KARANG, UM JOVEM CRUSTÁCEO QUE DESEJAVA SER GENTE (Cordel em décimas de sete pés)
KARANG, UM JOVEM CRUSTÁCEO
QUE DESEJAVA SER GENTE
Uma adaptação do conto de M. C. GARCIA
A CORRIDA DOS CARANGUEJOS
do seu livro POVAREJO
Por: Rosa Regis
Era noite de luar!
E a Lua, linda, imperava
No Macrocosmo e mandava
Para a Terra iluminar,
Naquela noite sem par,
A luz que ela recebia
Do astro Sol que, de dia,
Tinha o comando geral,
E a todos do manguezal,
Belíssima, embevecia.
Karang, um jovem crustáceo,
Como todos, encantava-se
E também deliciava-se
Sonhando com um palácio
Onde, para Epitácio
O seu nome trocaria.
Um’outra vida teria.
Respostas para as questões
E todos os seus senões,
Certamente, alcançaria.
Kar – que era como gostava
De ser chamado, afinal,
Queria prova cabal
Das coisas. E refutava
Quando algo se apresentava,
Porque, na realidade,
Queria sua verdade.
E, aí, resolveu mudar,
Seu viver modificar:
Viver como a humanidade.
Seu desejo, seu afã,
Era de que sua espécie
Um novo viver tivesse.
E, quem sabe, um amanhã
Com uma vida nobre e sã!
Seria ele um demente
Por lhe passar pela mente
Algo desta natureza?
Mas seu pensar, com certeza,
Só diz o que um jovem sente.
E Kar era diferente,
Não sonhava por sonhar!
Queria realizar
O que lhe ia na mente.
Não seria um ser demente!
Não era de concordar
Em viver só de sonhar
Como outros da sua idade.
Ele queria, em verdade,
Seus sonhos realizar.
Seu coração palpitava
Com mais vigor e prazer
Quando pensava em viver
Tudo aquilo que sonhava.
E ele idealizava
Um futuro promissor.
Porém sentia uma dor
Quando se via impotente,
Daquilo que tinha em mente
Ser o realizador.
Até quando ele iria
Suportar aquilo tudo
Sem reclamar? Ficar mudo
Naquela monotonia
Que sua alma envolvia?
Por toda sua existência?
Da sua espécie? Clemência!
“Tendo que viver na lama!
Submisso!” Ele reclama,
Na sua inexperiência.
“Com tanto lugar no mundo
Pronto pra ser explorado,
Tendo que viver socado
Em um buraquinho imundo!”
Pensa assim, por um segundo.
“Ou sempre estar preparado
Para, de chofre, arrancado
Ser da sua própria casa!”
Este pensar o arrasa,
Deixando-o desanimado.
“Servir, enfim, de repasto
A um guaxinim faminto
Ou ser exposto ao instinto
Do homem, dono dum vasto
Poder, sendo um ser nefasto
Que a tudo quer dominar,
Se incumbindo de traçar
Dos outros seres, a sina:
Dizendo o que a si destina.”
- E nunca iria mudar?!
E, tristonho, se pergunta:
“A mesa da burguesia
E a dos pobres, seria
O seu destino?” E ajunta,
Enquanto pensa e assunta:
“Sempre seria alimento?”
Chorando, então, sem alento,
Lembra que, nunca, ninguém
Ligou pra ele ou nem
Fez(-lhe) caso em qualquer momento.
E isso faz que Karang,
No desejo de crescer,
Transcenda ao seu próprio ser,
Aos seus avós – ao seu sangue.
Saindo dali do mangue,
Dispôs-se, enfim, visitar
Outro mundo que, a sonhar
Vivia: O Mundo Humano
Que, para si, desumano,
Parecia se mostrar.
O tempo passa. O desejo
De Kar, porém, não passou.
O que ele sempre sonhou,
Um dia, tem seu ensejo:
Um dia “D”! Quase o vejo
Na hora “H” da partida
Para a sua nova vida!
Com apenas dezesseis anos,
Enganos e desenganos
Vão com ele à nova lida.
Parte o nosso sonhador
Numa noite enluarada
Em perigosa e arriscada
Viagem. Um predador
Ele segue, sem temor,
Mas bastante precavido,
Rumando ao desconhecido.
Chegara o grande momento!
