A velhinha que matou Edmond Dantès
...Era uma hora...a velhinha afiava a faca...
Mayra Vital
Para Mayra, obrigado pela inspiração.
Mayara anda devagar. Palita os dentes, tem a sensação de que há uma folha de alface inteira entre seus dentes. Não há nada, é somente uma impressão, ela diz para si mesma, mas não se convence. Pára, entra na farmácia, olha no espelho. Realmente não há alface nenhuma em lugar algum. Respira fundo. Sobe na balança. Preciso emagrecer! Diz para si mesma e sai para a rua.
Quando pisa na calçada esbarra em uma cigana, é, pelo menos isso, o que a mulher parece ser. Ela pede desculpa. Não foi nada. Diz a cigana. A mulher então a olha nos olhos.
- Já sonhou com a mulher vomitando na garrafa?
- Han? - Ela não entende nada.
- Quando sonhar, não se assuste, essa será a primeira evidência do crime.
- Do que é que a senhora está falando?
- Quando chegar a hora você entenderá.
A mulher se vai deixando Mayara com a impressão de que mesmo contra o depoimento do espelho da farmácia, há sim uma folha de alface entre seus dentes. Desce a rua pensando na partida de xadrez que tem na sexta-feira e no livro que tem que ler para o seminário da faculdade, O Conde de Monte Cristo. Mayara não gosta de livros, somente de revistas de fofoca, essa parte da faculdade é um saco, mas ela vai levando. Gosta mesmo é de jogar xadrez, gosta de olhar nos olhos do adversário, mas a partida de sexta-feira vai ser difícil, final do campeonato estadual. Ela ainda olha a cigana sumindo na esquina. Velha maluca.
Entra apartamento a dentro, caminha para o quarto, o livro está sobre o criado mudo. Alexandre Dumas. Deita e começa folha-lo, os olhos vão ficando pesados. Sono. Muito sono.
Mayara vê a cena através da janela.
Uma velha de cabelos brancos, chamada Eliza. Eliza está segurando um funil, olhando para uma garrafa vazia enquanto fala com um homem bonito.
- Existem mais coisas sob o céu e a terra do que eu possa vomitar!
Eliza diz e então começa a vomitar no funil. Do funil o vômito escorre lentamente para a garrafa pet.
- Não entendo. – Ele diz.
- Você é o cara inteligente mais burro que eu conheço.
O sonho é estranho e Mayara acorda. Lembra-se da cigana. A mulher havia lhe perguntado sobre o sonho com a mulher vomitando na garrafa. Que loucura era aquela? Quem era aquela mulher? Quem era o homem bonito?
Ela olha para o tabuleiro montado. Pensa em qual seria a melhor estratégia para começar a partida. Batem na porta. Entre, mamãe. Ela diz, a mãe entra.
- Deixaram esse envelope para você.
- Quem deixou?
- Não sei, foi seu Ariovaldo quem entregou, disse que deixaram na portaria.
- Ele não disse quem entregou?
- Não sei, depois pergunte a ele.
A mãe sai do quarto, bate a porta, Mayara abre o bilhete.
Edmond Dantès está no Orkut.
Que bobagem era aquela? Edmond Dantès era o personagem do livro que estava lendo. O Conde de Monte Cristo. Alexandre Dumas. O bilhete não tem assinatura, uma letra bonita, letra de professor primário, sua professora a muito tempo atrás tinha uma letra assim. Ela fica curiosa. Senta-se na frente do computador.
www.orkut.com
Orkut Login: mayara_27
Senha: *********
Faz o login e entra em sua página de scrap`s.
Ao lado da foto do homem bonito do seu sonho, o nome Edmond Dantès, e então o recado. Um link para um site. Sem ao menos se questionar se aquilo é um vírus ela clica. A tela fica preta, depois vai se acendendo aos poucos, surge um tabuleiro de xadrez.
Uma peça branca se mexe é a vez dela. É um jogo on-line, onde os participantes podem conversar enquanto jogam.
- Sonhou comigo?
- Quem é você?
- Eu perguntei primeiro.
- Sonhei. Quem é você?
- Edmond Dantès.
Mayara movimenta o cavalo do rei.
- Mentira. Sei que é um perfil fake no orkut.
- Como pode ter certeza?
- É uma questão de lógica, ou não?
- E como sei que você sonhou comigo? Onde está a lógica disso? Consegue ver?
