Cena 13. No boteco. (e mais outras cenas, perfazendo o total da parte intitulada "João" da novela "Aqueles que devem morrer"

Cena 13. No boteco.

Aldo vivia a olhar o horizonte. Era já uma pose de quem faz força para ver longe. João olhava o chão do pé sujo, o piso de cerâmica cujo desenho estava desaparecendo. Querem ver um banheiro? A primeira porta à esquerda. Um cubículo escuro, um mictório onde podia-se urinar de pé, com bolas de naftalina, um fedor de muitas urinas misturadas e um chão molhado e nojento, que serragem nenhuma limparia e caixas de cerveja empilhadas.

Alguns ajudantes de pedreiro e serventes de obra bebiam cachaça já de manhã, com uma careta fingida, porque a aguardente que, em geral, queima os locais por onde passa neles descia suavemente. Um, dois, muitos copos. Nada de leite que é bebida de bezerros. O nordestino é antes de tudo um forte que mata meio copo de cachaça no café-da-manhã e vai se dependurar nos andaimes das obras. Às onze horas, esquentaria a sua marmita com arroz, farofa, jirimum e um pedaço de carne seca numa fogueira de lascas de tábuas de obra. De tarde, iria até a Central do Brasil, e pegaria um trem até alguma cidade dormitório da Baixada. Ou ficaria por aqui, no morro, em alguma favela.

- A vida desses caras já é uma guerra.

Que Aldo queria transformar em uma guerra de verdade. Canalizar as suas energias contra o verdadeiro inimigo. Mas afinal, quem era o verdadeiro inimigo, aonde estava ele?

Era de fato uma forma de aumentar em muito a sua própria carga de dor, tomando como suas as dores de todos os injustiçados do mundo. Mas será que aquelas pessoas, as pretensas sofredoras estavam pedindo por ajuda? Era possível, realmente, ajudar a alguém, neste mundo de Deus? A revolução não pode se confundir com a crise da pós adolescência daqueles que não conseguem achar o seu lugar no mundo. Quem sabe o que é direito e o que é errado? Mas existiria outra forma de vida possível na terra da escravidão?

- O povo trabalha debaixo de chicote. A grande dúvida é se empunharemos a chibata, ou levaremos chibatadas. Temos que escolher um lado.

Triste país de escravos e de senhores de escravos.

Cena 14. Pura fraseologia revolucionária, é o que diria Lênin.

Um líder de homens é aquele que sabe qual o caminho. Ou que dá a impressão de que sabe. Líder ou condutor. Líder é palavra derivada do inglês Lead, que quer dizer chumbo. Provavelmente porque do chumbo é que se faziam tubos e canos, os condutores de águas e de merdas. Mas do chumbo também se fazem projeteis de armas de fogo. Que são devidamente conduzidos até o inimigo. E assim era Aldo; queria ir para a Bolívia ajudar o Che. O resultado da luta poderia ser outro, com a ajuda dos brasileiros.

A idéia de que o governo dos homens deve provir da razão é herança da revolução francesa. Mas tem gente que consegue justificar racionalmente até a escravidão, até a injusta distribuição das riquezas: dizem que se as riquezas forem distribuídas eqüitativamente, cada pessoa vai receber muito pouco. Esse muito pouco será consumido e não sobrará nada para ser reinvestido. A sociedade vai parar de crescer. Então, poucos têm que ficar com muito e muitos tem que receber muito pouco. Esses poucos podem gastar à vontade, porque não conseguirão mesmo que queiram acabar com todos os recursos que chegaram às suas mãos. Ao mesmo tempo, eles criam um modelo de vida que todos querem ter. A sociedade passa a ser impulsionada por isso. É o progresso batendo às nossas portas. Essa é a única razão que prevalece hoje, e que justifica todas as injustiças promovidas pelos governos: o progresso. Antes, os governos retiravam a sua autoridade diretamente da divindade. Faziam porque queriam, sem ter que dar explicações a ninguém. Hoje estamos sob o império da razão e do progresso. E também a defesa das mais caras instituições: família, pátria, propriedade. E propriedade, meu caro, quer dizer que o mundo todo já está dividido, e pode ser usado ao bel prazer do proprietário. O gado humano também é propriedade. Fazer parte de um mercado é viver e progredir. Comprar é contribuir com impostos para a sustentação do governo. Sempre foi assim. E sempre será assim.

Mas o Che já está na Bolívia. Prometeu levar a revolução à toda a América Latina. Criar milhares de vietnãs.

Cena 15. Pensamentos em excesso, doença infantil de João.

De repente pareceu tola essa determinação, como se um garoto birrento se recusasse a jogar o jogo e quisesse mudar completamente as suas regras, para criar novas formas de dominação. Mas que se danem. Quem poderá dizer como será o futuro? Escravidão não é só trabalhar sob a chibata. Escravidão é renunciar aos próprios sonhos e condicionar a vida aos sonhos de outrem.

- Não é questão de sonhar - disse Aldo - é questão de justiça, de justiça histórica. E de correção de centenas de anos de exploração.

Para os teóricos burgueses, é por racionalidade que a apropriação privada do trabalho que é social seja justificável. Mas, antes de tudo, quem dá o direito a essa corja de organizar o trabalho e venha nos dizer o que deve e o que não deve ser feito? Por que alguns poucos tem a iniciativa e conseguem impor a toda a humanidade os seus próprios sonhos e nos fazem renunciar aos nossos? Talvez porque não tenhamos sonhos. Talvez porque não saibamos o que fazer. Ou porque quando chegamos ao mundo os esquemas já estejam funcionando, há muito tempo. Somos educados para nos acostumarmos com as regras desse sistema escroto. Temos que nos enquadrar e achar nosso lugar dentro do esquema, sob pena de ter a policia nos nossos calcanhares. Cair na bandidagem social, no fundo também é aceitar, porque tudo que os bandidos querem são os benefícios do trabalho social rapidamente, sem ter que trabalhar muito. É atividade de alto risco, que seguro nenhum do mundo cobre. A bandidagem política quer ser igualitária e repartir os frutos do trabalho com justiça. Mas se você dividir muito vai sobrar muito pouco. É o que dizem, quando vem com a história de que primeiro temos que deixar o bolo crescer, para depois dividir. É o dilema dos camponeses que são obrigados a passar fome para não comer as sementes do ano que vem. Senão o que vamos comer o ano que vem? Então passamos fome hoje e no ano que vem também. Vamos plantar hoje para continuar reproduzindo o sistema, ano que vem e em todos os anos seguintes. Veja o caso do Brasil, se temos que mandar todo esse dinheiro para o exterior para pagar os juros da divida, é claro que tem dinheiro sobrando! Só que os nossos patrões querem esse dinheiro lá no exterior, porque eles é que decidem onde nos vamos aplicar. Quem somos nós, uns ignorantes, para decidir onde aplicar o nosso dinheiro. É por isso que essa ditadura de merda está fazendo tanta cagada com os investimentos, queimando recursos que vamos levar anos para pagar.

É portanto simples. Estamos brigando por um nacionalismo absurdo. Estamos brigando porque queremos ser explorados somente por brasileiros. que brasileiros explorem brasileiros. Não podemos admitir ser explorados por gringos. As nossas autoridades são apenas feitores. Põem o povo para trabalhar e remetem os lucros para o exterior. Ficam só com uma pequena parte, se contentam com pouco. Em terra de cego, quem tem um olho é ladrão. E sempre foi assim, desde a colônia. Ninguém veio aqui para criar um país. Vieram aqui para enriquecer, para fazer o Brasil. Brasileiro era o português que vinha enriquecer no Brasil. Por isso não é nacionalidade, é profissão. Como o funileiro, o ferreiro, o barbeiro, o trapeiro. Uma nacionalidade não pode terminar em eiro. Eiro é profissão. Um povo de eiros que é escorchado até ficar sem eira nem beira.