E agora o seu pensamento
É não ser visto ou ouvido.
O que ele queria mesmo
Do estranho e "distante" mundo,
Matuta por um segundo,
Com o seu pensamento a esmo,
Quase virando torresmo,
Era, enfim, tirar proveitos
Das sabenças, dos conceitos
Que pudessem oferecer,
Pra que pudesse entender
Quais seriam seus direitos.
E, à medida que seguia
O terrível predador
Que lhe causava terror,
Do saco às costas, ouvia
A voz dos seus, e tremia
De medo de ser pegado
E, qual eles, transformado,
Naquele dia, em “ração”
De um homem sem coração,
Sem sentimentos. Malvado.
O homem andava apressado
Porém teve que parar
Logo após atravessar
Uma extensão de alagado.
Pois, além de está cansado,
Teria, ele, que esperar,
Enfim, a maré baixar.
Assim, senta ao paredão
Da vala que estava, então,
Com as águas a transbordar.
Kar, já cansado, agradece
Aquele acontecimento.
Pois que até o momento
Ao tal predador seguia
Sem parar, e já sentia
A fadiga, pouco a pouco,
Dominá-lo. Pois, qual louco,
Pra acompanhá-lo, correra
Tanto que lhe falecera
As pernas. E estava rouco.
Rouco devido à emoção
Que já estava dominando
Seus sentidos. E o comando
Vinha-lhe do coração
Que sente a situação
Em que estava a parentada
À sua frente, ensacada,
Tendo pela frente a sina
À qual todos se destina:
U’a “bela caranguejada.”
Relaxa as patas, e um dedo
De cada vez ele dobra,
Pra relaxar, e recobra
Os movimentos e, ledo,
Ele fica bem mais cedo
Do que achou que ficasse.
Bem a tempo! Pois num passe
De mágica o homem jogou
Nas costas e saco e rumou
Seu caminho. Kar?... rebolasse!
Pois este, que a correnteza
Quase que o arrastou,
Com sacrifício alcançou
Seu guia que, com certeza,
Teria grande surpresa
Se se soubesse seguido
Por ele – jovem atrevido,
Que nada faz desistir
Do seu sonho, perseguir.
Nem os obstáculos, tido.
Vales cheios; paredões;
Sítios; a linha do trem;
Kar os transpôs. E ninguém
Deu por suas intenções
Pois não o viram. E as razões
Que o faz continuar
E a linha atravessar,
Vem de cima, lá do alto.
Vão dar na estrada de asfalto
Que o faz quase parar.
“Vixe Maria!” Ele diz.
- Desta vez, quase que eu morro!
Mas não recuo nem corro.
Fiz o que o coração quis!
E pensando: “Serei feliz?
E o esforço, valeu?”
- Mas, se até aqui deu
Para vir, eu seguirei
Em frente. E conseguirei.
E então, eu digo: Valeu!!
Assusta-se ao perceber
O chão de lama rachada
Como se pedra, virada.
Fica querendo saber
Se é o sol, quente, a fazer
O chão em pedra virar.
Mas já começa a gostar
Daquela bonita terra
Que muita beleza encerra,
Já querendo, ali, ficar.
- Quanta lua! Exclama Kar,
Vendo logo a confusão.
- São luzes! Mas que clarão!
- Eu já começo a gostar
Daqui. Pois este lugar
Tem muita coisa do meu
Habitat. E, acho eu,
Que já vivi neste mundo!
Esse cheiro, em um segundo,
A grande impressão me deu.
Tudo ali lhe parecia
Mesmo bem familiar.
Aquele cheiro a exalar
Das ruas por onde ia,
Karang já o conhecia.
As esquinas e avenidas
Como sendo conhecidas
Suas pareceu-lhe a si.
Mas, se ele veio ali,
Só se foi em outras vidas.
Porém, verdadeiramente,
Ele ali já estivera!
Era o seu sonho “de vera”
Era o que ele tinha em mente
Que, agora, deveras, sente
Que está realizando.
Da cuca vem o comando:
“Entrara no sonho do Mundo”
Mas um cheiro nauseabundo
O faz ficar matutando:
“Havia algo estranho ali,
Que não havia no sonho”!
- Aquele cheiro medonho
E o ardor que senti
Nos olhos, chegando aqui;
As ruas cheias de lixo
Ao Céu aberto, e um bicho
Morto e podre a cada esquina.