- Não sei.
Ele faz o mesmo movimento que Mayara.
- A questão é a seguinte Mayara...
- Como sabe meu nome, como encontrou meu orkut? Quem é você?
- Eu já disse, sou Edmond Dantès.
- Estou falando sério.
- Eu também.
- E quem é Edmond Dantès?
- Nunca leu a fábula de Dumas? O Conde de Monte Cristo?
- Estou lendo.
- Então logo vai saber quem eu sou.
- Como assim?
- A gente veio aqui pra jogar ou para conversar.
Ela faz o cavalo da rainha saltar de volta para seu lugar..
A tela se apaga.
Mayara olha pela janela. Mora em um apartamento de oito andares. Dois apartamentos por andar. 16 apartamentos ao total. Pela janela vê o entulho no quintal do prédio do fundo. Ela mora no terceiro andar. Mora com a mãe no apartamento de dois quartos. Mayara tem 27 anos e está na faculdade, cursa o último dos oito períodos.
Durante o jantar não consegue comer direito, fica lembrando da velha vomitando na garrafa, o vômito escorrendo pelo funil. Sente nojo. O estômago embrulha. A mãe está distraída, fala do novo vizinho da frente, um rapaz estranho e silencioso.
- A porta estava aberta e vi a quantidade de livros. Pelos menos uns dois mil.
Mayara não consegue prestar atenção. Pensa na cigana. Pensa no cara que apareceu no seu orkut, que estranhamente era o mesmo sujeito do sonho com a velha vomitando no funil. O que estaria acontecendo? Ela não sabia. Ela não estava com fome. A mãe ainda falava, sobre o que era mesmo? Não conseguia prestar atenção.
Liga a TV, o canal 13 é mais nojento que a velhinha vomitando no funil. Olha para o tabuleiro, montado sobre a mesinha de centro, tem vários tabuleiros pela casa, apenas não no banheiro.
Ela resolve investigar a procedência do bilhete. Vai falar com seu Ariovaldo. O elevador desce vagarosamente, 3,6 Km por hora, em média, ela aprendeu no Guia dos Curiosos, o segundo meio de transporte mais seguro, perdendo somente para o avião. Bobagens de estatística, toda hora cai um avião nessa cidade! Estatísticas seguras somente no xadrez, movimentos precisos traduziam verdades indubitáveis, quem era mais capaz vencia. Mayara entendia o xadrez como uma guerra, ela era um soldado. O elevador parou. Fiozinho na barriga.
Avistou o porteiro escondido por detrás de seu bigode centenário, quase patrimônio nacional, já com fios brancos, o velho sorri, usa quepe, ou boina, Mayara não sabe qual a diferença.
- Seu Ariovaldo, o senhor entregou um bilhete para minha mãe.
- Fui eu mesmo dona Mayara.
- De onde veio o bilhete?
- Uma mulher deixou aqui, disse que você estava ansiosa por esse bilhete.
- E como era essa mulher, como estava vestida, era gorda, magra, alta, baixa, branca, negra, loira, como era?
- Desse jeitinho ai que você falou?
- Hum?
- Mas para mim ela parecia mais era uma cigana.
- Obrigado seu Ariovaldo.
- Não há do que.
Ela fica com uma pulga atrás da orelha. E a pulga vai crescendo cada vez mais. Mayara se volta para fazer ainda uma última pergunta.
- A mulher disse mais alguma coisa, seu Ariovaldo?
- Sim. Disse; Mayara, é como no xadrez. Não entendi o que ela quis dizer, mas disse que era pra falar essas palavras pra você.
A pulga atrás da orelha de repente é um carrapato enorme sugando seu sangue. Mayara se pergunta mais uma vez o que é que está havendo afinal. E mais uma vez não encontra resposta alguma. O que a mulher quis dizer com aquilo? O que é como o xadrez?
Ela volta para o apartamento dessa vez desiste da segurança do elevador e sobe as escadas, devagar ainda pensando. É preciso dormir cedo, se concentrar para a partida de xadrez. Entra no quarto. A tela do computador está clara novamente.
- Quem bom que chegou Mayara. – Edmond escreve.
- Como sabe?
- Sei de muita coisa.
Edmond move o peão da torre duas posições..
- Estive pensando em Eliza.
- Quem é ela?