A coisa é portanto simples. O Che é argentino, mas não tem nacionalidade. Já lutou em Cuba, na África, agora na Bolívia. Luta onde é preciso. Em torno dele estarão as melhores forças das Américas. As mentes mais lúcidas. Os braços mais fortes. Índios, mamelucos, negros, brancos, mulatos. Párias da sociedade e intelectuais. Campesinos e operários. Médicos, engenheiros e até filósofos. Padres e pais de santos. Anjos e demônios. Contra ele os coronéis tacanhos e ignorantes, os responsáveis pela censura, os vendilhões da pátria, os traficantes de drogas, a máfia, a CIA, o FBI, e toda essa corja de cafetões que manipula a sociedade e lucra com a ignorância e o sofrimento do povo. A questão é simples. Temos que fazer o que deve ser feito. Nos engajarmos nessa luta final, disse Aldo

Mas toda a luta é final para quem morre. Qualquer que seja o resultado. Um escravo é quem troca a vida pela liberdade. Não aceita o dilema imposto pelos amos: escapar ou morrer. O engraçado e que o amo não tem que enfrentar esse dilema. Quando é com ele, põe outro para lutar em seu lugar. Não é ele quem morre. Ele tem exércitos de aventureiros, puxa-sacos e toda a sorte de animais servis para lutar em seu nome. Enquanto o Che arrisca pessoalmente a vida, os generais desfrutam tranqüilamente do conforto de seus gabinetes. E, os patrões dos generais estão sabe-se lá onde. Essa é a diferença entre o trabalho físico e o intelectual. Até para matar os patrões tem quem o faça por eles. Dar a ordem é como apertar o botão e colocar em movimento um mecanismo projetado para funcionar. As molas são acionadas, as engrenagens e os eixos rodam, um contato se estabelece e a coisa toda se põe em movimento. Os beneficiários desse movimento podem tranqüilamente esperar pelos resultados. E desfrutá-los. Enquanto nós temos que matar com nossas próprias mãos.

Aldo segurava a canoa de pão como se fosse um cachimbo, enquanto falava interminavelmente. João, negativo como sempre, procurava defeitos em seus raciocínios. Para ele o mundo já estava perdido. Sempre esteve perdido. E não havia nada que se pudesse fazer para alterar a perspectiva soturna. Assim com assado, pouco importava. As revoluções acabam sempre em opressão. Cria-se uma opressão que substitui a precedente. Por mais bem intencionados que sejam os revolucionários originais, há uma casta de pessoas que é funcionalmente imortal. Burocratas, chefes e chefetes, que acaba por se apossar de todo e qualquer mecanismo criado e que refaz os seus privilégios rapidamente. Escribas, funcionários públicos, cobradores de impostos, carimbadores que dominam o mundo e os governos há muito tempo, desde a Babilônia, passando pelo Egito, por Roma, pelo Sacro Império Germânico e Britânico, até chegar hoje, na máquina administrativa dos governos modernos, infiltrando-se também no Soviete Supremo, no Politiburo, na ONU, e em qualquer esfera em que as regras escritas possam se aplicar. Pessoas especializadas em conhecer a lei, em escrever a lei, em aplicar a lei e em ganhar polpudos salários e propinas sempre que possível. É o mundo delas, feito por elas, a serviço delas.

Nesse mundo que ele se recusava a entrar. Ninguém levava a sério essa historia de revolução. Ainda mais revolução armada. Uma coisa é um governo que cai de podre. Outra é enfrentar um governo forte, organizado e cruel, capaz de corromper qualquer um oferecendo empregos e privilégios, o truque de todos os soberanos do passado para preservar o poder. Pagai os impostos, e podeis roubar à vontade, podeis destruir a Amazônia, podeis emporcalhar rios e mares. Mas, ainda assim poderia ir guerrear.

- Poderia ir, poderia largar tudo.

Não havia muito o que largar, mas ir para o meio do mato e achar que a partir dai o mundo começaria a mudar era uma determinação um pouco absurda. Mudaria para eles. Haviam decidido se internar na floresta, sem nada , sem treinamento, sem estratégias ou contatos. Sabiam que havia alguma coisa acontecendo. As lutas que varrem o mundo apontam para o choque entre impérios em expansão. O império norte americano atingira o seu auge no Vietnã. Agora começava o movimento inverso. A explosão que volta à sua origem. Esperavam bravamente estar lutando nos guetos de Nova Iorque, como Roma invadida pelos bárbaros, chicanos, muçulmanos, africanos, numa grande luta final. O próximo século será a era da paz para todos os povos.

Aldo era inocente no sofrimento. Sofria pelos outros. A moral abala o físico. O físico pode destruir a moral. Não sabia que dai a pouco tempo estaria dependurado num pau-de-arara, levando choques elétricos nas partes pudendas e bolos de palmatórias nas plantas dos pés.

Ai você entrega Deus e o mundo. Ou morre. O eterno dilema, vencer ou morrer. Morrer pode ser um alivio, a libertação; os profissionais da tortura tinham sempre um medico à mão para avaliar a capacidade de cada um em continuar levando porrada. Não queriam acidentes de trabalho.

- Quando eu mato, eu mato. Quando faço carinho, é para você ficar arrepiado. E eu estou fazendo carinho, por enquanto é carinho, até você contar onde está o Velho. Onde está o velho Toledano, é esse o nome que o corno está usando?

Como é que Aldo poderia saber? Como é que um ex-estudante, desempregado ía saber dos caminhos dos velhos dirigentes experimentados? Gritava e sentia as lágrimas correndo, contra a sua vontade. Ou seria suor?. Apanhou como boi ladrão, somente porque estava no lugar errado, na hora errada. E, afinal, quem era Toledano? Não conheço nenhum Toledano.

Não conhece? Então toma, safado. Para lembrar das coisas erradas que fizestes. Vai falando, tudo.

Vou-me embora para a Bolívia. Vou ajudar o Che. Depois eu volto para te pegar.

Bolívia? Você já está delirando. Vai ter sorte, se conseguir sair daqui.

Aldo Correia Garrido conseguiu arregimentar um punhado de jovens para a aventura boliviana. Acreditava que um grupo de homens determinados pode mudar a historia. Quantos não são hoje respeitados por terem largado tudo para defenderem a liberdade na guerra civil espanhola? Foi, no entanto, também, um fiasco. Por que deveremos considerar os derrotados como loucos, visionários, infantis?

Em sua busca eles não conseguiram fazer contato. Não dispararam um único tiro nem participaram de qualquer combate em território boliviano. Sua expedição foi uma longa caminhada. Chegaram atrasados, quando o Che já havia tombado. Na volta, tiveram algumas escaramuças com o exercito. Depois, a dispersão; cada um para o seu lado. Quase nada de útil aconteceu. Serviu apenas para que ficassem marcados, identificados como inimigos e perseguidos onde quer que fossem, embora Aldo já estivesse marcado desde sua partida, ainda no Rio de Janeiro, onde já havia passado pelo tratamento de choque da policia política e dos grupos especializados em tortura. Para Aldo, ir para o mato era uma alternativa para a clandestinidade urbana.

Se voltássemos àquele boteco veríamos que foi lá que a decisão foi sacramentada. A vida ainda era uma brincadeira para Aldo e João, ainda não estavam tão comprometidos assim, nem marcados pela repressão. Poderiam ter desviado o curso de suas vidas para qualquer lado. Mas foi lá que ficou implicitamente decidido que rumariam direto para o desastre. Iriam na aventura somente porque ficariam sem ter onde morar, estavam desempregados, e sem perspectiva de vida?

***

Tomando café com leite e vendo o povo se dirigir ordenadamente para o trabalho.

***

Quando Brasília foi inaugurada, alguns anos antes, havia a expectativa de que dali seria construído o futuro dourado do Brasil. Aquela geração cresceu ouvindo isso. Depois vieram os milicos e a nova cidade passou a ser a capital da ditadura. De seus frios edifícios ministeriais emanavam as ordens e os tentáculos que dominavam o país. Naquelas salas os ministros governavam de costas para o país. Manda quem pode, obedece quem tem medo. Quando veio a ditadura, já estavam suficientemente grandes para renunciar a idéia do país brilhante e confiante, a ensinar ao mundo a forma de viver do berço esplendido, do florão da América, do celeiro do mundo, do país do futuro que não chega nunca, e do mais uma vez a Europa se curva. Agora quem se curva somos nós, se curva e fica de quatro, como sempre ficamos. Parecia que íamos nos levantar, e caminhar com nossas próprias pernas, mostrar ao mundo que é possível viver com honra e dignidade. Aquela geração estava pronta para isso. Não poderia renunciar a esse sonho. Só porque alguns milicos trairam os seus ideais do passado de tenentes. Quem seriam os carcomidos de hoje? Os vendilhões da pátria, os que tinham contas numeradas na Suíça, prontos para fugir quando o país fizesse a revolução verdadeira? Vieram fazer o Brasil, e fizeram mesmo. Com roubos, rapinagem, violência contra o povo trabalhador. Manda quem pode. Manda quem tem o fuzil, armado e pronto para atirar. Esse é o nosso acordo, o nosso contrato, a nossa constituição. Agora vamos pegar o fuzil; vamos atirar; vamos inverter o jogo. Essa é a hora.

