A próxima partida.

Abri os olhos, subitamente.

Estava sentado em uma cadeira de balanço, em uma varanda de um sitio de um grande amigo em Atibaia, interior de São Paulo. Eu conhecia bem o lugar.

Estivera ali muitas vezes, desde jovem. Ali, naquele pequeno pedaço de paraíso, eu e minha turma de amigos das antigas havíamos nos divertido muito, compartilhávamos sonhos e alegrias que pensávamos, jovens que éramos, seriam para toda a vida. Chamávamos o lugar de “nossa toca”. Levávamos nossas meninas (e até quem não levava poderia conhecer uma ali, como Cléber e Rose que se conheceram por ali e acabaram até se casando), instrumentos musicais (o que nem sempre resultava em música, mas em barulho, com certeza), bichos de estimação (Cléber tinha um papagaio sem o qual não saia de casa, e ele foi o que de inicio chamou a atenção da menina para o seu dono). Fazíamos churrasco o dia todo, regado a cerveja e música, com uma necessária pausa apenas para a tradicional “pelada” entre amigos, no campinho que ali havia.

Olhando para o campinho agora pensei na vez que o Beto acertou, em um chute mais que improvável, quase do meio do campo, o ângulo do gol o qual eu defendia. Os seus gritos de júbilo novamente invadiram minha mente, e a imagem que guardei do seu rosto, que se transformara em uma máscara da mais pura felicidade, me alegrava agora que me lembrava dela. Todos gritaram e o exaltaram, até os jogadores da minha própria equipe, supostos adversários na “batalha” que se travava. Foi uma farra tremenda, principalmente, porque o Betão, como o chamávamos, era o maior perna de pau de todos nós. Ninguém era bom de fato, um “craque”, exceção talvez do Mário que já fizera até testes em times profissionais (ele dizia que fora aprovado no XV de Jaú e recusou a proposta por estar apaixonado por uma pequena à época e teria de deixá-la para se dedicar ao futebol, mas nós sabíamos que era conversa) e que sabia o que fazer com a redonda. De resto, éramos todos jogadores esforçados, felizes pelo simples fato de estar ali correndo atrás da bola, mas obviamente sem talento para a coisa. Betão porém era ruim demais. Ele era grande e desengoçado, daquele tipo “pateta”, um verdadeiro “cegonhão” mesmo (esse era seu outro apelido e ele não achava ruim).

Desenvolvemos diversas teorias sobre aquele incrível chute que Betão acertou, depois do jogo, tomando umas cervas para esfriar:

- Ele olhou para cima e o sol o cegou. Esticou a perna pra frente e nem viu que acertou a bola, e nem que ela foi parar aonde foi- disse Carleto, entre risos.

-É, essa é uma boa. Mas eu acho que o cegonhão tentou chutar um rato que passou na frente dele e a bola, por acaso, tava ali. E deu no que deu- repicou Mário.

Nós riamos, enquanto Betão ainda gabando-se de seu feito, jurava que fizera tudo conscientemente, que me viu adiantado e tentou fazer o que de fato acabou fazendo. Mas nós estávamos inclinados a acreditar mais na teoria do rato e deixávamos isso claro a ele. Foi uma tremenda gozação. Aquele gol havia valido o dia.

Sorria comigo mesmo, lembrando de todas estas coisas. Sim, nós éramos felizes, mais felizes do que conseguíamos ver na época. Agora, passado tanto tempo, tantas coisas vividas, eu enxergava isso com clareza. A vida me levara por outros caminhos, a todos nós de fato, não tinha contato com todos esses meus bons amigos há tempos, nos distanciamos.

Carleto eu ainda via, muito raramente, pois ele era servidor do Judiciário em um fórum de São Paulo que eu, advogado, por vezes tinha de visitar (quando um estágiario não podia dar conta), sempre com pressa, sempre correndo, sempre sério e mal humorado. E só. Eu apenas o cumprimentava e fazia minhas coisas profissionais, jamais lhe perguntei no fórum se ele se lembrava da “teoria do rato” ou de outras coisas mais.

