SERTÃO SAUDADES

Hêêê... lembrança boa do serrado

Do sol queimando danado

O solo do meu sertão

Lembro bem de Seu Antôim José

Homem magro

De bucho inchado

Pés calejados

Cabelo enrolado

Da cor desse chão

Pai de Chiquim,

Maria, José

Concita, Toim, Tião

Jandira, João, Josué

Marido de Dona Andira

Mulher sofrida

Feia como a porca parida

Que o cão chutou com o pé

Dona Andira mulher vivida

Guerreira de muita fé

Passa o Dia a coser rede

Sentada num banco duro

E quando o céu tá escuro

Lá vem ela com os peito duro

Amamentar josué

Dona Andira mulher de fibra

Guerreira de muita fé

E sempre depois da lida

Ainda lhe sobra energia

Pra Antôim lhe fazer mulher

E sempre depois do aconchego

Andira se põe de joelho

Num ato de devoção

E pede pra santa querida

Nossa Senhora Aparecida

Que traga seu filho Tião

Rapaz bom de pouca idade

Sem orgulho e sem maldade

Foi embora do sertão

Foi tentar a vida longe

Lá onde o diabo tem nome

De terra da perdição

Menino sonhador

Sonhava em ser doutor

Na grande capital

Mas nunca mandou noticia

Benza Deus que ainda com vida

Volte pra terra natal

Êêê...Lembrança boa da caatinga

Das comidas de Dona Mandinga

Curandeira da região

Me alembro que uma vez cheguei no seu

Terreiro pra me consultar

A veia mal me viu

Nem discutiu

Já mandou eu me deitar

Me benzeu com vela preta

Folha santa

Lampião

E até chá de cansanção

Essa veia fez eu tomar

Cuspiu num prato

Misturou com vinagre

E botou pra eu cheirar

Me amarrou num pau de sebo

Deu três estalos de dedo

E começou a me açoitar

E eu gritando de dor

Valei-me meu Senhor

Essa veia vai me matar

Era só um dente pôde

Não precisa os açoite

Eu só queria arrancar

Que me perdoe Dona Mandinga

Que eu não falo em morte

Eu falo em vida

Que Deus a tenha num bom lugar

Êêêê...e foi lá no meu Sertão

Que escutei a coisa mais linda de minha vida

Foi uma prosa bonita

Entre meu cumpade Antôim

E sua filha caçula Concita

O dia já tava cansando

E nós ali no lago pescando

Admirando o infinito

Lá vem ela toda faceira

Com o corpo cheio de poeira

Mas no canto da boca um sorriso

E com os pesinhos tocando na água

Foi logo dizendo ao sentar

Paizinho onde Deus está?

E como se Deus tivesse soprado em seu ouvido

Antôim quase despercebido

Começou a lhe falar

Há! Concita... Minha filha

Deus está em todo lugar

Deus está aqui

Deus está ali

Deus está acolá

Deus é o mugido do boi

Deus é o barro molhado

Deus é o galo a cantar

Deus foi o ontem

Deus é o hoje

Deus é o que virá

Deus é a visão

Deus é a audição

Deus é o caminhar

Deus é o amanhecer

Deus é o entardecer

Deus é o despertar

Deus é a fome

Deus é a comida

Deus é o saciar

Deus é o vento

Deus é o fogo

Deus é a neve

Deus é o canto dos pássaros que tu ouve

Deus é a água do poço que tu bebe

Deus é o menino que corre na chuva

E corre sem nada buscar

Deus é o choro da mãe ao ver o filho partir

Deus é o choro da mãe ao ver o filho voltar

Há! Concita... minha filha

Deus está em todo lugar

Deus está aqui

Deus está ali

Deus está acolá

E os dois se levantaram

E saíram a caminhar

E eu ali parado

Sentado na beira do lago

Comecei a chorar

Pensando: Se Deus é tudo isso

Tão forte e tão bonito

Ela vai me ajudar

Vai permitir que um dia

Pra minha terra querida

Eu possa um dia voltar.