Muitas vezes me deparei com esses momentos. Em que a vida parece dar uma virada, em que num momento estás em outra realidade. Num piscar de olhos, num mundo paralelo em tudo diferente. É o salto. O salto qualitativo. O salto mortal. O decifra-me ou devoro-te. Não queres ver, mas uma decisão foi tomada. Querendo ou não. Sabendo ou não. Consciente ou não. Quem muda de cidade muda de destino. Quem muda de continente, muda tudo, todas as possibilidades, todos os caminhos do possível ao impossível, do real ao imaginário. Se prestares atenção poderás perceber o momento da decisão. Partir. Para o meio do mato. É mais do que uma atitude como atravessar a rua para comprar o jornal. Como pegar no pesado, assentar tijolos, virar concreto pesado. Quem vive do pesado, berra por uma colher de chá, no lugar de uma colher de pedreiro. Um pedaço de aço triangular que acaba por levantar um prédio. Quanto movimento, quanta força de músculos. Cada pedrinha foi movida por alguém. Um desconhecido. Um sujeito cheio de paciência. Cada pequeno grão de trigo. Uma trabalheira solitária e silenciosa. Sem o estardalhaço do Juscelino que diz para todo o mundo que foi ele quem construiu Brasília. O dinheiro era dele? Foi ele quem carregou os tijolos? Foi ele quem fez os desenhos e os cálculos? Uma pirâmide moderna, eu vos digo. Os carregadores de pedras somos nós. Nós pagamos as contas. Nós carregamos os tijolos. Nós viramos o concreto.

***

Tomar uma cachaça, de manhã. Energia fácil e rápida. Chega a tontear, quando bate na cabeça. Eta povinho ignorante. Costume é costume. Quem sou eu para criticar?

Um pedreiro nordestino, o Zé, conta suas desventuras, sentado na mesa, com Aldo e João:: “vestí minha roupa nova e limpa, no domingo. Passei na venda, à caminho da estação. Ali mesmo começou a bebedeira. Parece que o povo gosta de ver o vento entortando as pessoas na rua. Jogando no chão. Todos riem. E dizem: “Seu José não conseguiu chegar na igreja... São oito biroscas até chegar lá. Na terceira já estava bebum. É seu José. Vamos levar ele para casa”. Ai, o povinho é bom...”. Seu José, sim, tinha construído Brasília. Com uma empreiteira de Minas. Aldo apostava que quando terminou a obra ele foi despedido; com uma mão na frente e outra atrás. Em Brasília a vida era cara. Assentar tijolos não rende tanto assim.

- Esse não serve para soldado. É um liquidado na vida.

Suas mãos calejadas, sua cara enrugada, seus neurônios alcoolizados. Sobrevida indeterminada mas com certeza curta. Não resistirá à campanha. Muxoxo e boquinha de desprezo.

Já João gostou do velho.

-Eí, seu José, vamos tomar uma caracu com ovo. Pra levantar as forças. Capaz até de levantar outras coisas!

- Caracu não, que é muito doce. Traz uma barriguda. Mas levanta não, meu filho. Do jeito que estou, o amigo não levanta mais: ele só suspira. Bota a cabeça pra cima, faz ah!, e se deita de novo.

José Moisés, o Zé, estava imóvel na cadeira. Às oito e trinta, um servente da obra veio chamar. Às dez e dez voltaram a chamar. Às onze horas vieram dizer que ele não precisava mais ir.

- O homem disse para você ir direto ao caixa fazer as tuas contas. Mas só no sábado.

- Pode dizer que o homem aqui sou eu - riu com a bravata, mas não conseguiu descolar os pés do chão.

Uma roupinha surrada havia ficado no barracão. Vieram trazer as suas roupas de batente.

O português do bar já vinha com uma lista enorme de doses de cachaça, cervejas, ovos de codorna, ovos de casca azul e vermelha, língua de vaca, costelinha, além das médias e das torradas canoa iniciais. A marmita permanecia intocada sobre a mesa, envolta em um papel pardo grosso. Aldo, que espartanamente nada bebia, exceto no dia da vitória, tinha ido embora. Ficou de voltar depois. E de fato voltou com dinheiro, para resgatar João e o velho Zé. Nessa altura, a conta, já havia crescido muito.

- Vou pegar uns duzentos mirréis no sábado. Pode pendurar aí no teu prego.

Conheço esses portugueses. Vem direto do campo de Portugal para o Rio de Janeiro. Nunca foram a Lisboa. Vêm fugidos da ditadura do Salazar, que quer mandar os jovens para as guerras coloniais na África. Chegam aqui e elogiam Salazar. Aquilo é que é governo, dizem. Esses são diferentes dos fidalgos. Pegam no pesado. Carregam botijões de gás, carregam sacos de batatas na feira, cachos de banana nos mercados, cozinham, lavam o chão e os banheiros, trabalham duro dentro do bar, quinze horas por dia, durante trinta e tantos anos.

- Seu Manoel é um gajo honrado e trabalhador. Paga o que deves.

Colocar seu José no rumo de casa era fácil. Saber se ele chegaria lá era impossível. João o levou até a boca do trem, na Central. Na hora H viu que teria de ir junto. Ou então levá-lo de volta para Ipanema.

Odeio esses bêbados chatos. Esses caras infelizes que querem se entorpecer. Ver o mundo através de uma janela embaçada, de vidros sujos e melados. Você bota a sua autocrítica para cochilar e pode admitir fazer qualquer bobagem. Depois nada precisa ser explicado. A embriagues justifica qualquer coisa. Irresponsabilidade jurídica. A pior coisa que existe é bêbado chato. Ele te ofende e tens que engolir. Bater em bêbado é pecado. Ele está num estado de impunidade.

- Você trouxe esse bebum para cá? - disse Aldo, a voz denunciava uma mistura de surpresa e de indignação.

João depositou-o no sofá da sala.

- É amigo. Um trabalhador.

Solidariedade de classe. João se via também como um traste inútil, um futuro de zoeira nos ouvidos e cara enfiada no cimento quente das calçadas.

- Podíamos levá-lo junto, para a Bolívia.

- Levá-lo? Você ficou maluco, rapaz? Um velho bêbado que você nem sabe quem é? E se fôr da policia?

Aldo sabia que João era meio leso. Mas não podia imaginar a que ponto chegava a sua irresponsabilidade. Quando fazia os seus longos discursos achava que estava se fazendo entender. Agora via que era impossível garantir qualquer entendimento.

O velho roncava. João deu uma olhada em seu rosto. Não tinha cara de policial. Barba de três dias, com a maioria dos fios branca. Roupa surrada, sapatos velhos e sem brilho. Mãos grossas, com a pele rachada em vários pontos. A carteira de trabalho estava no bolso da camisa, mas ninguém ousou pegar.

- Policial ele não é. É pedreiro, trabalha na obra aí em frente. Foi despedido hoje.

- É. Mas trata de se livrar dele. Daqui à pouco as meninas vão chegar e vão nos crivar de esporros. Não é policial, mas pode ser um cagoete traíra.

***

A sua cabeça estava repleta com toda a sorte de policiais, agentes secretos, alcagüetes, provocadores. Os donos do poder tinham uma coleção completa desses seres vis, prontos para serem acionados e levar os revolucionários às mais difíceis situações. Ulianov havia alertado, em sua mensagem aos que iriam nascer. A polícia costuma deixar esses grupelhos crescerem amalgamando aqueles indivíduos novos, cheirando a leite, que tem uma pontinha que seja de insatisfação; permite o crescimento do chamado corpo de delito, o corpo de provas palpável, que incha com o fermento da teoria revolucionaria. O núcleo da insatisfação cresce como um furúnculo. No ponto certo, um espião é infiltrado no grupo; ou, o que é pior, um dos seus componentes é aliciado pela policia e o transforma em tudo o que quiser: de espião a futura testemunha. E drena o pus do furúnculo. Bravos rapazes vão para a cadeia. Alguns são mortos acidentalmente no processo do aprisionamento. Outros são julgados e condenados exemplarmente. A forca ou o fuzilamento. Com sorte, apenas o banimento. Sibéria. O irmão mais velho de Ulianov, Alexandre, caiu numa dessas armadilhas. Jovem, com dezenove anos, estudante, corajoso e inteligente. Queriam fazer um atentado contra o czar. Foi executado. Virou um futuro herói. Ulianov, se transformou no futuro Lênin. Por isso ele tinha raiva desses grupelhos de jovens estudantes inexperientes. Para ele a revolução é tarefa para profissionais. Gente experimentada nas manipulações da repressão.