“A beleza que fascina
Morre, à falta de capricho.”
E, conhecedor que é
Da maldade humana, Kar
Passou a se deleitar
Com aquilo que dava pé.
Pois as más, de boa fé
Que ele é, recusava,
Já que a si repugnava.
E usando a consciência,
Pedindo a Deus paciência,
A metrópole explorava.
Caminha... tranqüilamente...
Na noite silenciosa.
Mas, nem tudo é “mar de rosas”
Pra quem, clandestinamente,
Num mundo estranho está. Sente,
Não poderá vacilar.
Qualquer vacilo irá dar
Num erro. E isso era mal
Pois podia ser fatal!
Tudo em “nada” transformar.
Por isso já preparado
Estava para o futuro.
E dormindo ao pé do muro
Aquele sono agitado
De um jovem abandonado.
O mesmo da criançada
Que dormita amontoada
Debaixo de viadutos,
Sonhando com os insultos
Dos “humanos”. Lixo! Nada!
Os veículos nas garagens
Silenciam à madrugada.
Porém, lá fora, a zoada
Permanece. As malandragens
Na rua, e as beberagens
Nos bares, que continuam
Abertos e que atuam
Como apoio aos vagabundos,
Seres da noite – os imundos,
Que, assim, se perpetuam.
Kar sentiu curiosidade
E decidiu desvendar
Por que, a cambalear,
Andavam pela cidade
Os humanos, em verdade.
Homens, ás vezes sozinhos
E, às vezes, grudadinhos
Um no outro, a se escorar,
Querendo se equilibrar:
Pé no mato e no caminho.
Às vezes, quase caindo
Sem que ninguém empurrasse,
Na sarjeta, a enlamear-se,
Lama de esgoto engolindo
Ao céu aberto. Um infindo
Desprezar-se por si mesmo.
E, aí, Kar fica a esmo,
Sem saber o que pensar,
Com o casco a esquentar,
Quase virando torresmo.
E aqueles pobres “farrapos
Humanos”, desnorteados,
Naquelas portas, parados,
Balançando como “trapos”,
Sendo expulsos a sopapos
Pelos “leões...” que protegem
A casa de onde emergem
Luzes de todas as cores,
Sexo, gim, pinga, licores...
Seguindo as “leis” que a regem.
Um estado melancólico
Invadiu o coração
Do jovem Kar com a visão
Daquele mundo caótico,
Deixando o jovem neurótico.
Seus olhos viram de tudo!
Construções que o deixam mudo;
A miséria, que emudece
Seus lábios e o desaquece
Num sentir de frio agudo.
Seu pensar, agora, tem
Que limitar-se ao real.
E o luzir fenomenal
Da noite, ali, lhe retém
Os olhos. E o que convém
A ele, é aproveitar!
E os lugares visitar
Sem medo de ser feliz.
E o encanto “de verniz”
Karang passa a acessar.
Num shopping center entrando,
Ele dribla a segurança,
Feliz como uma criança
Vai logo se aproximando
Do fliperama e jogando,
Divertindo-se a valer
No escorrego. E faz ver
Que, no balanço, é o tal!
Mas a presença, afinal,
Da guarda, o põe a correr.
Quase que fora flagrado!
Porém, cuidadosamente,
Em meio a um monte de gente,
Saiu do aglomerado
De lojas. Meio assustado,
Atravessou a avenida
E entrou, logo em seguida,
Em uma casa noturna
Que esconde a vida soturna
Das mulheres sem guarida.
Era dali que saiam
Os homens cambaleando.
E Kar entra se ocultando
Às vistas dos que bebiam;
Dos que vinham e que iam;
Dos pares que, a dançar,
Poderiam lhe pisar.
Vê uns que bebem algo estranho:
Um líquido meio castanho!
E depois saem a tombar.
E isso o leva a pensar:
“É esse líquido, então,
Que prostra alguns ao chão
Sem poder se levantar?
Outros, a cambalear,
A, do esgoto, beber lama?”
É essa, então, sua fama?
- Mas que gosto desgraçado!
- Que povo idiotizado!
A resmungar, Kar exclama.
Seguindo, a perambular
Pelas ruas da cidade,
Vendo o que a humanidade
Tinha de melhor pra dar.