A vida nos torna frios- pensei. Estando ali, pensar estas coisas era natural e até óbvio demais.

Uma onda de nostalgia e um tipo de tristeza me assaltaram e, lentamente começavam a me preencher, quando um lampejo de lucidez e realidade me atropelou como uma locomotiva:

- O que estou fazendo aqui?- disse em voz alta, pra varanda e pro campinho de futebol, desertos. Álias, tudo estava deserto, não havia ninguém no sitío, exceção a mim e a alguns pássaros que voavam de árvore em árvore a minha frente, piando e fazendo barulhos. Nossa toca ficava no interior de São Paulo e eu, havia anos, havia me mudado para Belo Horizonte.

- O que estou fazendo aqui?- novamente- Estou sonhando, é isso? Mas sendo assim, por que então tenho consciência de que estou sonhando?- Tudo isso eu pensava, enquanto olhava ao redor, perscrutando o ambiente. Sim, era o mesmo lugar de sempre, exatamente como eu me lembrava. O campo pequeno, verde e bem cuidado a minha frente, a murada da varanda de madeira descascada, meio gasta, sobre aonde agora eu colocava minhas mãos. Elas estavam ali, eu podia tocá-las. A cadeira de balanço antiga que pertencera aos pais de Jorge, o dono do sítio, a qual disputávamos com vontade, até o dia que alguém surgiu com uma rede por lá, que se tornou o novo objeto de desejo dos mais preguiçosos. Olhei para trás, a porta de madeira antiga, pintada de branco, a janela também branca ao lado, aberta, as árvores que cercavam a casa, tudo, tudo era exatamente igual. Era a Toca, como eu a conhecia.

Entrei na pequena casa. Ninguém. Chamei alguns nomes:

- Jorjão! Carleto!Minduca! Tem alguém aqui?- estava ficando assustado. Afinal, apesar de ser um lugar que conhecia tão bem e que tantas boas lembranças me trazia, aquilo estava esquisito. Apesar de toda a paz, uma incomensurável paz que aquele local me trazia ao âmago da alma, eu desejei acordar daquele sonho estranho.

Lembrei-me de repente...

A Toca fora vendida por Jorge, há alguns anos atrás, e em seu terreno hoje existia um prédio de escritórios. Eu já não a freqüentava na época, já era um homem muito ocupado, mas fiquei sabendo do fato.

Mas esta tudo como era antes. E que diabos estou fazendo aqui?- pensei de novo...

- Ei Benê! Venha aqui fora cara!- ouvi, uma voz familiar, grave e amigável, enquanto estava confuso com estes pensamentos.

Saí...

-Betão!- uma onda de extrema felicidade me assaltou- Betão! Porra cara, quanto tempo!- foi a primeira coisa que me veio a mente para dizer.

-Estava agora a pouco me lembrando daquele gol que você fez naquele dia em mim- disse.

Betão ria muito alto, feliz da vida – Aquele foi o gol mais bonito que este campinho presenciou não foi Benê?- sorria largamente pra mim, com uma cara parecida com aquela que fizera naquele dia. –É, foi sim cara- respondeu ele mesmo- Mas vou dizer. Eu tinha mesmo tentado acertar um chute em um camundongo que passara- disse abaixando a voz, como se me fizesse uma confidência, sorrindo cínico.

Nós riamos juntos agora, bastante. –Eu sabia!-disse a ele. E riamos, mais e mais.

Betão era um dos que eu não via há mais tempo e agora, em sua companhia, eu me sentia feliz como há muito tempo não acontecia. Sua presença ali me trazia uma tranqüilidade, uma paz, que eu não conseguia entender, mas não estava me importando tanto. Era um sonho estranho este, mas estava mais agradável agora.

A última coisa que soube de Betão, anos atrás, era que ele havia ido morar na Austrália, por imposição de seu trabalho. Betão era o responsável pela área de publicidade de uma multinacional americana. Olhava para ele agora, neste lugar de sonho, quando novamente a locomotiva do mundo real me atingiu.

