UM CAÇADOR DE MOCÓ

Ouví CHICO SATURNINO

Um caçador de outrora,

Que contou-me com detalhes

Seus fracassos e vitórias,

Contando-me eu assitia

Uma aula de Geografia.

Passamos a sua estória:

“Sou filho de Saturnino

Constantino de Medeiros,

Dos velhos do tempo antigo

Que aqui foi um dos primeiros

A crer no catolicismo

E herdar o carrancismo

E a crença dos cangaceiros.

Com 95 anos

Eu nunca arredei o pé

Daqui de Santa Luzia

Nem prá ir em São José,

Meu transporte sempre foi

Carroça e carro de boi,

Lombo de burro e a pé.

No pé da Serra Redonda

Fiz uma caçada bacana

Eu matei oito de tiro

Foi a melhor da semana

Pra fechar a narração

Inda peguei um de mão

No tronco de um umburana.

Nesse tempo se caçava,

Trabalhava, vivia bem,

Papai fez grandes caçadas,

Eu fui caçador também.

Diz o ditado do povo

Que o pinto já sai do ovo

Com a pinta que o galo tem.

No ano de 19

Minha primeira caçada,

28 de Outubro

Tá na memória gravada,

Nesse tempo dava gosto

Do Sol nascer ao Sol posto

Andar na mata fechada.

Durante todo esse tempo

Eu sempre cacei mocó,

Nunca andei em comitiva

Pois podia ser pior,

Como dizia o ditado,

Prá tá mal acompanhado

Eu preferia andar só.

Foram 34 serras,

Eu tenho sempre na mente,

Me embrenhava em todas elas,

Norte, sul, leste e poente,

Hoje sei com grande mágoa,

Não há mais tanto olho dágua

Secativo ou permanente.

Papai sempre me mandava

O almoço eu ir buscar

No pé da Serra Redonda

E ficava a esperar

Pois isso nunca falhava,

Dois, três mocós eu matava

E trazia pro jantar.

Já cacei muito nos Gatos,

No Saco do Mulungu,

Na Serra de Antonio Berto,

Também no Capim Açu,

Lá no Tanque do Novilho,

Cacei do Tanque do Milho

Até sair no Yayu.

Caçava mais no Domingo

Que é quando não se trabalha,

Pinga, Pedra da Boneca

Até o Saco da Palha,

Da Pedreira a Retirada

Ali fiz grandes caçadas,

Se a memória não me falha.

Pilões, Talhado dos Louros,

Na Grota das Quixabeiras,

No Cabeço do Buraco,

Olho Dágua das Craibeiras

E na Serra da Cozinha,

Da Tubiba, Lagoinha,

Lagoa da Feiticeira.

Santa Maria dos Campina,

Raposa, Várzea Comprida,

Serra do olho Dágua Grande

Eu quase perdi a vida,

Em todo esse cafundó,

Eu matei muito mocó,

Minha caça preferida.

No Cabeço do Alferes

A Natureza criou,

Lá na Serra da viola

E Deus sempre conservou

Prá todas as criaturas,

Um olho dágua muito pura

Que até hoje não secou.

Cabaço, Serra dos Porcos

E olho Dágua da Lage,

João Mole, Curral de Pedra,

Eu guardo sempre a imagem,

Pro Saco da Lage Grande

Onde a pureza se expande,

Eu deixo minha mensagem.

Olho Dágua dos Alferes,

Pico Alto, Caiçara,

Lá na Malhada dos Louros

Onde hoje a caça é rara,

Na Carnaúba e Favelas,

Fiz muitas caçadas nelas,

Só não matei capivara.

Eu só caçava mocó

Porém havia exceção

Porque sempre aparecia

Um gato na região

E atravessou meu trilho

Eu apertava o gatilho

Prá ver o bicho no chão.

Um maracajá mirim

Foi o que eu matei primeiro,

Matei em Miguel Paulino

Um grande açú verdadeiro,

A carne toda eu comia,

Tirava o couro e vendia

Porque valia dinheiro.

Na Grota dos Pilõezinhos

Um bicho grande eu matei

Era uma bicha fêmea,

A maior que eu encontrei,

Foi um trabalho tremendo

Que até hoje eu não entendo

Como foi que escapei.

Foi isso em 42,

Eu ia com Pedro Benício,

Avistei o animal

Embaixo no precipício,

Desci como lagartixa,

Rapei o dedo na bicha

Que foi grande reboliço.