Karang vai se chocar
Mais uma vez com os humanos,
Que parecem desumanos
Às outras classes viventes
Que de si são diferentes,
Causando dores e danos.
Visitou parque ecológico,
Museu, Universidade...
Mas, frustrou-se com a maldade
Do tal "ser humano" ilógico
Que desconhece o que é lógico.
Kar não consegue entender
Como eles podem fazer
O que fazem aos animais
Quando lhes tiram, ademais,
A liberdade - o viver.
Pois ele os vira enjaulados
Como meros criminosos,
Assassinos perigosos
Pelos homens condenados,
Da liberdade privados.
E só alguns beija-flores,
Borboletas multicores
E bem-te-vis, poderiam
Ser livres. E usufruíam
De uma liberdade em cores.
E depois de tudo ver
Ele já não mais sentia
Aquela grande alegria,
Aquele imenso prazer
De outrora, ao antever,
Nos sonhos que projetara
Quando á terra se lançara.
Agora, em seu coração,
Um grande vazio, então,
S’implantara. S’instalara.
Porém, apesar de tudo,
Não vira o tempo passar.
E algo o faz despertar
Daquela “noite de entrudo”:
O relógio há tempo mudo,
Aquele da catedral
Que, agora, em seu magistral
Blém-blém...! Em um som agudo,
Desperta, assim, nosso ossudo
E simpático animal.
Naquele instante sentiu
Que as horas tinham passado
Como num sonho, e deixado
Algo que lhe garantiu
Que tudo que ele viu
Ali lhe serviu de ensino,
Mostrando-lhe que o destino
Dele não podia ser
O que ele estava a querer.
Tal seria desatino.
Viu que foi longe demais
No desejo de mudar
Sua vida. E, pra voltar
Para o seu mundo, aliás,
Teria de ser o mais
Rápido que pudesse ser,
Antes que o pudessem ver.
Porque se mais demorasse
Talvez que não mais voltasse.
Não tinha tempo a perder.
O seu casquinho dourado
Ele estaria arriscando
Se ficasse demorando.
Kar está amedrontado.
Na rua, o povo, acordado,
Começa a movimentar-se,
Pro trabalho, deslocar-se.
E ele, já arrependido
Pelo erro cometido,
Começa a analisar-se:
Empolgara-se demais
Com seu sonho, e cometera
Deslizes. Se arrependera
Por cometer, ademais,
A displicência das tais
Idas e vindas no mundo
Do humano que, no fundo,
É o seu “dono e senhor!”
Tem que ser conhecedor
Que é um ser do submundo.
Achando-se um idiota,
Pensava assim: - Mas, valeu!
E analisa o que sofreu
Escolhendo nova rota
Para o caminho de volta.
Teria que ter cuidado
De forma dupla – dobrado!
Pois agora, à luz do dia,
Certamente, se exporia
A mais que o desejado.
O sol brilha no nascente
Como o Rei da estação!
Kar, agachado no chão,
Segue cuidadosamente,
Agora já consciente
Da impossibilidade
De junto à humanidade
Agir de forma normal.
Tem consciência, afinal,
De quem é ele em verdade.
Subir e descer ladeira,
Dobrar esquinas... seguir
Ruas... Vê-se a admitir
A extensão da besteira
Que fizera. E a canseira
O domina. Transtornado,
E da sujeira enjoado,
Nos becos intermináveis,
Ele procura os prováveis
Meios pra ver-se safado.
Rente a paredes e muros
Como foragido, vai,
Atento ao som que sai
Das casas, ainda escuro,
Sem cometer nenhum furo.
Ali, nada fora feito
Pro seu tamanho. E o jeito
Era sofrer uma dura
Como preço da aventura
Que se propôs como pleito.
Por uma janela aberta
No alto duma calçada,
Nosso Kar dá uma olhada
Escondido, mas alerta,
Vendo ali um pai que aperta
Um pouco as rédeas do filho
Pra que não saia do trilho,
E que ele achou teatral
Pra ser lição de moral.
Estava faltando brilho.
Irritado, o pai gritava,
Procurando aparecer:
- Eu não consigo entender...!
E à medida que falava,
Aos dois filhos comparava:
- Seu irmão, que é bem mais
Novo que você, jamais
Foi reprovado ou ficou
Em dependência. – Passou.
- Você, não! – Não é demais?