Lembrei-me de uma noticia me dada por Carleto, mas não me lembrava quando, em uma das minhas passagens relâmpago, de homem de negócios, pelo fórum... Perguntei:

-Betão, você não está morando na Áustralia? Quer dizer, eu...- não sabia como falar, e a pergunta me parecia estúpida demais. Afinal lá estava ele, meu amigo, na minha frente, exatamente como me lembrava dele. Via nitidamente seus traços, podia escutar sua respiração, clara como os piados dos pássaros que nos rodeavam nas árvores – Bem, é que o Carleto me disse... é, hum...- não sabia como continuar.

- Sim Benê- Betão interrompeu-me, em minha protelação, com um sorriso- Sim, estava morando na Áustralia. Fui viver lá há quase dezoito anos atrás. Nós não nos víamos há bem uns vinte ou vinte e dois, não é?- indagou. Prosseguiu:

-O que o Carleto lhe contou também é verdade meu amigo.- fez uma pausa e perscrutou meu rosto com um olhar carinhoso- Eu era um dos cento e sete passageiros de um vôo que não chegou a seu destino. Saímos de Sydney com destino a Mackay, um tiro curto, como no Brasil, um "São Paulo-Porto Alegre". Caímos com apenas 40 minutos de vôo depois da decolagem, em Sunshine, uma linda cidade do litoral Australiano. Estranhas são as coisas da vida não é mesmo?- disse, com um olhar tranqüilo e um sorriso calmo no rosto- um lugar tão lindo servir de ponto de impacto para uma máquina tão grande e feia.

- Mas então você- não completei a pergunta. Olhava pra ele incrédulo. Eu sentia sua presença ali porra, eu escutava sua respiração...

- Sim, eu morri!- disse, o mesmo olhar sereno e calmo, o mesmo sorriso- Estou morto há quase dezesseis anos Benê- disse como se falasse de um assunto bobo qualquer, sem a menor sombra de preocupação ou pesar.

Fiquei pasmo. Não tinha medo do que estava ocorrendo, era meu amigo de tanto tempo quem estava ali mas, insuportavelmente, não compreendia.- Mas então, oque..- Não completei a frase... Fui assaltado novamente por um lampejo em minha mente, como um flash absurdamente forte de luz branca, me cegando.

Imagens tomavam forma a minha frente, e me vi então saindo de um teatro, em Belo Horizonte. Lembrei-me subitamente da peça que fora assistir, lembrei-me de ter gostado, de ter aplaudido e me emocionado. Curiosamente estas lembranças, embora eu tivesse certeza absoluta de que eram recentes, pareciam-me distantes, como se elas sim fossem um sonho. Lembrei-me de, ao sair, enquanto andava para o estacionamento onde estava estacionado meu carro, pensando na peça que acabara de assistir, ter sido abordado por dois homens...

- Fica bonzinho amigão- ouvi novamente em meus pensamentos um deles dizer. Vi o lampejo do brilho de um objeto metálico na mão do homem- É um assalto.

Senti novamente todo o espanto, todo o medo que havia sentido naquele sonho. É isso. Eu havia sonhado aquilo.

Eu havia me assustado no sonho e fiz um movimento brusco. A mão do homem veio, em minha direção...

- Nossa Betão- comecei a dizer, meio tonto pela onda de lembranças estranhas que haviam me invadido de súbito- Tive um sonho estranho um dia desses cara- Sentia que tinha de contar à ele- Estranho como este próprio, alias- disse sorrindo. Ele sorriu de volta, assentindo afirmativamente com a cabeça.

- Eu saí de um teatro, me lembro até da peça- disse com ênfase para transmitir a estranheza do sonho- e dois caras vieram me assaltar. Um deles tinha uma faca, eu acho. Eu me assustei, fiz um movimento brusco e o vagabundo tentou me esfaquear, mas errou a...

