Conto de um natal fictício (Todas as minhas vidas)

É difícil acreditar, mas descobri que o passado e o futuro são apenas partes do presente . O passado continua existindo e o futuro já está concretizado. São as pessoas que nascem e morrem e acabam conhecendo apenas uma parte e uma época do Universo. E, assim, ficam iludindo-se, imaginado serem criadores de tudo o que simplesmente já está lá. Acham que ajudam a construir o futuro ou tiveram alguma influência no que passou.

Foram poucos segundos, mas me transportei ao futuro, onde já vivo em outro corpo. Lá no futuro não há limites de espaço ou tempo, não existe dinheiro, ninguém precisa comprar nem pagar nada. Todos flutuam de um lado a outro sem necessidade de nenhum tipo de transporte. No

futuro é possível comunicar-se apenas pelo pensamento, uma telepatia que dispensa telefones, Internets, e tantos recursos que, para quem vive o presente são fundamentais. E a vida parece abençoadamente eterna por uma energia indescritível.

Também fui ao passado. Usando um lindo e armado vestido azul tão claro, que quase era branco, caminho num grande bosque... O passeio pelo bosque deveria me dar paz mas, ao contrário, me deprime e amedronta. Parece não haver ninguém, nenhum ser vivo neste bosque, mas ouço algo, vozes, sons semelhantes a um bip e luzes.

É difícil distinguir os sons e as luzes e nem sei de onde vêm. Tento entender o que estão falando, mas parece tudo tão confuso. Penso que talvez falem sobre mim, comentem algo que aconteceu comigo e que, sei lá porquê eu não me recordo ou podem apenas falar coisas sem sentido e nada sobre mim.

Continuo caminhando até avistar meu grande amor. Como sempre ele me espera, impaciente!

Sorrindo, corro ao encontro dele: Um abraço forte, muitos beijos apaixonados e quase me esqueço das luzes, vozes e sons, que parecem aumentar cada vez mais.

Um frio intenso envolve meu corpo causando calafrios. E os sons aumentam. Pergunto se ele

sabe de onde vêm; ele apenas sorri e me beija novamente...

O futuro volta a me invadir e tudo parece tão melhor do que o passado que não resisto; vou ao futuro. Tento convencer meu amor a ir comigo e experimentar a sensação de total liberdade e elevação, mas ele se retrai. Diz que, no futuro, pertenço a outro e ele não quer interferir na minha decisão.

Começo a flutuar, minha fisionomia vai se modificando enquanto minhas vestes são substituídas por uma longo e esvoaçante vestido e torno-me mais uma habitante do futuro. Em meio a multidão procuro meu novo amor, mas não consigo encontra-lo... Sinto um pouco de saudade do

passado, mas logo me integro a realidade do futuro, faço amigos, divirto-me ao perceber que também sou telepata e posso comunicar-me com todos sem sequer abrir a boca. De repente percebo as mesmas luzes, vozes e sons do passado; aquele bip insistente e avisto um homem que me sorri. Está meio escuro, não consigo enxergar nitidamente sua fisionomia.

A medida em que flutuo, vou me aproximando mais dele. Os sons e luzes ficam mais fortes. Bem próxima dele, noto que ele é o mesmo homem do meu passado. Mas, se é ele mesmo, se foi ele o tempo todo, porque não veio comigo quando o chamei? Porque disse que eu teria que decidir com quem seguiria? E porque, estes sons e luzes sempre aumentam quando me aproximo dele?

Ele nada responde, continua sorrindo, estende as mãos; tocando em meu rosto. Novamente sinto-me invadida por estranhos calafrios, tenho a sensação de estar girando no ar, mergulhando num abismo de prazer. Finalmente ouço com nitidez a voz dele, que diz que está me perdendo e precisa reverter esta perda.

Mas, estranhamente, ele fala no plural, como se não falasse só por si.

Diz: "Estamos perdendo-a, precisamos reverter esta perda". As vozes se misturam aos sons do bip e não consigo entender o que ele quer dizer, a quem se refere.

Sinto choques em meu corpo, tenho a impressão de que ele me sacode violentamente, enquanto grita para que eu reaja. Não sei que tipo de reação ele quer que eu tenha. Sinto-me frágil e magoada pela mudança brusca nas atitudes dele. Estava tão carinhoso de repente me sacode

violentamente e grita, grita e aquele bip martelando meu cérebro...

Chorando, resolvo retornar ao passado. Acho que estava bem melhor lá. Dirijo-me à passagem, tento entrar mas não consigo. A passagem está fechada, tudo está muito escuro, o passado parece morto, extinto e já não posso retornar. Conformada resolvo instalar-me definitivamente no

futuro, mas a passagem também acaba de fechar-se. Tudo parece ter-se apagado, não há nenhuma luz e o bip agora tem um som muito longo e mais agudo do que nunca. As vozes continuam cada vez mais distantes, o homem que já não sei se amo continua me sacudindo e

grita cada vez mais alto. "Por favor, não vá, volte para nós". Eu choro desesperada e não o entendo: Se me quer, se pede para que eu volte, porque me sacode e humilha? Sinto um violento choque que parece agitar meu corpo todo. O bip começa a tocar de forma intensa e ritmada, as vozes parecem sussurros.

A escuridão, aos poucos, dá lugar a uma neblina e, finalmente, vem a claridade. Olho ao redor, tudo está branco. Tento entender onde estou. Não há mais o bosque do passado, nem o espaço liberto do futuro. Há só um cômodo todo branco, cheio de aparelhos estranhos e luzes enormes num lustre gigante, pessoas vestidas de branco e o homem dos meus sonhos, que agora parece bem mais calmo.

Aproxima-se e me ajeita na cama branca, dizendo: "Bem vinda de volta à vida e feliz natal!" Tento comunicar-me por telepatia, não consigo; tento mover meus lábios para perguntar se aquela encenação toda foi um trote ou algo assim, mas meus lábios estão imóveis.

Ele diz algo a alguém, sei que se refere a mim, mas não ouço direito e sai do cômodo. A cama começa a mover-se, duas pessoas a empurram por longos e brancos corredores. As pessoas vão comentando, enquanto empurram a cama:

- Que sorte, você viu? Depois de um capotamento como aquele, nenhuma fratura, nenhuma hemorragia, só uma parada cardíaca...

- Só parada cardíaca? Você acha pouco??? As pessoas riem, alguém passa por elas e diz:

- Feliz natal!

- Para você também.

- Feliz natal!!! Obviamente deve ser natal. Só não entendi ainda se é natal no passado ou no futuro. Ou talvez apenas seja natal no presente. Suspiro e avisto um anjo que sobrevoa o teto branco. Olho bem para ele e vejo o mesmo homem que estava no meu passado e no meu futuro.

E que, há pouco, deu-me boas vindas e desejou-me feliz natal. Penso que deve ser mesmo um anjo, presente de Papai Noel. Então finalmente adormeço...

FIM

© Lou de Olivier

Lou de Olivier
Enviado por Lou de Olivier em 21/12/2005
Reeditado em 26/07/2016
Código do texto: T88847
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2005. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.