Aos gritos, ao pobre filho,
Berrou, como um esbravejo:
“VOCÊ, COMO CARANGUEJO,
ANDA PRA TRÁS!” – Onde o brilho
Que se espera de um filho?!
E Kar sentiu-se humilhado
Tal qual o pobre coitado.
E aí a maldade humana
Já, agora, o desengana.
Ficou decepcionado.
De fininho, vai saindo
Com os seus botões, pensando:
“Deus meu! Isso é mesmo um bando
De loucos! E vai fugindo
Depressa se escapulindo:
“Se servimos de iguaria
Pros seus filhos, freguesia...
Por que a comparação
Entre nós? Qual a razão?
E por que tanta ironia?
- Meu Deus, mas quanta ousadia
E quão grande atrevimento!”
Pensou, pois, por um momento
O pobre Kar, que seria
O único que poderia
Dizer que pisou na Terra,
Lugar “estranho” que aterra
Um ser assim pequenino
Que viu que o seu destino
Aos seus sonhos não descerra.
Asfalto abaixo, seus sonhos
Descem pra não mais voltar.
Nem os deseja lembrar!
Os sofrimentos medonhos
Fazem seus olhos, tristonhos,
Reverem com dor e pena
Aquela terrível cena
De um pai contra o coitado
Do seu filho e, revoltado,
Expressão de raiva encena.
Quase sem forças, caminha,
Na estrada do regresso.
Uma espécie de processo
Estranho - uma morrinha,
Em todo o seu ser se aninha
Fazendo o seu coração
Amargar de comoção.
Não quer transmitir ao seu
Povo o que a ele ocorreu,
Sua grande decepção.
Porque o que descobrira
Na Terra que lhe encantara
E que o decepcionara,
Ao que o seu ser reagira,
Era tudo uma mentira!
Era um encanto perverso,
Onde o malvado progresso
Fizera, do homem, um ser
Sem coração – um não-ser,
Sendo, do SER, o inverso.
E assim, desesperado,
Com as patas para o ar,
Nosso Kar põe-se a chorar
Totalmente transtornado.
Como um louco, abilolado,
Um demente, ele dizia,
Ao pingo do meio dia:
- Quero virar ensopado
Para o humano desgraçado
Que me pôs nesta agonia!
- Que o primeiro que passar
Por aqui, com suas mãos,
Como fez com meus irmãos,
Leve-me pra cozinhar,
Para ao turista alegrar
Com o meu casquinho ensopado...
Ou pra matar, dum coitado,
A fome. Pois, só assim,
À minha gente, enfim,
Não digo o que tenho passado.
- Só assim não guardarei
Nem levarei para a terra
Do meu povo o que se encerra
No meu peito, nem farei
Que ele passe o que eu passei,
Revoltado e magoado
Pelo que nos têm causado
Este mundo dos humanos.
Ou seja: dos “desumanos!”
- É bem mais apropriado.
- Meu povo, com minha morte,
De nada fica sabendo.
Continua Kar dizendo:
- Não vão saber sua sorte,
Sua sentença de morte.
- Podem me quebrar todinho:
O casco, cada dedinho,
As patas... Num ritual
Destrutivo, aonde o mal
Tem o seu poder daninho.
- Só assim a minha gente
Não vai sabe o que faz
O ser humano e, em paz,
Vai ficar. Inconsciente.
Porém, a raiva que sente
É que faz Kar delirar!
Mas, ao ver se aproximar
Um humano para pegá-lo,
Ele “acordou” dum estalo.
E aí buscou se entocar.
Escondeu-se numa vala
Imunda, e a céu aberto
Que havia ali por perto,
Num podre esgoto que exala
Um fedor que o povo inala
Dia e noite, noite e dia,
E no qual, quase morria
Sufocado, d’onde “escapa
Fedendo!” Agora, é papa!
Sua terra lhe sorria.
Na segunda badalada
Das horas na Catedral,
Já no seu mundo real
Ele fazia chegada.
Após uma caminhada
De cinco horas ou mais,
Que Kar pensou que jamais
Fosse, afinal, conseguir,
Vê-se a viver e sentir
O aroma dos manguezais.
A sua realidade
Verdadeira se mostrava.
