O DIA QUE LAMPIÃO LIVROU JESUS DA PRISÃO
Ao meu amigo Gigiu Ferreira
Teatrólogo da Paixão de Cristo.
Com licença do amigo Chico Pedrosa
Poeta de Guarabira, que escreveu
a briga dos atores.
Muitas histórias se conta
Cada qual mais engraçada
Sobre o tempo do cangaço
Entre mentira e piada
História feia ou bonita
O importante é ser escrita
Pra ficara documentada.
No tempo em que as estradas
Eram poucas no sertão
Vaqueiros e moradores
Cruzavam a região
Entre volante e cangaço
Quando a lei era a do braço
Do jagunço de um patrão.
Se havia diversão
Era bem comemorada
Havia danças de coco
Pau-de-sebo, cavalhada
Brincadeira de argolinha
Novena na capelinha
E dança numa latada.
Às vezes uma zuada
Desmantelava a festança
Quando um grupo cangaceiro
Ao encontrar uma dança
Já entrava no salão
Apagando o lampião
E provocando lambança.
Quando a vila de Esperança
Pertencia ao Capitão
Joaquim Benício da Costa
Nunca faltou diversão
Vaquejada, cantoria
Procissão e romaria
Sexta-feira da paixão.
Também era tradição
Encenar Paixão de Cristo
Quanto mais o tempo passa
Mais o povo lembra disto
E ali, naquele povoado,
O teatro era sagrado
Se não houvesse imprevisto.
Pra se fazer o registro
Dona Maria Dolores
No salão paroquial
Reunia os moradores
Ao lado do capitão
Prá fazer a seleção
De atrizes e atores.
Roupa de todas as cores
Capelas, manta dourada,
Luxo, brilho, purpurina
Mas ninguém pagava nada
Toda despesa que havia
O capitão garantia
Qualquer conta efetuada.
A trupe selecionada
Era ele que escolhia
A roupa e a maquiagem
Era com Dona Maria,
O resto era discutido,
Aprovado e resolvido
Na sala da sacristia.
Todo morador queria
Fazer a apresentação
Encenar um personagem
Fosse mocinho ou vilão
Mas ninguém se antecipava
Pois o elenco quem formava
Era o próprio capitão.
O papel do Simeão
Foi o de açoitador
Verônica foi Julieta
Pilatos foi Nicanor
Caifás foi o Cipriano
E o Cristo daquele ano
Foi o Quinca Beija-flor.
A encenação começou
Bem do lado da capela
Subia uma ladeira
Passando numa ruela
Até chegar no calvário
Onde foi feito o cenário
Perto de um pé de favela.
Duas cordas paralelas
Separava a multidão
Pra que pudesse entre elas
Caminhar a procissão
Livre de atropelamento
Ou qualquer um movimento
Que atrapalhasse a ação.
Com aplauso e emoção
O cortejo se conduz
O povo se imaginando
Em campos cheios de luz
Ora rindo, ora chorando
E os atores encenando
A tudo fazendo jus.
Cristo carregando a cruz
Vez em quando advertia
O centurião perverso
Que com força lhe batia,
Tinha perdido a razão
Devido a um grande pifão
Que bebeu naquele dia.
Havia na sacristía
O vinho do capelão
Escondido num armário
Em um grande garrafão
Ali ninguém xeretava
E somente o padre usava
Na hora da comunhão.
Isso até o Simeão
No seu instinto sagaz
Beber todo conteúdo
Da garrafa do São Braz
Ficar lesado, maneiro,
E açoitar o companheiro
Como se açoita animais.
Cristo dizia: “Oh, rapaz,
Vê se bate devagar,
Já tô todo encalombado,
Assim não dá prá agüentar,
Tá ca gota prá doer,
Ou tu para de bater
Ou a gente vai brigar.
Se o capitão chegar
Vai te ver embriagado
E eu aqui apanhando,
Tô ficando revoltado,
Jogo já essa cruz fora.
Vou morrer antes da hora
De ficar crucificado!”
O pior é que o malvado
Fingia não entender
Batia mais violento
Prá ver o outro gemer
E ainda se divertia
De vez em quando dizia
Com ironia e prazer:
“Que Cristo frouxo é você
Que chora na procissão?
Jesus, pelo que se sabe,
Não era mole assim não!
Leve a cruz e não enrola!
Tá parecendo um boiola
Cheio de cavilação!
Tô até com compaixão,
Você vai ver o que é bom
É na subida da rampa
Da venda de Fenelon
Que o couro vai ser dobrado.
