RIO PRETO - O CANGACEIRO TARADO

(Trechos do Cordel)


CANGACEIROS XIII
      RIO PRETO

Lucas da Feira era um negro
Que nasceu na escravidão
Um dia fugiu do eito
Levou com ele um esquadrão
E formou com os companheiros
Um bando de cangaceiros
Para assaltar no sertão.

Provocou destruição
No Estado da Bahia
Mulher casada ou donzela
Era o que mais perseguia
Pois a obsessão que tinha
Era vingar as negrinhas
Que o branco seduzia.

Até que chegou o dia
Do bando ser dizimado
Em luta com a polícia
Foi um a um baleado
Outros fugir conseguiram
Pra muito longe e não viram
O chefe ser executado.

Dos que haviam escapado
Algum seguiu cangaceiro
Outros, perdidos na mata
Se embrenhou no chão mineiro
E veio a abolição
O fim da perseguição
A extinção do cativeiro.
    
Um antigo cangaceiro
    Se embrenhou nos matagais
    Perseguido da polícia
    Transpassou Minas Gerais
    Conseguindo os despistar
    E foi se refugiar
    No Estado de Goiás.

Bom tratador de animais
Foi trabalhar numa fazenda
E assim viveu muitos anos
Em uma ou outra vivenda
Disfarçado de bom moço
Sempre evitando alvoroço
Com medo de reprimenda.
    
Morava só numa tenda
    Sem chamar muita atenção
    Vivendo em harmonia
    Com os brancos da região
    Tendo o povo acreditado
    Que era um negro libertado
    Pela lei da abolição

Mas tinha no coração
A mágoa do cativeiro
O ódio do homem branco
A saga do cangaceiro
Das negrinhas a lembrança
E os estupros por vingança
Nas filhas dos fazendeiros.

No seu ermo paradeiro
Com o branco pouco falava
Em sua luta diária
De seu passado lembrava
De dia, sempre arredio
E à noite no leito frio
Às vezes até chorava.

Rio Preto se chamava
Esse negro desertor
Criado na sujeição
Do chicote e do terror
Que entre senzala e cangaço
Não foi de todo um fracasso
Mas a paz não encontrou.

Dele nunca se apartou
A pose de valentão
Um bacamarte na cinta
Do outro lado um facão
Ódio e rancor transpirava
Mas tão bem se disfarçava
De pacato cidadão.

Por aquela região
Era praxe andar armado
Por isso ninguém ligava
Pra o negro paramentado
Que entre os brancos vivia
Com o trabalho de dia
E à noite com o seu passado.
    
O passado é trapo usado
    Que não se pode guardar
    Sempre tem que ser tirado
    Do baú pra não mofar
    Tudo que nos aconteça
    Por mais que a gente se esqueça
    Um dia há de lembrar.

O tempo tarda em curar
As dores do pensamento
As cicatrizes da alma
Não caem no esquecimento
Quem gozou só lembra glória
Quem sofreu lamenta e chora
Com o passado em advento.
    
A Fazenda Livramento
    Pertinho de Itumbiara
    Naquele tempo a maior
    Dedicada a pecuária
    Começava em Itanguaciba
    Ladeando o Paranaíba
    Até Paranaiguara.

Muitos ali se instalara
Pra cuidar da criação
Do fazendeiro Zé Leite
Tido como um bom patrão
Mesmo sendo afortunado
Tratava seus empregados
Com carinho e devoção
    
Bem casado, bom cristão
    Dois filhos e a mulher
    Era toda sua prole
    Uma família de mister
    A filha muito bonita
    E se chamava Concita
    O filho era Josué.

Num cavalo pangaré
O filho passava o dia
Visitando seus colonos
E todos o recebia
Não como um filho patrão
E sim como um bom irmão
Sempre com muita alegria.
    
Pois ali não existia
    Desigualdade e opressão
    Se o filho os tratava bem
    Melhor tratava o patrão
    Com as mulheres e a patroa
    Numa convivência boa
    Também reinava a união.

Moça de bom coração
Concita também andava
Toda moça da fazenda
Uma a uma visitava
Enfim, concórdia e união
Carinho e compreensão
Na Livramento reinava.
    
E quando o dia chegava
    De ferra e de marcação
    Em certa parte do ano
    Que ali era tradição
    Quem trabalhava com gado
    Em qualquer parte do Estado
    Vinham para a apartação.