Mayara volta o cavalo para a posição inicial.
- A mulher que vomitava no seu sonho. Já se perguntou como sabia seu nome mesmo nunca a tendo visto antes.
- Nunca havia sonhado durante o dia.
- Não foi, de fato, um sonho, minha cara Mayara.
- Como assim?
- Você simplesmente está tendo uma visão daquilo que poderá ser.
- Ainda não entendi.
- Viemos aqui para jogar ou conversar?
Edmond avança a torre duas casas e a tela se apaga.
Ela ganhou o primeiro tabuleiro de xadrez aos seis anos, foi o pai quem deu, ele já era separado da mãe nessa época, vinha aos fins de semana, visitas rápidas, a colocava nos ombros. Upa, upa, cavalinho! Dizia por detrás do bigode, bem menor do que o de seu Ariovaldo, ela pensa nesse momento. A mãe se chama Raquel, o pai Ernesto, igual ao Che, ele mesmo dizia, mas não gostava de política. Ensinou a ela os primeiros movimentos, o mate do pastor, o mate do louco, as primeiras aberturas, os primeiros gambitos, ela aprendeu devagar, desenvolveu jogadas, aprimorou a técnica, hoje o pai já não consegue ganhar dela. Ele move as peças e quando se sente encurralado coça o bigode. É xeque-mate, não tem jeito. Admite sem jeito. E então dá risada.
O pai aparece cada vez menos, se casou de novo, a mãe não, sempre preocupada com as coisas da casa, é uma mulher nova e muito bonita, os homens se viram para olha-la na rua, Mayara percebe, a mãe não liga, nem mesmo presta atenção.
Quem mais aparece é o tio Nestor, quase todos os fins de semana, almoça com ela e a mãe, gosta de contar piada, sempre dando risada, bem humorado, bonitão, ele olha diferente para a mãe, Mayara já percebeu, a mãe parece não se importar, vai e vem pela casa, o tio já é de casa, faz parte da família. Tio Nestor joga xadrez, foi ele quem ensinou o pai de Mayara, joga bem, ela tem dificuldades para ganhar dele, mas sempre consegue, o tio não tem bigodes para coçar. Mayara queria que o tio se casasse com a mãe. Acha que eles dariam certo. Mas não diz nada, apenas move as peças no tabuleiro. Mayara pensa nessas coisas todas e o sono não vem. No fundo tem certo receio de sonhar com a velha vomitando no funil. Mas aos poucos o sono vai chegando.
Lá esta Mayara mais uma vez vendo a cena por através da janela.
- Você não acha essa garrafa pequena demais para todo o fel que ainda tem para vomitar?
- Oh, Edmond como você é ingênuo.
Eliza, a velha, volta a vomitar no funil.
- E a tal moça?
- Mayara? Estou jogando com ela.
- Teve progressos?
- Não, ela está na defensiva, nenhum sacrifício ainda.
- Ela já desconfia do que vai acontecer?
- Não tem a menor idéia.
- Muito bem. E a cigana?
- Está tentando interferir no jogo.
- De um jeito nela. Agora vá e me deixe vomitar em paz.
Mayara acorda, grita para as paredes, acende a luz, respira fundo, corre para o banheiro, vomita na pia, o estômago está se contorcendo em um espasmo dolorido.
O professor está falando sobre o livro. Sua cabeça está longe. Não sabe bem o que pensar, mas não quer pensar na matéria que o professor está explicando. Não consegue se concentrar. Ela não quer saber sobre O Conde de Monte Cristo. Não está interessada em Edmond Dantès, pelo menos não esse do livro, sim aquele que tem aparecido no pesadelo com a velha e que apareceu depois em seu Orkut a desafiando para uma partida de xadrez. Sobre esse, o professor não tem nada a dizer então não há sentido algum prestar atenção em sua aula. Ela se lembra dos detalhes da conversa entre Edmond e a velha, parecia roteiro de filme de gangster`s. Pensa nas palavras dele dizendo que ela talvez estive apenas vendo o que poderia vir a acontecer...
- No que consiste a metáfora apresentada, minha cara Mayara?
O professor quer saber. Metáfora? Que metáfora? As metáforas não importam, pelo menos não agora, mas ela não diz isso para o professor, tem cara de carrasco nazista, óculos redondos feitos aos de Lennon nas fotos das revistas antigas e nas enciclopédias.
