A Carta

Uma manhã chuvosa.

Eu, preguiçosa, envolta nos lençóis deixava-me ficar, experimentando a sensação agradável proporcionada pelos pingos da chuva no telhado, pelo clima fresco e pelo labor dos ventos nas árvores. Havia paz em permanecer ali, quieta, sem me mover.

Mas o elemento externo insiste em invadir a privacidade alheia, e assim ocorreu. Uma carta, um simples pedaço de papel conseguiu destruir toda a calmaria que eu estava sentindo. Sentei-me, e antes de abrir a intrusa missiva, revirei-a nas minhas mãos a observar a procedência e a caligrafia, pisquei meus olhos, e senti meu coração reagir com tal estímulo. Lentamente abri o envelope, e extrai do seu interior o conteúdo bombástico.

Era uma carta do ser amado, uma carta terna e apaixonada, uma carta como a que todas as mulheres assumidamente românticas desejam; para mim, ainda não conseguia e não consigo explicar a reviravolta que se operou em meus sentimentos, sentia-me viver e morrer ao mesmo tempo.

Viver por me sentir objeto causador de tal sentimento em outra pessoa; por sentir que alguém, em outra parte do globo terrestre dedicava seus pensamentos a mim, e talvez naquele instante estivesse justamente pensando que eu estaria lendo as suas palavras, estaria tendo um pouco dela entre minhas mãos. Lisonjeada, regozijei-me neste pensar e ternas lembranças penetraram-me à alma. O primeiro contato, as conversas que demonstravam afinidades e diferenças encantadoras, o primeiro abraço, seguido pelo primeiro beijo dado de forma tremente, do primeiro contato carnal com o coração a se despedaçar no peito, a certeza de ambos que neste enlace havia a presença do amor e que daquele momento em diante algo sólido seria construído... lembranças agradáveis, mas que acabaram por me deixar a ponto de morrer...

Morrer por estar num estado de inércia catalisador; por saber que o ente amado não estava ao meu lado, e muito menos seria possível senti-lo num pedaço de papel, por mais que esfregasse meus lábios de encontro à carta na tentativa de sorver algum perfume deixado pelo toque das mãos durante a escrita... morrer por não poder sentir naquele momento seus braços a envolver-me o corpo; por não provar do néctar da boca tão sonhada; por simplesmente não colocar os olhos sobre seu vulto branco, e ter apenas como visão o nada; por não ter sua voz doce, máscula aos meus ouvidos compartilhando mistérios, coisas não desvendadas... então, as lembranças tornaram-se amargas, os dias que passavam vagarosamente desde a partida e que me conduziam a um estado alucinatório, desesperado e vegetativo ao mesmo tempo; o telefone que não se manifestava e que quando o fazia, não trazia a voz amada; a ausência de qualquer notícia; as noites em claro revirando-me entre as cobertas desejando desesperadamente alguém que estava longe.

A carta deitou-se ao meu colo, enquanto minhas mãos firmemente prendiam-se aos cabelos, quase os arrancando e as lágrimas abundavam-me nas faces, sentindo-me impotente, sozinha e me odiando, sem nem saber direito por quê... amando com toda a profundidade dentro da ignorância do que se sabe sobre tal sentimento, alguém tão distante, alguém que estava separado de mim talvez por força de entidades desconhecidas, mas não invencíveis, pois que o destino e a distância não impediram o encontro inicial.

Bendita e maldita carta, que me trouxe mais uma confirmação do sentimento correspondido e também me fez sofrer, por ser apenas um pedaço de papel inanimado... fechei meus olhos e transportei-me ao meu amado permitindo na imaginação todos os arroubos que um casal enamorado comete, mas quanta dor senti ao voltar a realidade, e ver-me ali em companhia da solidão avassaladora...

Novamente contemplei cada letra, cada frase formada e com isso, mais sentia o coração pungido, arrebentado, despedaçado. Praticamente inexplicável colocar em palavras tudo o que eu estava sentindo além de estar vivendo e morrendo num só tempo, e quanto mais eu pensava, mais meditava maior era a angústia, o vazio que me tomava e me possuía... pensava em como poderia um sentimento destas proporções invadir-me o ser, tomar-me por inteiro sem que eu tivesse como me defender, deixando-me completamente sem forças, amando incondicionalmente, loucamente... sentindo um desejo violento e incontrolável percorrer-me as entranhas, esgotando-me, levando-me à um frenesi endoidecido... sentindo uma necessidade pungente da presença física e espiritual do ser amado... que espécie de sentimento inexorável seria aquele que deixava-me febril, que assassinara os poucos momentos de tranqüilidade que eu desfrutava...

Ainda contemplo a carta, agora amarrotada, molhada, tão sufocada quanto a minha pessoa delirante, e ela se torna cúmplice das dores, dos tormentos causados por aquele que lhe deu vida, e ficamos juntas, largadas ouvindo o murmurejar das águas chuvosas, simplesmente sem encontrar a solução...

Ana Claudia Brida
Enviado por Ana Claudia Brida em 02/05/2008
Código do texto: T971886
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