
E, como viram vocês,
Uns e outros duvidando
E as raposas se acabando
Já parou em vinte e seis.
E não passava de três
Quando no canto chegaram
Como no pé da porteira
Nenhum sinal encontraram
E ficaram revoltados
O sogro mais os cunhados
Com a mentiram que enfrentaram.
«Vocês não acreditaram
- Disse Eufrásio se explicando -
Eu não vi raposa alguma
Quando aqui ia passando
Mas o que elas fazia
De zoada parecia
Que o mundo estava acabando.
Muitas histórias contando
Eu vou tomando atitude
Pra narrar uma mentira
Só quero que Deus me ajude.
Sem trapaça, sem engodos,
Pretendo provar pra todos:
Mentir faz bem a saúde!
Série Caçadores, volume XII