- Desculpe-me, professor, não estava prestando atenção.
O professor continua a dissertar sobre as possíveis metáforas e bla, bla, bla. E se o jogo de xadrez fosse uma metáfora, o sonho outra metáfora? Mas elas representariam o que? Resposta simples; a loucura de Mayara. Ela sente vontade de rir. Está ficando louca? Quem poderá dizer que não? Quem poderá afirmar? Quem sabe o professor poderá explicar a ela as metáforas possíveis. Impossível. Tudo é possível.
Tem uma coisa que Mayara notou nos dois sonhos; um relógio atrás, na parede dos fundos, mas não consegue perceber que horas são. Outra metáfora, diria o professor. A que horas uma velha chamada Eliza vomitaria em uma garrafa usando um funil? O carrapato atrás de sua orelha começa a lhe chupar o sangue com mais força ainda.
A mãe não está em casa. O bilhete pregado na porta da geladeira diz que o pai passou mal e ela foi dar uma olhada. Mayara toma um copo de suco, come pão integral, mastiga devagar, ainda com nojo da velha, liga a TV, o canal treze está como sempre, ela troca de canal, nada que lhe chame a atenção, propaganda de lojas de móveis, imóveis,carros, jóias, gente vendendo e comprando de tudo. Sente vontade de vomitar em um funil.
A mãe chega com tio Nestor, ele dá risada de alguma coisa, a mãe está seria como sempre.
- Ernesto precisa se cuidar isso sim, senão qualquer dia vai ter um treco e ai então não quero bem ver.
- Oi Mayara.
- Oi tio.
- Já comeu alguma coisa filha?
- Comi sim mãe.
- E a final? Está preparada?- Pergunta o tio.
- É sexta-feira, estou sim.
Mayara vai para o quarto. Pensando ainda nas possíveis metáforas. Ela liga o PC, o monitor se acende. Edmond não está on-line, por hora não haverá xadrez. Pensa na abertura de Ruy Lopez que o pai lhe ensinou, na defesa russa de Petrov que o tio lhe apresentou. Distraída, ela olha, por um segundo, pela janela e tem a impressão de ver a cigana na frente do prédio, olhando para sua janela, ela pisca, então a mulher já não está mais ali. Deve ter sido impressão, ela pensa, mas mesmo assim caminha para a janela, amassa no nariz contra o vidro e nada vê, nenhum vestígio da cigana. Deve ter mesmo sido impressão.
A mãe bate na porta.
- Entra mãe.
- Acabou de chegar pra você minha filha. – Diz a mãe estendendo o envelope.
Ela nem mesmo abre, sai correndo, desce as escadas, chega exausta e quase sem ar lá embaixo. Seu Ariovaldo varre o saguão.
- Quem foi que entregou o envelope dessa vez seu Ariovaldo, foi a mulher que parece cigana.
- Calma menina, vai ter um treco. Sim, foi ela.
- Por que o senhor não a segurou?
- Como assim? Desde quando eu posso ficar segurando as pessoas?
- Obrigado seu Ariovaldo, deixa pra lá.
Ela, dessa vez espera o elevador. Seu Ariovaldo fica olhando enquanto passa a vassoura pelo saguão. Essa juventude está toda é enlouquecida, deve ser esse tal de hip hop. Pensa o porteiro. O elevador demora, ela tem ímpetos de sair correndo escada acima, mas ainda está com a língua de fora da descida. O elevador é lento demais, Mayara pensa, também 3,6 Km por hora ninguém merece, nem mesmo uma tartaruga é tão lenta, ela esbraveja para si mesma.
Quando vai abrir a porta, do apartamento vizinho ouve sons estranhos saindo por detrás da porta. Deve ser o tal vizinho estranho, de quem mamãe falava. Pensa, abre a porta e entra no apartamento, tio Nestor está dormindo no sofá. A mãe faz ruídos na cozinha, ela caminha para o quarto a procura do envelope que a cigana deixara na portaria. A tela do computador está acesa. Mensagem abaixo do tabuleiro. Edmond estava on-line.
- Recebeu a encomenda?
- Já estou começando a enjoar dessa brincadeira.
- A que brincadeira se refere, minha caríssima enxadrista?
- Tudo isso.
- Nada disso é brincadeira. É a vida real com uma leve pitada de nostalgia e surrealismo.
- E o que eu tenho com tudo isso?