Com a aproximação
Daquele famoso evento
Uma semana de festa
Na Fazenda Livramento
Vaqueiros se aglomeravam
E todos que ali chegavam
Encontravam alojamento.
    
Foi num acontecimento
    Em bom ano de fartura
    Que no início da festa
    Chega uma cavalgadura
    No meio da peonada
    E nela vinha montada
    Uma estranha criatura.

Gigantesco de estatura
Duas patronas no peito
Roupa e botinas escuras
O chapéu do mesmo jeito
Esse retrato do cão
Que apresentou-se ao patrão
Era o negro Rio Preto.
    
Com um sorriso contrafeito
    O patrão o recebia
    Mas logo mudou de idéia
    Pois muitos o conhecia
    E o negro, prazenteiro
    Inspirava aos companheiros
    Confiança e alegria.

Na campina ou na coxia
O negro se destacava
Na doma de potro chucro
Ninguém o acompanhava
E o trabalho prosseguia
Somente no fim do dia
Dos outros se separava.
    
Com os animais repousava
    Não dormia entre os peões
    Também não participava
    Das festas e diversões
    Esse hábito o perseguia:
    Trabalho durante o dia
    E a noite as recordações.

E terminada as missões
De peso e marca de gado
Começa então a dispersa
Todos bem remunerados
Seus caminhos vão tomando
E prá ficar trabalhando
Rio Preto é convidado.
    
Num casebre improvisado
    O Vaqueiro se instalara
    Prestimoso e sempre atento
    Com o povo que o contratara
    Em seu cavalo montado
    No campo a lidar com gado
    A vida continuara.

Mas algo se transformara
Ali naquele setor
Concita, que sempre andava
Em casa de morador
Tornou-se desconfiada
Parando suas andadas
Do negro criou temor.
    
Estava noiva de Nestor
    O filho do capataz
    Preparada pra casar-se
    Tendo a bênção de seus
    E aquele casamento
    Seria o maior evento
    Do interior de Goiás.

Concita fala ao rapaz
Do receio que guardava
Mas não sabia explicar
O que a atemorizava
E que a sua vizinhança
Devido a desconfiança
Ela não mais visitava.
    
Da forma que a coisa estava
    O rapaz preocupado
    Foi falar com o seu sogro
    Sobre o clima ali criado
    Aproveita a ocasião
    E apela ao seu patrão
    Pra o negro ser dispensado

Zé Leite ficou zangado
Pois não queria perder
Um vaqueiro competente
Sem outro pra suceder
E não deu muita importância
Àquela desconfiança
Que não tinha proceder.
    
Porém tentando atender
    Aos apelos da filha
    Manda fazer uma cabana
    Longe de sua família
    Pondo um fim a esse impasse
Pois por mais que ele andasse
    Não cruzava sua trilha

Rio Preto se desvencilha
Do humor que conduzia
Ao saber que a moça branca
Encontrá-lo não queria
Voltando nele o fracasso
Da senzala e do cangaço
No Estado da Bahia.
    
Até que chegou o dia
    Do casamento aguardado
    Era aniversário dela
    Dezoito anos completado
    Muita festa e diversão
    E de toda a região
    Vinha o povo convidado.

Rio Preto, endiabrado
De nada participou
E na calada da noite
Da fazenda se afastou
No seu orgulho ferido
Mesmo sem ser despedido
Na mata se refugiou.
    
Pouco tempo se passou
    Sem ele ser encontrado
    Zé Leite sentiu a perda
    Do seu vaqueiro afamado
    Mas não tendo solução
    Contrata outro peão
    Para cuidar do seu gado

O caso foi encerrado
O negro foi esquecido
Concita ficou morando
Na casa do seu marido
Rio Preto tocaiado
Reassume no cerrado
A condição de bandido.
    
E haja crimes sucedidos
    Por aquela região
    Estupro de mulher branca
    Morte a filhas de patrão
    O pânico vai se gerando
    A polícia investigando
    Sem encontrar solução.

O autor da criação
Do pesadelo gerado
Era o negro que voltava
Ao seu terrível passado
Jurando um dia encontrar
Concita prá se vingar
Por tê-lo discriminado.
    
Com esse plano traçado
    Ele resolve voltar
    Encontra a mulher sozinha
    Que o recebe a disfarçar.
    “Se acarme, dona Conchita,
    Num me aceite pro visita,
    Que eu num vim lhe visitá.

Vim minha conta cobrá
E num me venha com choro.”
A mulher lhe oferece
Quatro patacas de ouro
“Guarde lá sua fartura
Que essa sua fremusura
Vale mais do que tisouro.
    