Aldo tinha a cabeça cheia desses conceitos, dessas premissas pretensamente revolucionarias, ditadas pelo medo e pela insegurança. Provocadores que fazem o movimento estourar antes do tempo, ainda imaturo, e levam muitas pessoas à prisão e à morte. Gente que grita fogo na saída de estádios e leva a multidão a correr e se atropelar, provocando muitas mortes.

Seu Zé era, no entanto inocente. Apenas um trabalhador. E a repressão brasileira dificilmente agiria com a finura investigadora de uma Scotland Yard, de uma Suretê, de uma KGB ... Nossa policia sabia usar muito bem o cacete, a porrada, o choque elétrico. Nisso era insuperável. Verdadeiros criadores de moderna tecnologia. Consta que o pau-de-arara é invento brasileiro. Como no avião, a primazia do invento é contestada. Outros dizem que foram os franceses que criaram o pau-de-arara, na Argélia. O invento propicia uma posição ideal para o interrogatório. O suspeito fica com as partes sensíveis expostas, imobilizado e desmoralizado. Amarram-se os braços por detrás das pernas; passa-se um pau ou uma barra no espaço formado entre os braços e as pernas e pendura-se o pau ou barra num apoio qualquer que pode ser uma pilha de pneus de cada lado, ou cavaletes especialmente construídos. O indivíduo fica suspenso, com as partes intimas expostas e com as plantas dos pés em boa posição para apanhar. Tem que sustentar a cabeça com a força dos músculos do pescoço, ou então se abandona como um frango depenado.

Aldo chegou a passar por isso antes mesmo de partir para a Bolívia. Haviam chegado a ele não se sabe como. Quantas horas ele ficou dependurado? Quantas horas ele ainda agüentaria? O que devo contar? O castigo era apenas o castigo. Provava que o criminoso anseia por ser punido. Diverte os algozes. Gente que trabalha por um salário, numa posição em que se sentem donos do mundo. Qualquer um passaria por aquele suplicio. Como Aldo passou. A dor é suportável. O medo e o desconhecimento é que são aterradoramente insuportáveis. O tempo deixa de existir. Todos os segundos são iguais. Somente o terror. A iminência da morte. O atordoamento. A consciência de si se esvaindo. E o excesso de estímulo acaba por insensibilizar. Os profissionais da tortura sabiam disso. Então antes de aumentar a intensidade do choque, ou bater com mais força, diminuíam um pouco o estímulo, para que o corpo não conseguisse absorver e se adaptar à dor. Ou então, mudavam drasticamente a forma de produção da dor. Aldo não se importava mais em morrer ali. Não se sentia mais o personagem de um filme. Ninguém estava ali para testemunhar a sua morte. Exceto aquele bando de hienas famintas. Fora caçado. Era uma presa de destino incerto. Entraria na lista dos desaparecidos. Dariam um fim no seu corpo. Sua família passaria décadas esperando o seu retorno. Inutilmente. Mas a rigor, não havia nada contra ele. Fora uma prisão preventiva, para assustar. A nossa policia não sabe trabalhar. Não teve paciência de esperar o crescimento do corpo de delito. Então não havia nada a provar. Mas quem precisa de provas? Vamos é baixar o cacete. Terminaram por soltá-lo. Em vez de assustá-lo, confirmaram a sua determinação de partir.

***

Seu Zé roncava sobre o sofá. No momento aquele era o corpo que estava incomodando, ao qual precisavam dar um fim. Estava chegando a hora do telejornal, em que todas as pessoas se encontravam na sala. Arrumaram um colchonete, e removeram o corpo para dentro da banheira.

O resto é rotina. Violete e Maria Antonia chegaram juntas. Graças a Deus ali as mulheres trabalhavam. Eram práticas e objetivas. Os homens conforme o lugar-comum eram infantis e sonhadores.

- Que idéia é essa de trazer um estranho para dentro de casa? - disse Violete - quero usar o banheiro.

- A gente não fala tanto em solidariedade? Está na hora de praticar um pouco.

- Se dermos cobertura para todo o vagabundo que encontrarmos vamos acabar dormindo em pé.

- Leva ele embora. Leva ele.

Estava difícil de acordar o velho. Olhando-o assim parecia inofensivo. As meninas usaram o banheiro com o velho roncando ao lado. Coisa triste, um ser humano bêbado, uma máquina avariada, intoxicada, o corpo lutando para eliminar todas aquelas substâncias venenosas.

O jornal desfiava as noticias. De Brasília, o general presidente, com seu bigodinho e seus óculos escuros era figura obrigatória. Lançava um estilo de homem bem sucedido. Tinha uma cara latina que combinava bem com os seus irmãos ditadores dos países vizinhos. Bem diferente do antecessor, troncudo como um orangotango. Troncudo, mal humorado e metido a intelectual, com pose de democrata, defensor da liberdade, libertador da Europa, bravo expedicionário na guerra. Não transigirei um milímetro. Prometeu eleições livres e nos presenteou com uma ditadura que durou duas décadas. O atual ditador era mais brasileiro: dizia um monte de besteiras todos os dias. Não te falei, Iolanda, que um dia eu te trazia à França?

Violete, no banheiro levou um susto, quando o velho levantou a cabeça e a encarou, com os olhos bem abertos. Pegou-a sentada na privada com a calcinha no meio das pernas. Não gritou mas sentiu o sangue gelar. Depois, a cabeça abaixou e o velho voltou a roncar.

- Eu não fico mais aqui com ele. Leva ele embora agora - disse enfaticamente.

Aldo desceu e foi até a obra; tudo escuro. Bateu no tapume. O vigia deve estar por aí.

- O seu José está lá em casa. Está bêbado. Está dormindo. Não vai ter problema. Vamos deixar ele dormindo em cima daquelas tábuas. Está bem? Está bem.

Pronto. Trás ele. Segura pelas pernas. Chama o elevador. Vai. Vai. Pronto, deixa ele aí.

Lugar escuro e fedido. Tábuas de formas de concreto, cheias de pregos. Não tem perigo: bêbado sabe se proteger. Lugar escuro e cheio de ratos. Concreto bruto. Tijolos. Areia.

Pronto. Tudo resolvido. Nos livramos dele. Velhinho chato. O de bêbado não tem dono. Pode ser de qualquer um, se tem uma coisa que eu odeio é bafo de cachaça e bêbado chato, vontade de enfiar a mão.

Aldo fez isso. Não sabia que um pouco mais a frente, quando estivesse fugindo e se escondendo, seu José que lhe daria abrigo. Foi assim. Fugindo qualquer lugar serve. Em Sete Foiçadas, nos cafundós da baixada, onde seu José tinha seu barraco. Pedreiro mora em barraco. Não tem disposição para terminar a casa que é sua. Nem dinheiro pra comprar o material de acabamento. Os tijolos ficam sempre nus. As telhas de amianto ficam sempre soltas com pedras em cima para não saírem voando. Casa de ferreiro. Ruas de terra. Terreiro onde cresce o carrapicho espinhudo e pés altos de mamona. Ali ficou um bom tempo, concentrando forças, antes de partir para a Bolívia.

Quando o dia clareou eles estavam numa estradinha de terra batida, com os cachorros latindo ao longe. Haviam caminhado o dia inteiro e boa parte da noite, carregando as tralhas nas costas. Aonde quer que passassem, chamavam muita atenção. Naquele lugar, nada de novo acontecia. A paisagem monótona de capineiras, cafezais, pequenas casas com os tijolos a mostra e fumaça de fogões de lenha, era extremamente sensível a qualquer alteração. De forma que homens barbudos carregando mochilas, com toucas de lã colorida e óculos escuros, era motivo de muita curiosidade. Até os insetos ficavam silenciosos quando eles passavam. As cigarras paravam de cantar. E os sapos, de coaxar.

Um preto velho, seu Nenzinho, os havia acolhido em sua casa de pau-a-pique. A casa recendia a fumaça e gordura escura acumulada nas telhas e esteios. Seu Nenzinho também cheirava a fumaça e suor. Estavam descansando no terreiro enquanto a água para o arroz fervia. As formigas em trilhas por entre as pessoas, carregavam migalhas de pão e pedacinhos de milho, sem que ninguém se incomodasse com elas. Seu Nenzinho se servia de uma garrafa com cachaça, tampada com sabugo de milho. Ninguém aceitara, nesse primeiro dia, beber com ele. Renunciavam à energia rápida do álcool. Queriam o arroz, garantia de força e clareza de espirito.

