O hospital, a sereia e o sonho
Havia à minha frente um lindo e vasto mar azul de ondas mansas que corria a findar-se em alva e espumosa marola. A ilha era mesmo calma e bem isolada do continente. Nosso barco, nos trilhos da ousadia, aproveitara o vento bravio do oceano e facilitara sua ida apressada como se procurasse a firme e prometida ilha de águas piscosas. Havia sonhado a noite inteira com Hemingway. Acordara com o velho e o mar fresquinhos na memória: havia eu, o velho; havia sob meu barco, um mar mais velho ainda.
O sol já relaxava no finzinho do horizonte, e meus olhos alcançavam uma lua descorada que ainda se douraria para se fazer bela entre as estrelas.
Ouvi a zoada da água quando o peixe, saltando cioso de forças, encostou sua barbatana no casco desbotado do barco.
-O senhor viu o bicho?
-Enorme.
-Deu pra vê-lo bem?
-Não sei sua espécie, mas não é um tubarão.
A água friorenta do mar havia nos levado, com sua correnteza, para próximo à praia. Lançamos a âncora, tiramos nosso bote e, saltando com ele na água, terminamos por colocar nossos pés sobre a areia alvíssima e ali nos esquecemos do tempo até sermos surpreendidos pela maré que nos assustou com um tapa no corpo, molhando-nos até a alma. Lembro que sorrimos do presente marinho que recebemos na praia, deitados.
-Vamos voltar?
Era tarde; a mesma maré forte que havia arremessado a água salgada sobre nós, havia destroçado nosso barco nos penedos distantes de onde tínhamos deixado-o.
Quando fez oito meses que estávamos náufragos na Ilha do Peixe, vimos pela primeira vez a sereia colorida saltando à frente de nossos olhos.
-Que peixe, meu irmão!
-Peixe nenhum, Louis, é uma sereia.
-Maluco!
Uma linda mulher, de formas torneadas, e longa cauda descamada, exibiu-se à nossa frente por quase dez minutos. Senti que chamava um de nós para próximo dela. Dessa vez, nenhum de nós arranjou coragem de ir.
A fábula que conhecíamos havia se tornado a mais pura realidade. As fogueiras noturnas que fazíamos, para tentarmos encontrar algum resgate, não nos eram mais importantes do que os vôos cintilantes da jovem sereia-enamorada.
Lembro-me bem que, numa noite enluarada de verão, nessas onde as estrelas se apresentam aos nossos olhos, mais como desenhos mágicos do que como simples astros, ela veio também diferente a enfeitiçar-nos.
Louis, pasmo ou entorpecido pela incomum realidade à que assistia, permaneceu sentado à beira-mar. Eu me atrevi ir até as águas sedutoras que molhavam a sereia. Nadei com vagar. Não sabia como seria recebido por ela; e o mar me levou até, creio, cem metros distantes da marola.
Ela me recebeu cruzando seu olhar com o meu; curvou seu corpo de maneira que pude repousar o meu sobre sua cauda lisa e macia. Cheirava não a peixe, mas a mulher perfumada com os discretos perfumes das flores silvestres.
Permaneci quieto; deixei-a tentar qualquer afago; em seus olhos estava escrito que não me faria mal nenhum.
“Ficamos tão íntimos, ela e eu, que, quando as luas que lhe permitiam eram custosas, ficava irrequieto. Sua boca tinha gosto de mel, e seus abraços causavam tal frenesi em meu sexo que, acho, eram naqueles instantes em que atingíamos o clímax dos nossos sentidos.
O inverno chegou e o mar, como se sentindo frio, procurava abraçar-se com suas próprias ondas, num torvelinho cheio de forças vivas. Eu não enxergava sequer dois metros à frente do meu nariz e, por isso, resguardei-me de entrar no mar, muito embora enxergasse o dourado brumado no céu desenhado pelo brilho da lua da sereia.
Aos urros, repetidos em franco desespero, ela me chamava para fazer amor. Meu medo me proibiu aceitar seu convite.
E a linda sereia, enlouquecida de amor, veio até o raso da praia. Beijei-a esperando seu abraço gozoso. Após nosso coito, cansados, dormimos lado a lado, até relaxarmos de tudo.
E a chuva passou, a lua saiu limpa, o mar se acalmou e cadê a água que poria a linda sereia de volta no mar?
-Não chores, meu irmão...
Minha linda sereia, aqui deitada entre nós, de olhos marasmáticos, nem geme, nem chora...
Os estertores da vida se foram; os últimos deles misturados às lágrimas salgadas de Arnon, que, inconformado, já sabia que havia perdido-a para o mar.
Mas o que é do mar está no mar e é nele que tudo dele se renova, como este lindo sonho que tive e pude fabulá-lo entre as palavras e as frases, nem tão tolas, nem tão santas que pus em seu enredo.
Quando me levantei na cama do hospital onde estava enfartado e a recuperar a saúde, olhei pelo vidro baço pela maresia do banheiro do apartamento e pude avistar a Praia da Avenida sendo molhada por fria e fina chuva. Aí voltei a lembrar-me do Hernest Hemingway, o velho e o mar, e soube, por mim mesmo, que precisava continuar sonhando com as sereias encantadas para continuar vivendo os luares do meu renascer.”
-Está se sentindo bem, meu amor?
-Estou, Káthia, apenas com uma saudade enorme do excesso de vida que tinha antes.
Medi meus passos curtíssimos e retornei à cama, sereno, caçando a essa altura, não a sereia do sonho, mas a oração da vigília. E então rezei até perto das dez, até ter outra vez meu corpo examinado minuciosamente pelos colegas médicos, cheios de vida, mas secos das sereias e dos mares da poesia onde busco desadoecer de tudo.