E dispois lhe tiro o couro
    Mode fazê um borná”
    E a mulher é violentada
    Mas antes dele a matar
    Chega o marido e o cunhado
    E ele foge pra o cerrado
    Antes deles o notar.

Só depois vão encontrar
Esse quadro desumano
Levam a moça para os pais
O marido em desengano
Declara a toda a família
“Vim entregar sua filha
E vou atrás do tirano.
    
Quem cuidou dezoito anos
    Pode cuidar mais um dia
    Vou atrás de Rio Preto
    Nem que seja na Bahia
    Prometo aqui só voltar
    Quando esse negro encontrar
    E por fim nessa agonia”.

Prepara a artilharia
Para seguir seu caminho
Mas seu cunhado lhe diz
Você não irá sozinho
E um batalhão é formado
Para caçar o tarado
No cerrado ali vizinho.
    
E entraram no espinho
    Com três cabras do lugar
    Campeões de tiro ao alvo
    O segundo regular
    O melhor era o primeiro
    E o defeito do terceiro
    Era um tiro não errar

Não precisou se afastar
Bastante da moradia
O negro estava escondido
Na capela da Abadia
Atrás de um tacho de cobre
O sacristão o descobre
No fim do primeiro dia.
    
E sai em grande arrelia
    Gritando pra todo lado
    O negro aproveita e corre
    Se embrenhando no cerrado
    Pensou que estava seguro
    E foi selar seu futuro
    Encontrando o grupo armado.

Seis cabras paramentados
Ver seis onças comedeiras
Já na primeira descarga
Rio Preto arreou bandeira
E disparos sucedidos
Deixam o corpo do bandido
Em pedaços na poeira.

Fazem uma grande fogueira
Em cima do fracassado
Queimam com muita bravura
Um fantasma do passado
Que nasceu na escravidão
E viveu na ilusão
De se tornar homem honrado.

Ali mesmo é enterrado
Bem longe da vizinhança
De cristãos que desconhecem
A palavra tolerância.
Diz um provérbio chinês:
Não pode haver honradez
Onde há desconfiança.

Cangaço virou lembrança
Escravidão é passado
O império do preconceito
Nunca perde o seu reinado
E eu concluo o livreto
A SAGA DE RIO PRETO
O CANGACEIRO TARADO.

            

 


Caro Poeta
José M. Lacerda,
 
   
       Um amigo meu, professor Francisco
Fagundes, que  leciona na  Universidade
Estadual da Paraíba, unidade de Guara-
bira,  professor  de  História,  me  enviou
seis livretos de sua autoria, série canga-
ceiros.  Li todos eles agora à tarde e me
embalei no ritmo de sua palavra, que por
si  só  conduz  o leitor do início ao fim de
cada narrativa. Não é necessário dizer
que apreciei todos eles, pois o cordel é
quase um milagre nestes tempos moder-
nos de  conchavos em Brasília.
      Felizmente, os cordelistas estão alertas
e informam seu  público sobre tudo o que
acontece por estes  Brasis.  Você elegeu
como um dos seus temas o Cangaço. Entre
os livros que li,  apreciei, em particular, A
Saga do Cangaceiro Sapiranga, uma história
de amor impossível, funda, que faz o prota-
gonista sofrer (e, segundo Vinícius, o poeta
- e também protagonista - só é grande
se sofrer).
     
Parabéns, caro poeta e professor!
Continue seu apostolado poético, quer
escrevendo seus livros, quer visitando
escolas e levando a beleza aos garotos
que precisam da palavra poética, e quanto.
(Resido em São Paulo, Capital,
sou professor de língua portuguesa
e literatura e tenho alguns livros publicados).
Um grande abraço.
 
M. Cardoso
(Amigo de Manoel Monteiro)

                Muito obrigado, Professor M.
Cardoso, pelas palavras de alento.
              Quanto a mim, pensei escrever
alguns cordéis apenas e já passei de duzentos
e trinta. Também pensei que se escrevesse
o centésimo encerraria. Mas muitas vezes
quando pensamos que chegamos ao final, é
porque Deus está nos conduzindo a um novo
começo.

Um abraço, Professor

Série Cangaceiros - Volume 13
Zé Lacerda
Enviado por Zé Lacerda em 06/08/2008
Reeditado em 09/08/2014
Código do texto: T1115881
Classificação de conteúdo: seguro
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