E, satisfeito, aspirava
O aroma, na verdade,
Pra si, preciosidade,
Da sua lama real
Que lhe dá prazer cabal,
O sabor da água salgada
Levando aquela estragada
Que quase lhe foi fatal.
Seu lindo casco dourado
Luzindo ao sol da manhã
O faz olvidar a vã
Lembrança má do passado.
Já em casa, mui cansado,
Dorme por quarenta e oito
Horas. Acordando afoito,
Corpo e almas saciados,
Livre dos erros passados
Mas não pronto para o coito.
Vários dias se passaram.
Mas, na sua cacholinha,
Aquela cena daninha
E outras continuaram
Impressas, e martelaram
Por bom tempo. E insatisfeito
Com o comparativo feito,
Ele decidiu contar
À sua espécie e levar
A mensagem a alguém do peito.
E assim, pelo Salgado,
A visitar seus amigos,
Os novos e os antigos,
Irmãos, parentes... Saudado
Foi por todos, e abraçado.
Contou-lhes o ocorrido:
Que quase havia morrido
Nas mãos dos seres humanos.
E muitos dos caros manos
Ficaram surpreendidos.
Mas a surpresa mostrada
Foi mesmo pela coragem
De Karang, que a voragem
Dos homens – uma cambada!
Levou de eito. À peitada!
Arriscando a própria vida
Numa empreitada atrevida,
Quando pensou visitar
Aquela terra e quebrar
A magia ali havida.
- Logo Kar teve a coragem
De aventurar-se e seguir
Caminho pra descobrir
Os mistérios, a voragem
Da Terra, que uma imagem
Mítica passa, e de tentar
Seu enigma desvendar!
- Kar, disposto, destemido
Que é, deve ser ouvido
Por todos do seu lugar!
Quem falava desta forma
Era um gentil caranguejo
Querido ali, que o desejo
Era procurar, enfim,
Fazer que todos, no fim
De toda a explanação,
Guardassem no coração
Com carinho e com respeito:
- E tudo que Kar tem feito,
O fez com grande emoção.
E as palavras de Kar
Falando do ocorrido
Consigo, do acontecido
Na tal viagem sem par,
Faz o seu povo mostrar,
A partir daquele dia
Uma maior ousadia:
Mostrando à humanidade
A sua capacidade
De luta. Sem covardia.
Iam dar demonstração
De como eram capazes,
Destemidos, pertinazes...
E via-se a exaltação
Em todos que, em união,
Afirmavam revoltados,
Serem os homens culpados
Por julgarem, sem saber,
As suas formas de ser.
O que os deixa exaltados.
E fazem uma passeata
Na maré, pelo Salgado,
Movimento encabeçado
Por Kar, que aceita e acata
O que a sua gente, grata
A si, resolve fazer,
Com o fim de interceder
Por toda a caranguejada,
Que mostra estar revoltada
Com o que está a ocorrer.
E cantam assim: “Nós andamos
Para um e outro lado
E no lugar desejado,
Quando queremos, estamos.
Aonde queremos, vamos!
Mas não andamos pra trás
Qual dizem que a gente faz!
Lentos, também, nós não somos!
E nem figuras e cromos.
Para tudo se é capaz.”
Era Janeiro. E a maré,
Extrapolando, atingia
Níveis que não se podia
Medir, pois não dava pé.
E um ou outro aguapé
Descendo na enxurrada
Instiga a ser declarada
A grande revolução
Que tem como líder, então,
Kar, que canta uma toada.
“Lentos nós não somos não!
Para tudo se é capaz...
Mas não andamos pra trás.
Lentos nós não somos não!
Lentos nós não somos não!
Vamos mostrar pra essa gente
Que sabemos ir pra frente!”
Assim cantavam e iam
Em frente sempre. Seguiam
O caranguejo valente.
Estava, assim, declarada
A primeira revolução
Dos caranguejos, então,
Que tinham como empreitada,
Pensando de forma errada,
Mostrar para humanidade
Que tinham capacidade
De, também, andar pra frente.
Um erro que, inconsciente,
Cometiam, na verdade.
Levados pelo desejo
De andarem para frente,
Agem inconsequentemente.
E, cada um caranguejo,
Pensa: “não perco o ensejo!”
Sem notar que, taciturna
Como uma fera soturna,
A maré, sem compaixão,
Vem... E leva, de arrastão,
Todos, em maré diurna.