- Você é o Tudo Isso.
A tela se apaga mais uma vez.
O envelope está sobre a cama, ainda lacrado. Mayara rasga a borda. Dentro há algumas folhas antigas, muito envelhecidas, ela tem a impressão de se tratar de alguma espécie de pergaminho. Não entende uma única palavra. Está todo escrito em francês, passa os olhos por varias páginas, até que encontra algo que lhe é familiar, o nome Edmond Dantès. Mais uma vez ela não entende nada. Como desvendar aquele labirinto de palavras em francês? Pegar um dicionário e tentar decifrar? Levaria muito tempo. Encontrar alguém que seja capaz de traduzir? Quem Mayara conhece que sabe francês? Muita gente, mas tem que ser alguém de confiança. Quem Mayara conhece que seja de confiança e fale francês? Ninguém!
Mayara está cansada, quer dormir, acordar de tudo aquilo, deixar de jogar essa partida de xadrez estúpida com um cara que nem mesmo existe, não passa de um trote de alguém que não tem o que fazer. Mas e a cigana? E o sonho com a velhinha vomitando na garrafa? Tudo é real demais. Ela não pode negar. Ou pode? Mayara não sabe. Mayara não quer saber. E nesse momento Mayara tem muita raiva de quem sabe. Ela vê o livro sobre o criado mudo. Livro idiota, tudo isso é culpa sua! Ela sente ímpetos de se lançar sobre o livro e rasga-lo, mas no fundo sabe que isso além de ridículo, seria inútil. Ela se vira na cama tentando dormir. Apaga as luzes e sente acalentada pela penumbra. Respira fundo varias vezes. Tenta esquecer tudo, deixar a mente vazia, tenta flutuar no vácuo do não- ser, mas é impossível. Todos os fatos estão dentro de sua cabeça, são imagens irretocáveis, não podem ser apagadas. Droga de sono que não vem. Ela olha para o teto e vê o ventilador rodando na penumbra, os ouvidos capturam os poucos sons vindos da rua. Os ruídos passam a ser sua canção de ninar e então Mayara dorme.
- Seu pai está no hospital. – Conta a mãe.
- O que ele tem?
- Alguma coisa no fígado.
O pai de Mayara não bebia no tempo que lhe ensinou a jogar xadrez, mas nos últimos anos estava bebendo muito, parecia até que queria compensar os anos sem a bebida. Tinha vezes que ficava dias bêbado. E não fazia absolutamente nada. Não escrevia uma única palavra. O pai dela é escritor. E mayara não gosta de livros, ela não consegue entender esse paradoxo. Ri dele, às vezes, mas não na frente do pai. Ele tem centenas de livros pelo apartamento, estantes e mais estantes, livros velhos, empoeirados, livros do tempo da onça, diz o tio Nestor.
Por segundos Mayara deixa de pensar no texto em francês que precisa traduzir e pensa no pai. De como ele lhe explicava que era preciso estar pelos menos quatro lances na frente do adversário, analisar todas as possibilidades antes de sacrificar o primeiro peão no gambito. Agora o pai está no hospital, problema no fígado. Realmente o mundo dá voltas, ela pensa, não diz nada para a mãe.
- Vamos visitá-lo depois do almoço.
Mayara concorda com um movimento de cabeça. Não gosta de hospitais, não gosta do cheiro. Não gosta muito de Helena, a nova mulher do pai, simpática demais, certinha demais, mania de falar tudo corretamente, um eufemismo por centímetro quadrado, pensa Mayara. Helena toda certinha e o pai todo errado, ironias da vida. Os opostos se atraem, mas o pai também fala corretamente, mas não usa os eufemismos a cada segundo, apenas nos livros, separa as coisas, ao contrário de Helena.
Mayara não sabe por que os pais se separaram, era muito nova, ninguém toca no assunto, ninguém parece de fato se lembrar do motivo. Ela também não quer saber, o que importa são os fatos em si, pronto, ai está. A mãe vai para a cozinha preparar o almoço, Mayara ouve os sons das panelas, água caindo, sons de copos.