“Sim. Uns barbudos haviam passado por ali. Não sabia o que estavam fazendo. Achei que eram caçadores de rã. É fácil pegar rãs nos córregos, à noite. Os vizinhos reclamaram. Chegaram a dar tiros de advertência. Não entendia uma palavra do que falavam. Serão ciganos? Barbudos e sujos. De fato, havia até mulheres entre eles. Duas ou três magricelas de calças compridas e panos enrolados na cabeça. Há muitos dias, muitos dias, talvez meses. Todos à pé. Todos peões. Estavam muito perdidos. Eram dezoito ou vinte. não contei. Achei que iam me roubar. Ou matar os animais para comer. Uma cabra. Um leitão. Um cachorro. Mas só queriam água. E um canto para o pouso. Tinham muitas facas. Algumas carabinas. Feridos? Nada sério. Todos inteiros, só machucados e aranhões. Magros e cansados”.

“Aqui em casa se fala pouco. Moro só. Sem passarinho e papagaio. Só o cachorro é que late. E faz barulho. Quando vê um bicho. Aquela noite o cachorro ficou brabinho. Por conta dos barbudos, dos ciganos barbudos, dos sem terra que saíram do mato. Caçando rãs, eu disse. Quem anda de noite pelo mato está caçando alguma coisa. O cachorro ficou brabinho feito galo de briga. Cachorro magro e pequeno. Foi se esconder quando viu um conjunto de muitas sombras estourando de dentro do mato. Cachorro é assim: sabe se preservar de bicho estranho. Os homens cruzaram o terreiro de lá pra cá, à vontade, e nada do cachorro para tomar conta, nem latir ele latia. Olhei pela fresta da janela e nada do cachorro. Eu queria ir pro mato também. Mas estava cercado. Tinha que abrir a porta. Levei uma vela acesa como sinal, para não assustar. De surpresa podia tomar um tiro. Abri a porta e saí. Uma lufada de vento apagou a vela na hora. E foi o cachorro que me salvou. Quando me viu, ou me cheirou, porque cachorro enxerga mal no de noite, saiu do meio do mato e veio se deitar nos meus pés na varanda. Todos viram. Era o dono da casa. Eu. Quem vai atirar num homem que tem um cachorro tão bom?”

***

Queríamos nada. Queríamos pouso e repouso. E fugir e escapar. Cair num sumidouro qualquer. E desaparecer. Um campo de mato ralo, uma capoeira com espinhos e facas afiadas, insetos peçonhentos, carrapatos sugadores. Como peixes fora d’água, agitando o capim e fazendo muita algazarra. Queríamos era sumir, desfazer, diluir em alguma grande cidade. E passar o resto da vida de forma ignorada. Balas zuniam como mosquitos, do lado das orelhas. Pedacinhos de metal, cheios de energia, com endereço certo. Balas perseguindo cérebros e idéias. O Che já havia caído. E o grupo, em pandemônio se desfez. O que estava acontecendo? Táticas, mobilidade, alianças, nada resiste à traição. Andar no meio do mato, perseguidos, esbarrando em espinhos, em cipós que se enrolam no corpo, corridos, querendo carregar apenas a própria vida. Correr, de mãos vazias, com a roupa em frangalhos. Onde estaria a fronteira? Seria algum largo rio impossível de vadear? Agora estávamos ali, de mãos vazias, correndo noite e dia pelos matos, a procura de abrigo. Deixamos para trás o orgulho e pedaços de roupa nos tocos de pau. Sangue, sangueira por todos os lados, sangue preto e duro que faz da roupa uma segunda pele. Junto de mim, meia dúzia de companheiros, tudo o que sobrou; não sabia onde ficaram os outros; correram para onde? Já tinham o Che, calculei que nos deixariam ir. Um líder é quem sabe o que fazer; se é para correr posso ir sozinho. De início corríamos, agora nos arrastamos; depois caímos, dormimos, para acordar com a cara cheia de formigas; queriam o nosso sangue. Amanhã pensamos, amanhã decidimos.

***

Uns olhos muito brancos, um toco de vela. Um vira-lata deitado.

- Hei, velho, isso aqui é o Brasil?

Brasil? Já ouvira a palavra.

- Não, é Ribeiro da Conceição.

- Serve, disse o chefe.

Os homens se deixaram quedar no chão como se estivessem no famoso berço esplendido, no florão da América, naquele chão pobre de terra batida, socada, escalavrada por muitos pés de homens e de animais.

Afinal, o que queriam? Comida? Como vou arrumar comida para todas essas pessoas, se eu mesmo estou nos beirais da fome?

Alguns homens passaram a se lavar na mina d’água, um fiozinho de água que se derramava perenemente entre as pedras. Tiraram a roupa grossa de sujeira. Ficaram seminus, abençoando a aguinha fria que não pára de escorrer.

Nenzinho acendeu o fogo, abanando nervosamente as brasas dormidas; uma fumaça leve encheu o terreiro. Fez café com rapadura. Angu com couve. Broa de milho na panela de ferro fundido. Fez galinha com quiabo. Lambari frito. Sopa de cabeça de cascudo. Fez bolo de aipim, abóbora com leite, amendoim torrado. Suas cachaças foram todas tomadas. Seu fubá foi todo devorado. Suas galinhas desapareceram. Aquilo virou uma festa. Homens contando casos. Homens se lamentado. Homens chorando. Faltava um sanfoneiro e umas mulheres, para esmagar um pouco mais o chão do terreiro numas danças. O cachorro se fez amigo de todos e vivia abanando o rabinho por todos os lados, ganhando ossos de galinha ainda com bastante carne.

“Esses homens ficaram umas duas semanas. Muito cansados, os coitados. Não, esse é João, um pobre coitado, trabalha comigo. Se lavaram. Fizeram as barbas. Improvisaram roupas com os panos sujos que trouxeram no corpo. Enterraram as armas, só eu sei onde, mas eu mostro, eu mostro. Comeram tudo que eu tinha. Tive que esconder ovos chocos e grãos de milho para servir de semente. Por isso outras galinhas brotaram. Milho só no ano que vem. Estou me mantendo com um restinho de mandioca que ainda estava enterrada. E com caruru, com serralha, com taioba, verduras da terra que nascem sem ninguém plantar, alguma caça, e peixes do córrego. Cachaça? Restaram duas garrafas. Agora só no ano que vem”.

“Essas terras são de alguém da cidade. Não conheço. Nunca vi. Moro aqui há mais de cinqüenta anos e nunca vi o dono dessas terras. Mas deve ser alguém que tem um papel cheio de carimbos, estampilhas, selos, brasões, lacres e letras. Alguém bom que não se incomoda comigo. Lavro essas terras. Colho. Faço fubá. Faço cachaça. Tenho fumo plantado e todo o ano tenho alguns charutos e fumo miúdo picado para enrolar em palha de milho, ou para queimar em cachimbo de sabugo de milho e talo de bambu. Talo de mamona também serve. Cigarro não, porque não tenho o papel. E nem vou comprar.”

“Vou vivendo. Como posso. Com o que posso. Há muito tempo não passava ninguém por aqui. Aqueles barbudos, já foi há muito tempo. Talvez meses. Agora vocês três, que não tem barbas, mas também estão armados. Está certo, se voltarem mando recado ao delegado. Comida? Tem muito pouco. Mas acho que dá pra todos”.

Não havia como ficar deprimido, ali no meio do mato, porque o dia era uma só depressão. Nenhuma grande emoção. Nem telejornal. Nem rádio. João não tinha mais um sofá para deixar ficar o esqueleto. Mas tinha uma boa rede na varanda. Como era estranho ouvi-lo cantando o Barquinho ali no meio do mato. Dedilhava o violão o dia inteiro, sentado na rede. O velho ouvia aquela musiquinha cheia de acordes rápidos e achava bonito. Pedia outras músicas que João não conhecia. Mas o Barquinho era sempre ouvido, entre mugidos, cacarejos e cantos de cigarra. De tarde, um mormaço forte subia do chão, e uma súbita tempestade se armava, roncando trovões e soprando ventos inacreditáveis, que vergavam e balançavam coqueiros e varriam o matagal em rajadas. Após a descarga, o ar leve e fresco, a terra lavada, o azul pálido do céu, o sol ainda forte, indicavam que a vida é possível.