Pois que, nas pontas dos dedos
Estavam a se exibir,
Um com o outro a competir,
Fantasticamente ledos!
Livre de todos os medos!
Sempre, cada vez melhor,
Desde o maior ao menor.
Eles andavam pra frente
Num prazer inconsequente,
Sem antever o pior.
E assim vão se afastando
Mais e mais de suas casas
Sem se tocar que, sem asas,
Não podem sair voando.
E, nem por isso, ligando
Pra maré que se aproxima.
Quando dão por si, em cima
Lhes cai uma onda feroz
De Janeiro, como algoz.
E a todos eles domina.
Os que tentavam voltar
Não encontravam o caminho
Que, pelo redemoinho
Das águas bravas do mar,
Impossíveis de enfrentar,
Foram todos extinguidos,
Desmanchados, diluídos...
Era vã a tentativa.
A água os leva à deriva.
Estavam mesmo perdidos.
Castigo lhe parecia.
Pensava, desesperado,
Kar, sentindo-se culpado
Por tudo que acontecia.
E, orando, ele pedia:
“Dai-me o castigo, Senhor,
A mim! Pois, merecedor
Eu sei que sou, na verdade,
Por toda esta mortandade!
Dai-me a morte por penhor!”
Finalmente, a calmaria!
O mar parece entender
O jovem Kar – seu sofrer.
E toda aquela agonia.
E, na sua sabedoria,
Age a mamãe Natureza:
Acaba-se a correnteza.
A maré, que vai baixando
E rapidamente secando,
Acalma Kar, com certeza.
Porém poucos caranguejos
Sobraram. E, tonteando,
Saem dali, procurando
Seus parentes e um ensejo
De Paz. Porém, num lampejo,
Vê-se que a caranguejada
Já não sabia mais nada!
Perdera a noção de tudo!
E um com outro cascudo
Entra em guerra inesperada.
Machos e fêmeas, grudados
Entre si, entram em luta
Por um buraco. E a disputa
Os deixa mais separados.
Em inimigos tornados.
E no auge do desespero,
Em meio ao caos verdadeiro,
O pior mesmo acontece:
Um genocídio se tece,
Trucidando-os por inteiro.
É uma avalanche humana
De seres sem coração
Que chegam de supetão
Cheios de fome e de gana
E, de forma desumana,
Surpreendendo os coitados
Dos caranguejos, cansados,
Que já iam se deitar
Para tentar descansar,
Prende-os, os deixando amarrados.
Era a tal vingança humana
Sobre a espécie oprimida
Os transformando em comida
De forma mesmo inumana
Que os agarra com gana
E, em pratos deliciosos,
Os transformam, orgulhosos,
Para a gringada turista
Ou para aqueles da crista:
Os artistas. Os famosos.
Kar, da tragédia ciente,
Nada podendo fazer,
Declara com desprazer
A todos que estão presentes:
Irmãos, amigos, parentes...
A dor por que está passando
E, ainda, acrescentando:
“HOJE É O DIA DA CORRIDA
DOS CARANGUEJOS, vencida
De hoje a dois meses, quando
Será marcado o final
Do período da tortura
Da nossa espécie. Em futura
Data . Isso é batatal!
Ironicamente, afinal,
Será, pra sempre, lembrado
Esse dia malfadado,
Que é O DIA DA CORRIDA
DOS CARANGUEJOS, que a vida
Nos deu como resultado.”
Um resultado esperado
Pra quem vive em opressão
Onde a articulação
Não é meio utilizado.
E o beneficiado
Será sempre o dominante.
Assim sendo, consoante
Com aquilo que ocorria
Naquele fatídico dia,
Também venceu o mandante.
Kar, preso, fora levado
Pelos homens pra cidade
Para, com ele, em verdade,
Prepararem um ensopado
Num festão realizado
Na casa de um tabaréu.
Um verdadeiro pitéu!
Ele, e toda a sua gente:
Velho, novo, adolescente.
Sem direito a mausoléu.
Hoje em dia, como herança,
Ficou a celebração
Daquela corrida, então.
E vai ficar na lembrança
O período da festança
E da tristeza de Kar
Que não conseguiu mudar
O pensar da humanidade,
Dos homens, onde a maldade
Edificou o seu lar.
Salvador-BA / Natal-RN
Finais de fevereiro a meados de março / 2008.