- Ele não errou a facada Benê- Betão me interrompeu...

Me olhava com extrema calma. Sorria pra mim ternamente, calmo, impávido, como se me entende-se completamente, como se pudesse ler meus pensamentos. Eu tive então a plena compreensão do que acontecera, em uma explosão de verdade. Não sei dizer com fidelidade o que senti nesse momento. Eu compreendi. Mas eu tinha de perguntar:

-Mas então, eu... mas então não foi um... O que você está dizendo- cuspia as palavras entre os dentes, em borbotões- Do que você está falando? Quer dizer... Eu morri?- finalmente saiu.

- Sim meu amigo. Você morreu!- ele disse, afirmando com a cabeça e sorrindo, como sempre, sem tirar o sorriso calmo do rosto- Você morreu sim.

Eu estava anestesiado. Não sabia o que dizer. Não sabia o que perguntar nem o que fazer. Do mesmo modo que só se nasce um vez, só se morre uma vez, pensei. Não sabia o que dizer. Mas disse:

- O que você faz aqui cegonhão? Aqui é o céu? Por que aqui, no sitío do Jorjão? Onde está deus?- estas perguntas todas me soaram muito infantis, prosaicas, absurdas até. Eu nem religioso era e agora estava ali perguntando, por deus? Bem, ao menos eu sabia que estava morto e, para um morto, perguntas como estas até que são bem plausíveis.

- Você terá tempo de descobrir muitas coisas meu amigo- retrucou, o sorriso ainda lá- Você terá tempo. O sitio, nossa toca, lembra que assim que o chamávamos?- perguntou-me- É uma lembrança que você traz em si de um tempo bom que não volta, de uma época de sonho, que você chegou até a pensar que esqueceu, mas que sempre esteve aí, dentro de ti. A toca, o lugar aonde você fará sua passagem, foi você quem escolheu, mesmo sem saber. Quanto a mim, vim para lhe levar, para lhe orientar - me olhava com ternura- Nada acaba meu amigo, nada acaba...

Eu vou te levar Benê, para nossa próxima partida, no mais lindo campo que você jamais sonhou- concluiu, com um sorriso muito largo, o maior e mais brilhante que havia dado até aquele momento.

Senti as lágrimas brotarem em meus olhos. Mirava Betão, meu amigo desde sempre (e agora eu me lembrava disso), a minha frente, sorrindo, através de meus olhos marejados. Senti uma paz e uma alegria que me surpreenderam. Sorria a ele de volta. Eu havia morrido e estava ali, feliz. Ainda não compreendia tudo que estava acontecendo, muito menos o que viria, mas como Betão havia dito, eu teria tempo.

Fica aqui meus amigos o relato de um homem que viveu sua vida, do jeito que ela se apresentou, pro bem ou pro mal. Arrependo-me de algumas coisas, orgulho-me de outras. Parto com a sensação de que poderia ter vivido mais, de que deveria ter vivido mais. Poderia ter amado mais... ter sido mais suave.

Justifico algumas coisas das quais me arrependo respaldado, sempre, na dureza do mundo. Assim também justifico a impessoalidade da qual viramos portadores e vitimas concomitantemente, todos nós, diante da dura realidade das coisas inerentes às nossas vidas sérias... Nossas “vidas reais”.

Eu passei por ela e não posso voltar atrás.

Todavia (uma vez causístico, sempre causísistico) vocês aí estão e estarão, não se sabe até quando. Deixo-lhes então, como meu legado (não tive filhos...não tive tempo), estas palavras, à quem interessar:

“Vivam suas vidas. Vivam, desesperadamente, sem descanso, sem pausas e, ao mesmo tempo, sem pressa.

Vivam sem moderação!

Não se esqueçam dos valores do amor e da amizade verdadeira, como os que possuem, quando jovens. Não se esqueçam! Amem!

Embora a morte não seja de todo ruim (vocês fatalmente descobrirão isto) viver vale a pena demais. Até a próxima partida”.

L>K