João ficou ali por muito tempo. Quando todos já haviam partido à procura de seus destinos, ele preferiu ficar escondido. No mato, onde a possibilidade de contato social era mínima. Um recanto seguro, um lugar onde a necessidade de manter as coisas arrumadas era nula. Era o que achava, mas estava enganado. Mesmo ali, se nada for feito, a natureza vai retomando o lugar da mão dos homens. O velho dizia: “Essa plantinha miúda é um sombreiro, uma árvore enorme; se não passarmos a enxada aqui, ela cresce e pode derrubar a casa...”. João aprendeu a serventia de varrer o terreiro com uma vassoura montada com pontas finas de bambu, para deslocar as pequeninas sementes invisíveis e impedi-las de se fixar.

Arrancar o próprio sustento do chão, como um animal, pode ser muito cansativo; mas também pode fazer os dias passarem sem que nos demos conta. ; João trabalhava, mas os velhos hábitos estão sempre presentes. Pensava o tempo todo, analisava, raciocinava, remoía os pensamentos e sentimentos, sem perceber muito bem o que estava fazendo. O ato de comprar pode ser um resquício da atividade de caça e coleta, da qual os homens dependeram durante tanto tempo. ( e continuam dependendo, homens como Nenzinho, que se viram como podem); No lugar de arcos e flechas, de armadilhas, de paus para colher frutos silvestres ou desenterrar raízes temos que ter dinheiro. As mulheres, tradicionalmente coletadoras, são compradoras natas; pesquisam lojas e prateleiras procurando o que levar para casa. Os homens, caçadores e pescadores, gostam de emoções fortes. Alguns se tornam ladrões ou assaltantes; outros, empresários, políticos, religiosos, que passam a vida armando arapucas e redes para tomar o dinheiro de incautos. Quando a coisa se desequilibra, organizam-se grandes expedições, que são as guerras.

João viu que a sociedade dos homens continuava dimensionada como se vivessem na selva; era, porém, um selva simbólica, de significados abstratos, em que as interdições eram impostas às crianças pelos pais, pela escola, e se tudo isso não funcionasse, pela policia e pelas penitenciarias.

Ali, no entanto, os símbolos eram concretos. Uma cascavel emite seu chocalhar para que ninguém ouse se aproximar. Tens que reconhecer isso. Um tatu se mete num buraco para se proteger. E ali fica vulnerável ao homem. Se queres broas de milho tens que plantar o milho. Se queres fumar, tens que plantar o tabaco. E plantar não é tão simples. O primeiro homem que plantou, estava provavelmente enterrando grãos para esconder dos outros, egoisticamente, para comer sozinho mais tarde. Os grãos brotaram e ele fez uma revolução tecnológica acidental. Plantar não é tão simples hoje em dia. Tens que limpar e adubar o terreno, tens que ter as mudas ou as sementes. Tens que proteger as plantas, pois o mundo todo conspira contra a sua presença ali. As espécies que o homem usa como alimento não são mais as originais que a natureza criou. Elas não se mantém se abandonadas à própria sorte. Apenas o homem as pode proteger.

Na mata, o dinheiro não servia para nada. No máximo, para acender fogueiras. A moeda de troca da mata é o tempo, o conhecimento, a intenção e a concentração no que se está fazendo. Reconhecer o que é útil é fundamental. Já o inútil, pode ser dividido em dois: o simplesmente inútil, e o inútil que faz mal. Ambos podem ser até bonitos e agradáveis; os desenhos e cores de uma cobra são bonitos enquanto desenhos; porem, a associação dessas figuras com a cobra provoca imediatamente um sobressalto; o coração bate mais forte e mais rápido; e temos que manter uma certa distancia. A cobra é o inútil que faz mal, se pisares nela. Pode passar a ser bom, se souberes prepará-la cozida como os chineses, usando ainda o seu couro para fazer um enfeite ou um sapato. Nesse caso, ela passa a categoria de útil, desde que exista a intenção de usá-la. Uma árvore espinhenta é inútil; mas se ela evitar a aproximação de pessoas ou animais indesejáveis, ela passa a ser útil. Uma pedra no chão é inútil; mas pode se tornar útil, como arma ou ser usada numa construção. As coisas apenas estão. Os homens é que mudam a sua natureza ao se relacionarem com elas. O útil é sempre bom? Depende de quem usa e de quem é usado. Uma arma pode ser útil. E boa. Mas para quem leva o tiro, ela não tem nada de bom. Muito menos de útil. A não ser nos suicídios.

Trabalhar na roça é possível. É um trabalho metódico, repetitivo e lento. Um verdadeiro exercício de paciência. Só não se pode esperar que o corpo não reclame. Dores lombares, dores nas articulações, machucados, arranhados, espinhos, farpas, terra voando para os pés. O certo é trabalhar como se fosse uma máquina, com o movimento perfeito, com a cabeça vazia, sem pensar em acabar logo. Porque a coisa é lenta e não adianta apressar as enxadadas. Serve só para cansar mais rápido. Para João, impossível. Dava duas enxadadas e cansava. Sua cabeça não parava de ruminar os acontecimentos. Se existe um sentimento principal presente em cada pessoa, o de João era o ressentimento. Ele achava que não valia nada. E tudo servia para demonstrar isso para ele. Sua enxada não funcionava; não conseguia arrancar o mato. Metia a enxada no chão com vontade, a ponto de cravá-la na terra. Não, não é assim; o trabalho com a enxada é até suave. O machado não. É pesado. Para evitar o tranco tens que aliviar a mão no justo momento em que a lâmina toca a madeira. Senão ficas com as mãos arrebentadas. Terceira lei de Newton. Lembras João? Será que Abraham Lincoln conhecia a terceira lei de Newton? Ele, um profundo conhecedor de leis. Pequenas habilidades dos trabalhadores manuais. Quando plantares, tens que rezar. Quando regares, tens que rezar, senão a planta não cresce. Não que a reza tenha efeitos mágicos. É porque quem reza faz bem feito, prestando atenção. Bambu tem que ser cortado na lua minguante, senão fica bichado. Semear na lua cheia é bom. Terra que tem formigueiro, não tem vulcão. A formiga fura o chão e os gases escapam. As cobras tiram o seu veneno dos sapos. Cuidado que elas gostam de mamar o leite das vacas e das mulheres. Numa ocasião, tinha uma criança que não engordava de jeito nenhum; Descobriram que uma jararaca viciada vinha, de noite, subia na cama, tirava o neném do peito da mãe e mamava em seu lugar. A noite todinha. Para evitar que a criança chorasse, botava o ponta do rabo na sua boca, como se fosse chupeta. O pai descobriu, e na noite seguinte ficou esperando, no buraco da parede de pau-a-pique. Quando a cobra botou a cabeça pra dentro da casa, o moço esmagou com o pau do pilão. Pronto, o neném começou a engordar de novo.

- Epa seu Nenzinho, essa foi forte - João até então calado gracejou - Fico pensando que essa sem vergonha de cobra era até capaz de mamar nos peitinhos da moça e botar o rabo no meio das pernas dela, se o neném não estivesse na cama. Cobrinha danada!

Esse mundo, como qualquer outro era composto de tarefas rotineiras e de muita paciência. Até o milho crescer... Até a cebola crescer, no mínimo noventa dias de espera, se tudo der certo.

As chuvas pesadas do verão costumam prejudicar muito o trabalho. Muita chuva sufoca a planta, ou então carrega tudo em enxurradas, provocando erosão; as gotas grandes ao caírem chegam a machucar. Quando batem no solo nu, recém lavrado, sua energia separa a areia da argila. Fica uma água barrenta que escorre, e uma areia fina que corre pros rios e os entope. Esse é o material de aluvião, a areia lavada das obras, que pode conter minúsculas partículas de ouro. Essa areia e esse ouro ali não valem nada: são difíceis de pegar.

No verão de muitas águas, o que cresce sem freios são os capins e as ervas nativas. Crescem ocupando os espaços e tornando o trânsito pelos campos difícil e lento. O colonião, veio com os portugueses da África. É o capim que alimenta as manadas selvagens de ruminantes africanos: zebras, antílopes, impalas. Ruminantes que vão alimentar tigres e leões. Mas aqui cresce descontroladamente. E toma conta de qualquer espaço livre onde bata um pouco de sol . Ele brota por sementes carregadas pelo vento, e também prolongamentos de suas raizes-rizomas, ocupam o terreno tomando-o das demais plantas. O braquiária faz a mesma coisa, só que suas touceiras são mais baixas e suas folhas não cortam como navalha. São gramíneas, como o arroz; suas sementes poderiam ser comidas se não fossem tão pequenas. Os bambus são também gramíneas, só que de talo grosso e resistente. E material para cerca e para construções. Seus brotos tratados adequadamente e bem preparados são comestíveis.