Mayara espia a janela, pouco trânsito, a rua é sossegada, o bairro é tranqüilo e a vizinhança não é muito barulhento. O pai dela escolheu morar aqui, a tempos atrás, por causa de toda essa paz, precisava de tranqüilidade para escrever seus livros. Depois foi embora e o apartamento ficou com a mãe. Hoje o pai mora no centro da cidade, um inferno de ruídos. Mayara pensa nisso, talvez por isso o pai tenha mudado tanto, as críticas de seus livros tem sido todas negativas, talvez por isso tenha bebido tanto nesses últimos anos, Mayara não sabe, melhor não saber de certas coisas. Talvez o pai conheça alguém que fale francês. Mas amola-lo assim quando ele está hospitalizado? Seria uma boa idéia? Não importa, boa ou ruim, ela iria averiguar. O pai não poderá vê-la na sexta-feira na final do estadual de xadrez, droga, a tempos ele já não tem aparecido. Na cozinha os sons de dona Raquel continuam, logo o almoço estará pronto. Mayara está com fome.
Mayara está confusa.
A palidez de todos no hospital deixa Mayara ainda mais desanimada. O pai está deitado, um travesseiro enorme, um litro de soro pingando no canudinho, indo direto para a veia estufada em seu braço. Tio Nestor veio junto. Os passos dos enfermeiros indo e vindo pelos corredores silenciosos transportam Mayara a anos no tempo, os ruídos em muito se assemelham aos sons que escapavam da velha Olivetti do pai, quando ela ainda era criança e engatinhava pelo apartamento. Hoje o pai escreve em um laptop, sem ruídos, e ela já não engatinha a mais a quase três décadas. O soro pinga vagarosamente.
Mayara se sente oprimida por aquelas quatro paredes brancas que a cerca. Sente gana de sair correndo dali e ir lá fora respirar, o pai está falante apesar de abatido, Helena segura a sua mão. Ela está triste, gosta muito do pai de Mayara, e a enxadrista por instantes sente uma enorme simpatia pela nova esposa do pai. Mais uma vez os passos pelo corredor, mais uma vez o tac, tac, tac da máquina de escrever, encravada em suas lembranças infantis.
Os passos se aproximam, a Olivetti martela dentro das lembranças de Mayara. Os passos são da enfermeira. Entra no quarto, um buquê enorme de rosas brancas, o perfume se alastra, afasta um pouco o cheiro de remédio que as paredes e aparelhos exalam.
As flores são para Mayara, diz a enfermeira, entrega-lhe o buquê, Mayara espirra, o cheiro é muito forte, espira duas, três vezes. Saúde. Dizem. Há um bilhete, Mayara abre lê, está em francês, assinado por Edmond Dantès. Todos olham para ela, sente-se corar, sai do quarto, corre pelos corredores ainda espirrando. Ela está ficando cansada dessa brincadeira de gato e rato. Joga o buquê no primeiro latão de lixo, caminha cabisbaixa, chuta as pedrinhas nas ruas, as latinhas de refrigerantes, alonga a caminhada, não quer chegar em lugar algum, não tem pressa para nada, não quer ir a lugar algum, ver ninguém, pensa em Edmond Dantès, na partida de xadrez do dia seguinte, não treinou nenhuma vez na semana, apenas fragmentos de uma partida virtual com um fantasma. Mayara se sente exausta, entra na livraria, compra um dicionário de francês, escolhe o caminho mais comprido de volta para casa, vai folheando o dicionário, tenta traduzir as poucas palavras do bilhete.
Um movimento em falso e o bispo matará o rei!
Edmond Dantès.
Depois de muito esforço ela traduz precariamente, mas não entende o que quer dizer a mensagem. Quem é o rei? Quem é o bispo? Quem vai matar quem? Está, já, de frente para seu prédio, as janelas de seu apartamento estão abertas, as luzes acesas, a luz do quarto dela está acesa, Mayara não se lembra de ter deixado-a acesa. Ela encontra seu Ariovaldo, ele a olha por detrás do bigode e não diz nada. O sol já está se pondo no horizonte Mayara segura o bilhete e chama o elevador.
Depois do jantar Mayara se tranca no quarto, com um caderno e com o dicionário, passa a madrugada tentando traduzir o manuscrito. É um processo lento, vagaroso, dolorido, os olhos ardem, algumas palavras ela não acha, resolve baixar um dicionário melhor na internet, leva tempo, enquanto isso vai usando o dicionário, vai anotando no caderno as palavras que encontra, coloca a palavra em francês e na frente seu equivalente em português. Os olhos vão ficando pesados. Mayara cai no sono.
