Outro Homem
Toda manhã tem uma cara de melancolia. O sol esquentando os lençóis que despencam desarrumados da cama, as vozes elevando-se aos poucos pelas calçadas, o cheiro de café vindo das casas vizinhas...
Minhas manhãs são sempre solitárias. Fico meio perdido, desorientado. Demoro um bom tempo para recobrar minha plena consciência. Levanto os olhos ao teto e estaciono meu olhar num ponto durante horas, pensando na displicência de Deus, pensando em minha ausência de mim, em minhas muitas faces, na desfaçatez dos homens que contentam-se com tão pouco. Contentam-se com dinheiro.
Todas as paredes do meu apartamento pareciam querer apertar-me de encontro à minha cama. Aquela caixa de seis metros quadrados era meu divã solitário nas noites de inverno, nas tardes de outono e nas manhãs ensolaradas de primavera. A luz do sol invadia meu quarto sem pedir licença. Cortava minha solidão como um punhal na carne trêmula e fazia lacrimejar meus olhos irritadiços pela forte luz.
Preparava-me para mais um dia em minha incansável rotina. Mais um dia incomodando-me com a fiel servidão de seres humanos imundos, mas sem coragem para gritar ao vento meu desprezo. Rezam ao seu Deus no fim de semana e na segunda-feira estão prontos para guiar suas vidas infringindo regras e cometendo “pecados”. Mais um dia em minha lastimável vida de obediência, de satisfações.
Privado no silêncio de meu quarto contemplei a grandeza da solidão. Fincado no meu confortável colchão divaguei meus sentimentos confusos e minhas decepções com tudo e com todos. Aquela inconfundível rotina aterradora sugava-me para um buraco sem fim. Levava-me para uma dimensão da qual não mais conseguiria libertar-me.
Todos os dias eram repetições dos dias anteriores, o deja vu constante.
Eu e minha inseparável camisa amarela pisávamos o chão daquele apartamento sem privacidade. Todos pareciam ouvir-me. Pareciam parentes de quartos vizinhos. Arrastei meu corpo cheio de resignação até o frio da cozinha. O cheiro de café invadia todos os cômodos brindando mais uma manhã dentre tantas manhãs. Recostei-me junto à parede e ali permaneci, de olhos cerrados e pensamento meio sonolento.
Cada gole de café que sorvia enchia meu corpo frio de força para suportar mais aquele dia. O resto frio que ficou no copo rasgou minhas entranhas com um gosto desagradável de amargura.
Acostumei-me com aquele amargo matinal na boca debruçado sobre a janela, observando o movimento nas ruas abaixo de mim. Estava isolado num mundo distante. Distante de todos e até mesmo de mim.
Tragava em meu cachimbo a fumaça que acalmava meus nervos. E ria-me de mim, da minha insignificância, da minha indolência.
Observando a janela à frente via todos os dias a rotina de muitas famílias: o café da manhã na mesa, a criança indo à escola, o marido despedindo-se e seguindo ao trabalho...
Vi essas cenas repetirem-se por vezes incontáveis. O homem de terno escuro despediu-se da esposa com um beijo no rosto e saiu. Minutos depois, um sujeito de estatura mediana, adentrou no apartamento. Cerraram-se e cortinas e tudo escureceu.
Comecei observar atentamente aquele apartamento, que ficava praticamente na mesma altura de minha janela. Consegui ver detalhes dentro daquele lar burguês. Era um apartamento simples com móveis em linhas quadradas. Havia uma gravura de Picasso na parede da sala. Logo na entrada, junto à porta, havia uma espécie de aparador que servia de suporte para três ou quatro porta-retratos. Retratos de uma família cheia de segredos que eu começava a desvendar.
Todas as manhãs, lá pelas oito, o marido despedia-se e, alguns minutos depois, adentrava o outro homem, fechando por completo as cortinas. Aquela cena começou a incomodar-me profundamente. Não pelo fato da traição em si, mas pela rotina de traição. Uma traição que obedece a uma eterna rotina está fadada a tornar-se um casamento piorado, pois há, além dos naturais desacordos entre o casal, a questão subversiva do ato.
Passei a ocupar minhas manhãs monótonas com a observação da traição daquela mulher, debruçando meu corpo sobre a janela, na esperança que algum dia houvesse um pormenor que fizesse o homem esquecer de fechar a cortina. Porém, os dias passavam-se e tudo seguia na mesma. A mesma cortina fechando-se na minha cara, privando-me do meu prazer de observador.
Resolvi que, para satisfazer minha curiosidade, havia de solucionar aquele mistério.
Ao cair da tarde saí para comprar uma luneta. Estava parecendo adolescente em filme policial, prestes a desvendar um crime. Sabia que não houvera crime algum nos aposentos daquele apartamento.
Posicionei meu novo equipamento num local onde fosse possível escondê-lo caso fosse necessário.
Acordei mais cedo que o de costume e, tão logo sorvi o último gole de café frio, me coloquei a observar o outro lado através das lentes. Acendi meu cachimbo e esperei. Esperei ansiosamente como quem espera o primeiro beijo. Minhas mãos suadas faziam tremer a luneta.
Com o coração disparado vi o homem, após o marido sair, entrar e seguir diretamente para a janela. Por um instante senti meu coração quase parar. Reconheci meu rosto naquele sujeito. A mesma camisa amarela, a mesma barba por fazer, os mesmos óculos...
Após o fechar das cortinas fiquei ali, meio atônito, meio confuso, tentando entender o que acabara de acontecer.
Se não tivesse sido traído por meus sentidos acabara de ver a mim mesmo no apartamento em frente ao meu. Mas como isso seria possível?
Fiquei meio atordoado o dia todo. Pensativo, confuso, relutante em entender o que havia acontecido. Aquela angústia tinha que acabar. Daria fim àquela situação insustentável.
No dia seguinte pela manhã, reuni minhas forças e fiquei à espreita, na calçada, esperando o homem de terno escuro sair para o trabalho. Tão logo ele desceu e eu subi os seis andares escada acima, rumo a não sei onde. Engoli seco cada degrau daquela escada infindável. O angustiante sopro de vento gritava nas frestas da janela do corredor.
Senti um estremecimento percorrer-me o corpo quando, em frente à porta, avistei-a entreaberta. Pé ante pé adentrei aquela sala iluminada pelos raios de sol cheios de frescor. Não vi ninguém na sala. O tom claro das paredes ratificavam toda a onda matutina que tomava conta daquele cômodo. Com a luz forte do sol incomodando meus olhos segui à janela. Antes de cerrar as cortinas paralisei um instante e, do outro lado, vi um homem, com feições familiares, observar-me, debruçado sobre a janela, apoiado em sua luneta, adornado por uma familiar camisa amarela, tragando um familiar cachimbo...