Os homens como qualquer bando de animais, passam os dias procurando coisas para comer. Inventam e desinventam. Passam horas limpando e preparando o de comer. Transformam uma carcaça nojenta num apetitoso picadinho com bolinhos de aipim. E comem de tudo: bagos, órgãos, vísceras e entranhas de qualquer animal; comem ovos e ovas; raízes, folhas, frutos e sementes. São comedores universais, desde que a comida esteja limpa, cortada, cozida, temperada, arrumada em potes sobre uma mesa bonita. Come-se do cru ao cozido, do frito ao assado, do verde ao maduro e até ao podre, podrinho, com vermes andando, ou com mofo. Assim, porque passar fome? É preciso saber preparar, como Nenzinho que gostava da comida bem cozida e mole. Passava o milho no pilão, horas e horas de exercício ritmado, até virar um fubá fino. Peneirava. Dava o grosso para os animais e ficava com o pó amarelo, finíssimo para preparar os seus angus e polentas. Não tinha dentes. Sua boca era um grande buraco rosado. Para ele era difícil comer um assado de carne. Ficava só chupando a carne sem apertar muito para não doer as gengivas. Então, fazia a carne picada, cozida por muitas horas, no fogão de lenha. A carne era temperada com um pouco de gengibre e hortelã, o quer é bom para disfarçar o gosto esquisito que a carne de caça tem; ficava extremamente macia e se desfazia na boca, o que é bem apropriado para alguém que é banguela. A taioba refogada também fica macia. O angu não precisa nem mastigar, apenas deixá-lo na boca algum tempo esperando ensalivar. O arroz doce, os mingaus eram também preparados e, é claro, as sopas.

Plantar, caçar, pescar, colher, preparar, comer, dormir. Uma vida em ciclos discretos, como o dia se transforma em noite, e vice-versa por toda eternidade. A vida era isso. E nada mais. Nenhuma grande emoção, a não ser quando a angústia das pessoas provoca perturbações da rotina apenas para se divertir. Festas populares, santos milagrosos, carnaval. Nada disso funcionava ali. A pouca cachaça que rolava, não era capaz de alterar muito as sensações.

De noite acendiam uma fogueira no terreiro. O céu estrelado, a lua cheia, sempre foram, desde o inicio dos tempos, os companheiros dos homens que estão no limite do entendimento e do desespero. As histórias que surgem nessas ocasiões refletem essas emoções. Muitas vezes o sobrenatural pula do escuro da noite em direção a luz do fogo e vem também nos fazer companhia. A fogueira emite estalidos e solta fagulhas em direção ao espaço negro do céu que sobem, sobem muito ultrapassando as copas das arvores até desaparecer. Afinal quem entende o porquê da lua e do céu? Sabemos apenas que eles estão lá. Se a lua cheia é capaz de fazer as marés subirem, o que não fará com os nossos fluidos corporais, com o nosso sangue, com nossos pensamentos e sentimentos?

Nenzinho coçou a garganta e disse com todas as letras que havia visto o saci. Saci? João confundia um pouco o saci-pererê com o negrinho do pastoreio, historias que aprendera na escola.

“Não, saci, um moleque preto, atrevido que tem uma perna só e vive por aí, pulando e pitando um pitinho de sabugo de milho. O saci apareceu quando eu estava sem sono e saí para fumar uma palhinha ao pé da velha goiabeira, na capoeira rala. O saci saiu do nada, de um buraco no meio do chão. E disse:

- Dos homes, ocê nem é o meu perferido. Mas ocê qui está acordado. E é com ocê qui vou falar.

E ele me contou todos os mistérios do mundo, em sua língua arrevesada. Fiquei tempo todinho fingindo entender. Mas entender, não entendi não... Vi o saci. Ele é do jeito que todo o mundo diz que ele é. Ficou mamulengando umas prosas engraçadas, como se fosse uma criatura muito esperta e cheia de ciência. Mas, coitado, ele é só um saci... ; um sacizinho. E eu disse pra ele:

- Meior cê vortá pro buraco donde qui cê saiu, que minha paínha já tá acabando.

E fui dormir”.

Há bichos que são da noite; corujas, onças que rondam solertes, cobras que se deslocam vagarosamente a procura de sapos ou ratos. Mas a noite parece desgostar de espíritos e de animais que se escondem em cada canto da mata, coisinhas que estão por aí, com medo, querendo se defender. Coisinhas que não entendem o mundo. Que estão aí apenas procurando um peito amigo e protetor, gambás, tatus, doninhas, criaturas assustadas e sem majestade, que não tem vergonha de sentir medo e de fugir. Mas que quando podem são cruéis.

“Estava criando uma meia dúzia de frangos, que já estavam bem grandinhos. Uma manhã os encontrei mortos. Mortos, mas inteiros. Levantei a penugem do pescoço e vi dois pequenos furos. Gambá. Matou só para chupar o sangue. É assim: um bicho feio e sem graça como o gambá, se acha no direito de matar frangos. Só para chupar o sangue... É, mas gambá também se come. Já comi muitos. Voce só tem que cortar fora, com cuidado, as bolsas onde ele guarda o cheiro ruim de peido engarrafado, que fica perto do cú e dos sovacos lá dele. Cuidado para não estourar senão o gosto passa para a carne. Deixar em molho de vinha d’alho, para disfarçar o sabor forte que ele tem. É como qualquer caça. Tem que saber preparar. Depois é só comer. Com arroz ou angu, com uns goles de pinga. Chupar os seus ossinhos miúdos e dizer: da próxima vez toma mais cuidado. Isso é bom para todos os gambás. Os faz ficar mais espertos”.

Foi de Nem que ouviu pela primeira vez a historia do quilombo. O quilombo era parte de sua infância, historia contada por sua avó. Lugar de irmãos, de um grupo de ajuda. Diferente de uma tribo, porque admitia pessoas de qualquer tribo. Lugar de abrigo para qualquer pessoa que estivesse fugindo da escravidão, ou lutando por sua vida. Lugar onde todos trabalhavam conjuntamente e se ajudavam. Mesmo Nenzinho, quando se viu só e sem família, passou a procurá-lo, sem sucesso, deixando-se ficar, solitário, nesse lugar ermo, por falta de força nas pernas para continuar andando.

Havia encontrado muitos andarilhos na sua vida. Pessoas solitárias como ele, que comiam o chão com as pernas. Verdadeiros vagabundos e maltrapilhos, cujo trabalho é andar; motoristas de si mesmos. Andam como se estivessem capinando. Andam como se quisessem tocar com seus corpos toda a superfície da terra.

Seu Artêmio era um deles. Era branco, mas tinha a pele escurecida e manchada de sol. Tinha olhos azuis; usava óculos escuros para se proteger. Seus pés estavam envolvidos em trapos sujos. Encontrava abrigo com gente feito Nenzinho. Ali passava algumas semanas se recuperando da caminhada longa. Em troca trazia as novidades do mundo, fatos acontecidos há pelo menos três meses.

Ele nada estava procurando. Começou a andar por causa de uma briga por terras. Como Nenzinho, sua família ocupava umas terras há centenas de anos. Chegaram grileiros com documentos. Houve briga. Sua família foi fuzilada. Ele, pessoalmente tocaiou e matou muitos jagunços. Depois se embrenhou nos matos e começou a andar. A pé para não deixar muito rastro. A barba cresceu. A pele queimada escureceu e murchou. Os primeiros anos ele passou fugindo da morte. Depois, quando já tinha até esquecido o motivo daquelas andanças, ele parou perto de suas antigas terras. Encontrou os campos plantados e umas casinhas de tijolos. Reconheceu numa delas uma sua neta, agora crescida, ajuntada com o filho de um dos bandidos. Muitas crianças espalhadas pela casa. Pediu água e abrigo. Viu que a vida continuava como antes. Uma trabalheira para continuar trazendo crianças ao mundo. Como se essas almas tivessem que se salvar do outro mundo... Quando voltou a caminhar, descobriu que a sua motivação havia mudado. Agora não fugia mais da morte. Fugia é do local onde haveria de morrer.

- E esse local já existe. Um pedacinho de chão lá no fim do caminho. Afinal o destino não é importante. O que conta é a viagem.

Sair pelo mundo. Jogar o mundo para trás, com a força das pernas. Não há magia, nem destino, nem missão. Apenas um infindável caminhar; ou ficar parado e rodar com o globo.

