O TELHADO BRANCO

"Naquele entardecer dourado

o rio descemos.

No barco desequilibrado,

Vão frouxos os remos.

A ternura é de mais... mas cuidado:

A direção é de menos."

(de Lewis Carroll para Alice Liddell)

Houve um tempo em que Eliezer e eu passamos por maus bocados e mastigamos brisa.

O vazio no estômago, nada existencial, levou-nos a trabalhar como pintores de parede.

Certa vez, contratou-nos um empreiteiro para que pintassemos o exterior de uma pequena casa. Do interior, ele mesmo cuidaria, por se considerar mais habilitado.

Elaboramos a tinta ali mesmo, cal, água, certa dose de óleo de cozinha e fixador.

Balde e broxa na mão saimos a besuntar paredes.

Pelo meio da tarde, restava pintar um espaço de meio metro de altura da parede central e em cima do telhado, existente pela desigualdade de níveis entre as duas aguadas.

Deitados de lado, desacomodados, esfregamos as brochas derramando muito respingo na telha vermelha.

Depois espreguiçamo-nos ali mesmo de barriga para cima a espera de que a tinta secasse para aplicar a segunda mão.

Foi quando Eliezer sacou do bolso da calça um cigarro.

Passando o cigarro aceso de um para o outro, ficamos a dar grandes tragadas e a segurar o mais pudesse a fumaça nos pulmões.

E porque não tinhamos nada mais útil a fazer, pusemo-nos a cortar os pássaros que voavam pelo céu, cada vez mais altos e cada vez mais distantes.

Como insistissem em se misturar uns aos outros e a se movimentarem contínuamente no céu tranqüilo, perdemos a soma por diversas vezes.

Mudamos a brincadeira.

Buscamos interpretar figuras formadas pelas nuvens.

Entre uma tragada e outra, imaginamos as mais inacreditáveis.

E não nos surpreendemos quando uma delas destacou-se e transmudou-se em um enorme Coelho Branco, que se aproximou do telhado, tirou do bolso um rélógio tic-tac, fixou-nos com imensos olhos rosas e disse:

___ Ai, ai, ai! Eu vou chegar atrasado!

Bastou para Eliezer levantar-se num salto.

____ Precisamos terminar a pintura.

Pegou com o extremo dos dedos a guimba ainda acessa, fez bico para não queimar os lábios, tragou fundo e ficou a observar o cenário.

____ Vamos ter problema com os respingos de tinta no telhado.

Porque o sol estava quente;

ou porque, talvez, o grande Coelho batia com um martelo no meu raciocínio, sugeri:

____ Para encobrir os respingos melhor pintar todo telhado de branco.

____ Boa idéia.

Disse e prontamente saiu a pintar o telhado:

____ Pinte do outro lado. Na cumeeira a gente se encontra.

E assim foi.

E assim, no fim despertamos para realidade e ficamos a examinar a lambança.

Sobressaltou-nos a fúria do empreiteiro, que no chão, colérico, dizia impropérios e dava saltos maiores do que o Coelho Branco.

Saiu a cata de tijolos e lançou-me um que quase me atingiu a testa.

Escapamos saltando pelo muro o quintal do vizinho.

No belo pomar, aproveitamos para pegar algumas mexiricas.

Depois alcançamos a rua e corremos até não mais poder.

Ficamos foragidos uns dias e não conseguimos mais trabalho.

Deixei de fumar.

Fazia-me mal a saúde, assustava-me recordar a quase tijolada na testa e perdi um dia de remuneração.

Ainda hoje existe a casa e o telhado com resíduos da tinta branca, tudo culpa do Coelho que ainda ouço bradar quando passo por ali:

____ Silêncio no Tribunal! Ou a Rainha manda cortar-lhe a cabeça.

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O poema acima, de Lewis Carroll, para quem se interessa por traduções e suas dificuldades, tem outra versão:

"No verão, na tarde de ouro,

deslizamos vagarosamente.

Nossos remos são manejados

sem perícia no sol ardente:

mãos gentis, que fingindo vão

guiar nosso passeio errante.

Ah, cruel trio, que em tal hora,

sob o céu de esplendor e sonho,

implora um conto sem vigor

e de pobre alento, enfadonho.

Mas que pode tão fraca voz

contra o coro infantil, risonho?

Prima decreta, imperiosa:

"Agora, por que não começa? ...

Em tom brando, Secunda roga:

"Que seja sem pé nem cabeça!"

E Tertia, uma vez por minuto

fala somente, não se apressa.

Logo mais se calam, de súbito,

E vão seguindo em fantasia

A viagem-sonho da heroína

No país do assombro e magia

Em alegre charla com os bichos.

E crêem um pouco na utopia.

Tradução de José Laurenio de Melo, no

"Alice no país das maravilhas", editora

summus.

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Obrigado pela leitura.

Araçatuba-SP, 17-04-2008