O VELÓRIO DE TOINHO E A RAIVA DE ZÉ MARIA
O velório no Nordeste
É meio considerado
E enterro tem cortejo
Com carro de som ligado
Só não entra na igreja
Pois o padre não deseja
Ver a cara do finado.
O morto é comemorado
Com reza, dança, velório,
Tem até profissional
Do choro, do oratório,
Carpideira de “Inselença”
Prá evitar desavença,
Comentário, falatório.
Tem gente que por velório
Faz qualquer obrigação
O nome “papa-defunto”
Lhe causa satisfação,
Dois mortos no mesmo horário
Paga até funcionário
Prá ir por procuração.
Houve um caso no sertão
De um sujeito que morrera
O velório foi festivo
Mas o cabra envivecera
E um ano depois morreu
Nova festa aconteceu
Maior do que a primeira.
Ele pede à companheira
Uma cerveja gelada
Quando a mulher foi buscar
Ele deitou na calçada
Sofreu catalepsia
E perde o resto do dia
A noite até madrugada.
Essa história mal contada
Foi lá pro alto sertão
O sujeito era Alfredinho
Casado com Conceição
Morreu a primeira vez
Bem no meado do mês
Da fogueira de São João.
Houve festa e diversão
Reportagem até na Veja
Muita comida e bebida
Servida numa bandeja
Ele senta no caixão
E já grita: “Conceição,
Cadê a minha cerveja!”
Foi feia aquela peleja,
Gente daqui e de além
Rezadeira, choradeira,
Que num velório convém
Quando o homem se acordou
Todo mundo debandou,
Perto não ficou ninguém.
Zé Maria do Muquém,
Irmão do vice-prefeito
Foi um que marcou presença
No tal velório desfeito
Era um amigo dedicado
E ao vê-lo ressuscitado
Saiu dali satisfeito.
Quando depois o sujeito
As canelas esticou
Novo velório festivo
Só Zé Maria faltou.
Prá não ser mal compreendido
Alegou que tinha ido
Quando o compadre treinou.
Essa história quem contou
Em uma televisão
Foi um grande humorista
De fama e de tradição
Chico Anísio é o seu nome
E tem prestígio e renome
Daqui até o Japão.
Chico fez a narração
E eu transformei em poesia
O VELÓRIO DE TOINHO
E A RAIVA DE ZÉ MARIA
Dois amigos verdadeiros
Bons e leais companheiros,
Um indo o outro o seguia.
Aconteceu certo dia
Zé Maria Viajar
Prá cidade de Campina
E ter que lá pernoitar
Prá voltar no outro dia
E sempre se hospedaria
Na Pousada do Alencar.
Nesse dia, por azar,
Logo cedo, bem cedinho,
Assim que ele saiu
O seu amigo Toinho
Deu um “treco” no coração
Perdeu da vida a noção
Se desviou do caminho.
Passou o dia todinho
Com o velório e cantoria,
Muita gente na inselença
E muita comidoria
Foi assim a noite inteira
E o enterro acontecera
Na manhã do outro dia.
E o amigo Zé Maria
Na viagem já citada
Negociava em Campina
Não foi ciente de nada,
Por não ter sido avisado
Perde o velório, o traslado,
O amigo e a noitada.
De volta a sua morada
Foi que ele ficou sabendo
Que o amigo morrera;
Revoltado foi dizendo:
“Se tivessem me avisado
Juro que eu tinha deixado
Tudo que estava fazendo.
Saiu de casa fervendo
Prá tomar satisfação
Encontrou uma vizinha
Que lhe deu informação
Como o Toinho morreu
Quem ali compareceu,
Informes com precisão.
“Eu estava na pensão
Do nosso amigo Alencar
Todos sabem o telefone
Não custava me ligar.
Eu sei que são amarrados
Mas se tivessem ligado
Podia ser a cobrar.
E vão ter que me contar
Como tudo foi passado
O que tinha de comida
Se tinha flor no finado
Se o povo dele chegou
Se a viúva chorou
E como foi sepultado.
E ficou mais chateado
Quando lhe disse a vizinha
Que lá tinha rapadura,
Mungunzá, caipirinha,
Batida, cuscuz, quentão,
Na reza teve sermão
Inselença e ladainha.
E a revolta que ele tinha
Cada vez mais aumentou
Quando ao andar pela rua
Outro amigo ele encontrou
E recomeça o assunto:
O velório e o defunto
E Zé Maria que faltou.
“É, mas ninguém me avisou
E eu estava na pensão.
Como foi o tal velório?
Teve alimentação?”
“Iche! Não faltava nada!
Esfirra, coxinha, empada,
Até sopa de feijão!
Risoto de camarão...”
“É, mas aqui é assim.
Faço tudo pelo povo,
Ninguém faz nada por mim.
Mas um dia, com certeza,
Eu hei de virar a mesa
De um bando de gente ruim.”
Até que chegou enfim
À casa do falecido
Já encontrou a viuva
Chorando pelo marido
E mesmo contrariado
Foi falar sobre o finado,
Um amigo tão querido.
“Eu soube do ocorrido
Somente quando cheguei
Toinho era um sujeito
Que eu sempre considerei
Mas não teve consciência
E morreu na minha ausência,
Desse gesto eu não gostei.”
A viuva disse, “Eu sei
Mas eu não pude avisar,
Como esposa eu precisava
Chorar, rezar, cozinhar,
Só não entendo porque
Ninguém ligou pra você
Lá na pensão do Alencar.”
Ele disse, “Deixa estar
Que eles me pagarão.
E como foi o velório?
Foi mantida a tradição?”
Ela disse, “Foi mantida,
Mas falando de comida
Num fiz muita coisa não.
Aprontei um camarão,
Caprichei no temperado,
Comida de milho verde
E um mocó bem guizado...”
Quanto mais ela dizia
Mais deixava Zé Maria
Cada vez mais chateado.
Bastante contrariado
Com gesto tão desumano
Não quis mais saber de prosa
De fulano ou de sicrano,
Com o coração em brasa
Volta para sua casa
Tecendo, fazendo plano.
“Daqui para o fim do ano
-Falou em tom irrisório-
Há de partir alguém meu
Em busca do purgatório.
Por esse desinteresse
Não vai nenhum corno desse
Lá em casa no velório!”
José M. Lacerda