Escorreguei no serrote

E caí no cafundó,

Meti as costas na ponta

De um tronco de mororó,

Deu-me um talho tão danado

Que eu fiquei todo rasgado,

Desde a nuca ao mocotó.

Teve outro maracajá

Que desse eu quase esquecia,

Voltando agora a mocó,

Matava em grande quantia,

Da saída prá chegada

Nunca perdi uma caçada:

De quatro a seis eu trazia.

No pé da Serra Redonda

Fiz uma caçada bacana:

Eu matei oito de tiro,

Foi a melhor da semana.

Pra fechar a narração

Ainda peguei um de mão

No tronco de uma umburana.

No ano de Trinta e Três

Lá em Antonio Romualdo

Eu fui caçar um mocó

Que morava num talhado

Quando dou fé me emparelho

Com um grande gato vermelho

Do tamanho de um veado.

Distante quarenta braças

Do lugar onde eu ficara

Depressa rapei-lhe o dedo

Pegou no meio da cara

Caiu por cima do lombo

Foi feia a queda e o tombo

Ciscando numa coivara.

Corri, peguei pelo rabo

Ele todo ensanguentado

Mas pulou na minha cara

Saimos engalfinhados

Cai aqui, cai acolá,

Tentando me agarrar

E eu com ele agarrado.

Arranhou todo meu corpo

E eu com o rabo na mão,

Levantei com toda força,

Meti o bicho no chão

Que a cabeça espatifou,

Pondo fim ao terror

De uma grande região.

É que ele vinha acabando

Com todos os galinheiros

Desde Manoel Filomena

Té dentro nos tabuleiros

Muitos me pagar quiseram

Porque só assim puderam

Ver livres os seus terreiros.

Eu fui mais Chico Gerôncio

Prá fazer uma caçada

Lá na Serra do Cabaço

Um dia de madrugada,

Vi um casal de mocó

Que se existiu maior

Eu não vi nessas paradas.

Era uma gruta profunda,

Eu quase dependurado

Mas apertei o gatilho,

Caiu um prá cada lado,

Desse casal de mocó

Aproveitamos um só,

O outro foi desperdiçado.

O macho caiu na boca

De uma grande gruta que havia

Pois essa serra é famosa

Aqui em Santa Luzia

Pelas grutas existentes

Onde índios antigamente

Faziam suas moradias.

Eu vi um bicho esquisito,

Preto da cor de carvão

No Serrote Santo Antonio,

O único na região.

E tinha um cabelo só,

O corpo era de mocó

Mas tinha a cara do Cão.

Foi isso em 43

Quando o inverno começou,

Mas ao contar pros amigos

Ninguém me acreditou,

Prá provar que era verdade

Essa grande novidade

Levei outro caçador.

Eu fui mais Manoel Rendeiro,

Nós saimos muito cedo,

Chegando no canto certo

Fiz então uns arremedos

Mas para desgosto meu

O bicho não apareceu,

Por certo ficou com medo.

Voltemos de tardezinha,

Fiquei muito desgostoso,

Manoel Rendeiro, irritado,

Me chamou de pabuloso

E só não brigou comigo

Porque era meu amigo,

Mas passei por mentiroso.

Quando o vi era pequeno,

preto de alumiar,

o tempo foi se passando

e eu sempre voltando lá

mas nunca me desengano

e assim passei quatro anos

perseguindo até matar.

No lugar que eu ficava

ainda posso ir lá mostrar,

nunca mais nasceu pastagem

de tanto sapatear.

ali eu me ajoelhava,

me acocorava, sentava,

pacientemente a esperar.

Muitas vezes encontrei

seu fucinho em minha mira

mas a distância era grande

demais para quem atira.

pensava: se for chumbado

desaparece baleado

e eu não desmancho a mentira.

Entrava e saía ano

e eu nunca desistia,

no ano 45

quase que eu conseguia,

cheguei no ponto marcado

e fiquei alí sentado,

desde o amanhecer do dia.

Mais tarde já vem saindo

bem no meio do cercado

do velho Anísio Marinho

saiu beirando o roçado

fareijando pra sentir

tal se sentisse que alí

houvesse algo de errado.

Mas aí não desistí:

fui me chegando, chegando,

deitado, de quatro pés

agaichado, me arrastando,

cheguei bem pertinho dele

aí pressentí que ele

já estava me fareijando.