Mais uma vez ela assiste por detrás da janela, presta atenção no relógio, ainda não consegue enxergar as horas, no entanto vê Elisa afiando uma faca enorme, dessas de açougueiro, a luz da lua entra pela janela, ou será a luz do poste de frente da casa? Mayara não sabe, mas tanto faz, o fato é que a luz reflete na faca e essa por sua vez se faz enorme, e principal objeto da cena.
A velha está sozinha, assovia uma canção que Mayara desconhece, a faca brilha, a velha assovia ainda mais intensamente a medida que afia a faca. Um telefone toca dentro da noite. Mayara acorda. O telefone celular toca sobre o criado mudo.
- Alô.- ela atende.
O telefone está mudo. a tela do computador está acesa, uma torre preta se mexe.
- Olá, dorminhoca. – Escreve Edmond.
- Vá se ferrar. – Mayara diz para o computador.
Ela caminha até o PC e o retira da tomada.
- Acabou a brincadeira.
O celular toca novamente, e mais uma vez está mudo. Mayara o desliga. Se sente dentro de um filme B, estúpido, ridículo e boçal. Já é noite lá fora. As estrelas estão pequenas através da janela escancarada. Mayara, de certa forma, e se acha até mesmo ridícula por isso, sente medo de dormir, teme que o sonho com a velha vomitando na garrafa ou afiando a faca, volte a perturbar.
Mayara olha a lista de palavras, muitas delas são iguais, se repetem dezenas de vezes, centenas de vezes, ela então descobre do que se trata. O manuscrito é a descrição de movimentos de uma partida de xadrez, explicada por extenso, com palavras e não com os costumeiros símbolos dados por letras e números. Mayara anota as palavras que mais se repetem.
Tour, cheval, pion, évêque, roi.
Fica olhando para elas, ali, paradas no papel. Torre, cavalo, peão, bispo, rei. Fica imaginando que partida seria aquela, quem a teria jogado, quem teria anotado cada lance a tantos anos atrás a se julgar pela textura e estado do papel.
Horas depois o texto está praticamente traduzido. É a Ouverture le Dantès. Abertura de Dantès. Além dos movimentos das peças, Edmond conta sobre o período que ele chama de prision a vie, que Mayara traduz como prisão perpetua, conta episódios acontecidos enquanto ele e o padre cavavam o túnel para fugir do cárcere.
A Ouverture le Dantès começa com o cavalo da rainha e daí em diante Dantès mostra todas as possibilidades da abertura que descreve, e depois de centenas de movimentos as brancas vencem. Muitos dos movimentos Mayara não consegue compreender o por que, sacrifícios de peças e posições que ela jamais faria estão todos ali.
Ela sente-se exausta. Os olhos começam a ficar pesados. Mais uma vez vê a cena por detrás da janela. Eliza afia a faca, o relógio na parede marca uma hora, a velha caminha em direção a Edmond Dantès, que está de costas olhando a paisagem através da janela de Mayara, parece vê-la. Mayara quer gritar, alertar Edmond sobre o eminente perigo, mas não há como, seus músculos estão congelados, ela sua frio, nada sai de sua garganta, somente um suspiro quando Elisa corta a garganta de Edmond e ele cai, a ultima coisa que ela vê sãos os dedos dele deslizando pelo vidro da janela antes de cair e ela acordar gritando.
Nada daquilo pode ser real, ela imagina, não há lógica, ela é uma enxadrista, acostumada a lidar com razão e lógica, mas por algum motivo que ela desconhece a situação simplesmente é surreal além do que ela pode conceber. Ali estão as provas, o manuscrito, a Ouverture le Dantès.
Finalmente chega sexta-feira, dia da final. Mayara está sentada diante do adversário. Um rapaz alto, albino, espinhas vermelhas e óculos com aros de tartaruga. Ela ainda pensa nos pesadelos com a velhinha. Pensa no pai que ainda está internado. Pensa no seminário sobre o livro de Dumas. Mas agora ela está sentada de frente ao tabuleiro. Ela jogará com as brancas. Varias pessoas assistem a partida. Dentro da platéia ela vê a cigana. A mulher sorri. Mayara não sabe o porque, mas sorri de volta.
Mayara faz o cavalo saltar. Usa a Ouverture le Dantès.
Junqueirópolis, 24 de abril de 2008