Até chegar no mercado
A cuíca muda o tom.
De repente se ouve o som
De um grito na multidão
Era Jesus que com raiva
Sacudiu a cruz no chão
No meio do vuvo-vuco
E partiu feito um maluco
Prá riba do Simeão
Se embolaram pelo chão
Com tabefe e cabeçada
Madalena levou queda,
Pilatos levou pancada,
Deram um cacete em Caifás
Que até hoje não faz
Nem sente gosto de nada.
Briga generalizada
Gente rolando no chão,
Homem batendo em mulher,
Irmão defendendo irmão,
Roupa, manta, cruz, espada,
Lança e corda arrebentada,
Choro, grito e confusão.
Desmancharam a procissão
E o cacete foi formado
São Tomé levou um tranco
Que ficou desacordado,
Acertaram um cocorote
Na careca de Timóte
Que até hoje é aluado.
Foi chegando o delegado
O padre ficou de pé
São Joaquim levou Santana
Prá ficar com Josué
O grito da mulherada
E a santaria travada
No cacete e pontapé.
Até mesmo São José
Que não é de confusão
Na ânsia de defender
O filho de criação
Aproveitou a garapa
Prá dar um monte de tapa
Na cara do Bom Ladrão.
A mando do capitão
Um soldado e o delegado
Entrou no meio da briga
Ambos de cacete armado
Os briguentos desistiram
Quando os homens dividiram
Cada santo pro seu lado.
Quem estava machucado
Foi se ver com o capelão
Outros fugiram de perto
Pra se livrar do arrastão
E o resto foi enquadrado
Por ordem do delegado
E levados pra prisão.
De repente Lampião
E um bando de cangaceiro
Entrou povoado a dentro
A procura de dinheiro
E pararam observando
Os policiais levando
A fila de prisioneiro
O que eles viram primeiro
Foi Jesus acorrentado
A coroa na cabeça
A cruz jogada prá um lado
E pela primeira vez
Foi levado pro xadrez
E não foi crucificado.
Novo furdunço formado
Nas terras do capitão
O delegado correu
Com medo de Lampião
Que naquela tarde quente
Arrebentou a corrente,
Tirou Cristo da prisão.
Pra aumentar a confusão
Um homem desassombrado
Enfrentou os cangaceiros
Afoito e mal educado
Gritou para Lampião:
“Não se meta, capitão,
Mexer com santo é pecado!”
Esse homem era o soldado
Que enfrentou a contenda
Gritando pra Lampião
“Solte sua arma e se renda”
Mas logo se viu cercado
E ficou mais imprensado
Do que cana na moenda
Já partindo em reprimenda
Dezessete cangaceiros
Com a rapidez felina
De gato num galinheiro
Deixaram o pobre soldado
Atado e empacotado,
Manso que só um cordeiro.
Jesus vendo um cangaceiro
Caminhar para o seu lado
Faltou perna pra sustê-lo
E caiu a joelhado.
Esse disse, num se avexe,
Com o senhor ninguém mexe,
Mexer com santo é pecado.
Aqui o cabra safado
Que ao senhor ofender
Meto-lhe o ferro nas ancas
Pra ver o sangue descer;
Se ele me desafiar
Aí nós vamos brigar
Até um dos dois morrer.
Mas ninguém vai se meter
Que o chefe não deixar.
O delegado fugido
Subiu num pé de ingá
Mas o negro Zé Baiano
Desmantelou o seu plano
Tirando o cabra de lá.
Começou a arrastar
O cabra para o calvário
Querendo crucificá-lo
Aproveitando o cenário
Lampião tomou a frente
Atendendo a insistente
Apelação do vigário.
O soldado Belizário
Forçado por Lampião
Deu uma surra de ligeira
No cabra centurião
Que devido a cara cheia
Enchia Jesus de peia
Na hora da procissão.
Esta foi mais uma ação
De maldade e tirania
Da história do Nordeste
Pra ser contada hoje em dia
Que aborda religião,
Jesus Cristo, Lampião,
Fanatismo e covardia,
Toda história tem valia
Depende de quem contou
O drama Paixão de Cristo
Toda vida se encenou
O cangaço hoje é findado
Mas continua estudado
Desde quando terminou
E acredite, leitor,
Neste relatório meu,
Que eu não gosto de mentira
E juro por Zé Dirceu,
Pela alma de Sadan,
Pela honra de Renan,
Que este fato aconteceu.
Série Cangaceiros Vol. 17
Cordelista José Medeiros de Lacerda