Fiquei fazendo marmota

e ele todo eriçado,

acendi o meu cigarro

mas quando olhei para o lado

vi uma raposa choca

do tamanho de uma porca

soltando aquele rosnado.

O mocó sumiu no mato,

tratou logo de escapar,

dei um tiro na raposa,

vi o mocó passar,

aquilo era tentação,

até parece que o Cão

faz questão de atrapalhar.

Regressei desanimado

por Sítio Passagem do Meio

na casa da minha sogra

e depois que almocei

arrumei a catrevagem

despedi da cunhadagem

e para casa voltei.

No ano 46

eu continuava lutando,

já tinha calo na bunda,

de tanto ficar sovando,

o canto até já fedia,

o bicho não aparecia

e eu, paciente, esperando.

Peguei um pouco de terra

e soltei devagarinho

me orientei pelo vento

para sair do caminho,

com pouco lá vem o bicho

no seu jeitinho a capricho

a procura do seu ninho.

Deixou pra trás o talhado,

entrou no faveleiral,

e eu na perseguição

do cobiçado animal,

mas ele foi mais matreiro,

acho que me viu primeiro

e sumiu no matagal.

Junho de 47

foi que vencí essa briga.

era uma mocó fêmea

Com três crias na barriga,

pensei logo cá comigo,

vou mostrar pros meus amigos

e acabar essa intriga.

No meio do xique-xique

procurando proteção

do vento pra me ajudar

com uma terrinha na mão

mas veio do lado norte

um sopro de vento forte

traindo minha posição.

Escutei um reboliço

e vi sair do talhado

dois mocós de bom tamanho

e o mocó preto afamado,

um atrás, outro adiante

e ficaram bem distantes,

todos três emparelhados.

Parecia proteção,

o preto entre os outros dois,

sumiram atrás de uma pedra,

apareceram depois,

os dois chegaram mais perto,

com um tiro só era certo

eu comer aqueles dois.

Mas eu só queria o outro.

E vi o preto chegar.

Um correu, entrou na furna

ao vê-lo se aproximar.

Dei-lhe um tiro tão danado

caiu um pra cada lado

que deu trabalho a encontrar.

Pulei dois metros de altura

me espatifei no chão,

caiu o couro do joelho

e a cabeça do dedão,

a canela estraçalhada

mas eu não sentia nada,

queria o mocó na mão.

Mas tive muito trabalho

depois que o bicho matei,

passaram-se algumas horas

até que o encontrei

dentro de um buraco escuro,

já estava ficando duro

quando dele me apossei.

Era um bicho diferente

de todos os animais,

todo bicho, além do ânus,

tem os órgãos genitais

mas esse bicho difícil

tinha um só orifício

para os serviços gerais.

Tinha a cabeça de gato,

não tinha unhas nas mãos,

as orelhas de quati,

fedia que só o cão,

era um bicho sem igual

pois não houve outro animal

como ele aqui no sertão.

Matei às onze do dia

e levei pro Cobiçado

porque Juvenal Aprígio

e Agostinho Romualdo

diziam que era buchicho,

que eu só inventei o bicho

prá transitar nos roçados.

Era um bicho muito grande

maior do que uma ticaca,

o couro era duro e grosso

como o couro de uma vaca,

mandei curtir por Pitanga

prá fazer calço prá canga

e correia de alpercata.

Paguei dez tões prá curtir,

isso era preço de ouro,

mas quando estava exugando

ainda no cuaradouro

já foi criando valia,

Cícero Fumeiro queria

dar dois mil réis pelo couro.

Severino Graciano,

Num ato pretensioso,

Andou a cidade toda

Mostrando o bicho famoso

Prá acabar com a fofocagem

E apagar a imagem

Que eu tinha de mentiroso.

Foram essas minhas caçadas

Por toda essa região

No tempo que eu era moço

Com uma espingarda na mão,

Fazia e acontecia

E ninguém me proibia,

Pois caça havia de montão.

Mas o tempo foi passando,

A caça se escaçeando,

O matagal rareando,

A idade se adiantando

E pouco a pouco eu parei;

Das minhas grandes caçadas

Já não me resta mais nada,

Somente a marca estampada

Da saudade que guardei;

Hoje velho, definhando,

Velhos tempos relembrando,

A visão foi se apagando,

Foi faltando, foifaltando,

Faltou de tudo, ceguei!!!

(Série Caçadores, Volume 2)

Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 16/04/2009
Reeditado em 21/11/2022
Código do texto: T1542602
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