Disse Artêmio:

“Neste mundo há três tipos de pessoas: tem quem fique esperando a morte chegar; tem os que vão ao encontro da morte; e os que acham que conseguem fugir dela... Eu achava que podia fugir dela. Então passei os últimos quinze anos andando. Até que descobri que a morte é uma sombra que segue a gente, junto com essa outra sombra que é o corpo, que é uma sombra sólida, mas que não é tão sólida assim, porque o corpo é só um ajuntamento de coisas, cheio de buracos. Coisas que ficam juntas por um tempo. É sombra porque não é luz. Quando chega a hora da morte, todas as sombras se encontram, e as coisas se desajuntam. E sobra o quê? Sobram nem os pensamentos”.

Neste momento João se lembrou do Che, e de todos aqueles que tombaram com ele. Se alguma coisa deles sobrou, ossos, crânios, eram como casquinhas de siri, ou cascas de conchas na areia da praia. Os pensamentos eram o ruído das ondas quebrando na praia. No final das contas todas as ondas se parecem. E todo o ruído se desfaz em silencio, que dura pelo menos uma fração de segundo antes que surjam outros ruídos. Mas a injustiça, essa perdura. E passa através das gerações incessantemente. A violência é um fogo eterno que vento algum apaga. A terra, possuída e despossuida, não pára de reclamar por vingança. Os homens continuam presos a muitas outras sombras que os amarram aos lugares e aos trabalhos forçados, como as correntes de elos de ferro que atrelam os escravos aos porões dos navios negreiros, onde as sombras da fome, da doença, do sofrimento se misturam. Sem ter como ou para onde fugir, sem ter como andar com suas próprias pernas, ou pensar com seus próprios cérebros, escravos são mãos que se soldam a ferramentas toscas e pesadas, mais um peso a se carregar na vida, mais uma bola de ferro presa às suas canelas feridas para impedi-los de andar.

Sendo o homem influenciável a modos e estilos de vida, João percebeu que andar era uma coisa que lhe convinha. Uma temporada na companhia de Nenzinho bastou para demonstrar que ele não era tão incompetente assim de cuidar de si. Lidar com as coisas simples usando as próprias mãos e ver plantas e frutos aparecendo é um remédio eficaz para a doença urbana dos que recebem tudo pronto, de bandeja, e tem apenas que retirar o invólucro de plástico. Saber fazer é talvez o mais importante. Havia ainda a historia do quilombo, uma fantasia segura a perseguir na vida.

Andarilhos dificilmente andam juntos. Não gostam de atrair a atenção, nem de infundir medo nas pessoas. Um grupo de andarilhos, maltrapilhos e estranhos, pode com facilidade despertar a ira de uma multidão, e não são raros os casos de andarilhos que foram mortos, linchados, presos e acusados de crimes bárbaros, simplesmente porque passaram por uma vila cheia de rancor e hostilidade. Artêmio conhecia casos em que, nas cidades grandes, grupos de rapazes elegantes, capturaram mendigos ou andarilhos só para matar, por puro divertimento de sábado a noite, seja tocando fogo, seja por tiro ou facada. Assim é bom andar sozinho, com muito cuidado. Mas na cidade, dormir junto, ou abrigado com algum amigo. E amigo é fácil de se fazer. Muitas pessoas invejam os andarilhos, gostariam também de sair andando e jogar tudo para o alto. São no entanto contidas. Pelas bolas de ferro imaginarias que colocaram nas suas canelas. Mas fazem de tudo para ajudar.

Foi cada um para um lado. João caminhava lentamente. Sua carga não era muita. Um punhado de arroz, uma caçarola, uma garrafinha para água, alguns panos para proteger o rosto. Tinha certeza absoluta de que não iria morrer de fome. Confiava no momento presente. Conhecia um bom número de plantas silvestres comestíveis, de raízes, podia caçar montando armadilhas de arame ou arapucas, podia pescar, ou fazer alguns biscates se houvesse necessidade. Se nada aparecesse, podia jejuar, como se estivesse caminhando no deserto. E jejuar é bom para clarear as idéias. Só que tem que fazer rezando, senão vira fome. E finalmente, podia mendigar, como Buda ou São Francisco.

Nada que fizesse o envergonharia mais. Mesmo não fazer nada. Porque tudo é trabalho, mesmo que não rendesse um tostão furado. Caminhar é trabalho. Ficar parado também é. Respirar, comer, obrar, dormir. Porque não há como separar o trabalho da vida. Exceto para os escravos. Esses sim, trabalham mas anseiam pela vida que lhes foi roubada. Vivem sem viver. Vivem adiando a vida verdadeira para um futuro dourado. Quando estão prestes a morrer, descobrem que a vida foi aquilo mesmo, aquela porcaria. Se tiverem sorte descobrem, um pouquinho antes de morrer. Mas a maioria nem isso. Morrem sem perceber. Ai ficam inventando essas historias para boi dormir, de outra vida, de outra chance. Outra chance para quê? Para fazer tudo igual de novo? Ou então transferem tudo para o céu, para o outro mundo, aonde as contas vão ser acertadas. Acham que o céu é um plano de aposentadoria perfeito com um tribunal de justos para punir os culpados pela sua vida perdida. Os filhos, coitados, são reedições, mas não melhoradas. Nem ampliadas. Tem que suportar todas as frustrações e mal humor, e a raiva contida.

Caminhar é extremamente automático. Não se precisa pensar para caminhar. Mas cérebro fica solto e passa a querer ocupar o tempo com um trabalho qualquer. O cérebro é um mercantilista que quer encontrar algum lucro em tudo que estiver fazendo. Esse era o problema de João. Sua cabeça não parava de ruminar, de atualizar arquivos, como um computador avariado. Fazer isso, fazer aquilo. Para segurar os pensamentos, passou a contar os passos; quando o numero ficava muito grande, que ele até esquecia, recomeçava do um. Percebeu depois que não era necessário contar. Bastava prestar atenção ao movimento das pernas. Depois, passou a prestar atenção ao espaço entre os objetos: ao invés de se concentrar num objeto, tentava perceber o espaço em volta dele. Depois jogou a atenção ao limite entre o espaço e o objeto, justamente aquela região onde o objeto é , e ao mesmo tempo ainda não é. Em seguida, se concentrou na luz que vinha do objeto até a sua retina. Percebeu que toda a luz que havia no mundo se refletia nos objetos e ia para algum outro lugar, exceto a luz que se chocava contra seus olhos, que se transformava em imagens e significado. Essa luz não retornava, não refletia; supôs que ela se transformava em imagens, significados e pensamentos. Achou que se conseguisse controlar esse ciclo, evitando a formação de significados e pensamentos ao perceber as imagens, isso eqüivaleria a fazer a luz retornar ao universo, como preconizam os alquimistas. Não reter nada, nem a luz recebida. Ai mergulhava num fluxo incessante de pensamentos e associações de idéias. Até que, de repente, voltava ao ponto inicial, contando os passos.

Não queria pensar, porque seus pensamentos inevitavelmente o levavam a uma sensação de pouca valia, de ridículo, que era a sua forma básica de sentir. Agora mesmo, andando sem destino, vestido com trapos, no meio da América do Sul, sob um sol de rachar, não podia deixar de se sentir um verdadeiro imbecil. Quando poderia estar trabalhando em alguma grande empresa, privada ou estatal, vestido com o terno da moda, atrás de uma grande escrivaninha cheia de papeis importantes, numa sala com ar condicionado. Ou no comitê executivo de algum grande partido político planejando as importantes estratégias para levar o país e o povo rumo a felicidade. Porque inteligência não lhe falta. A tragédia consiste em que para se chegar à felicidade é preciso passar por tanto sofrimento. Porque não conseguimos planejar a felicidade. Apenas tentamos corrigir algumas coisas que trazem a infelicidade.

Em sua cabeça uma revolução se colocava em marcha. Para que ele pudesse ser feliz era preciso que toda a humanidade o fosse. Batalhões de cossacos passavam galopando pelas estepes geladas. Traziam as espadas desembainhadas e marchavam velozes rumo a multidão que atônita carregava os seus estandartes vermelhos como sangue que ainda estava por ser derramado no chão branco. Trens blindados percorriam as Russias, à cata de qualquer punhadinho de grão que se pudessem encontrar. As populações das cidades famélicas exigiam o fim da guerra, de toda e qualquer guerra. Todo o poder aos sovietes. Tratava-se de transformar uma guerra imperialista em guerra de libertação nacional. E depois levar a revolução à toda a Europa, inundando o mundo de paz. Mas primeiro, acabar com a guerra imperialista. Em algum fantasmagórico e frio hotel, os representantes do povo assinavam o tratado de Brest-Litovsk. Faces muito pálidas, carecas de homens de meia-idade, mãos tremulas de frio e de emoçã