Bush no divã de Freud

Não é todo dia que se assiste a uma sessão de psicanálise do doutor Sigmund Freud, ainda mais quando ele tem no seu divã o Presidente da República dos Estados Unidos, George W. Bush. Eu, mero cidadão insone de uma outra república, pude testemunhar aquela inacreditável sessão de psicanálise que se deu no porão do meu quarto, pelo estreito buraco de uma fechadura.

Alguns certamente cogitarão a hipótese de que estou louco; outros, mais benévolos, dirão que tudo não passou de um sonho. Eu, pelo menos da minha parte, asseguro que não se trata de nem uma coisa nem outra. É fato. Fato que tornarei público e que colocarei sob o juízo do leitor, que há de concluir da maneira que julgar mais sensata. Pois aí vai:

Eram umas três da manhã, se não me engano, depois de um dia turbulento, em que eu comi dois pratos de feijoada e fui à cama, puxar um ronco. Dormia tranquilamente no meu quarto quando fui acordado por uns ruídos em baixo da minha cama: “mas que diabos é isso?” - pensei aflito: “será o bicho papão?”, “alguma obra do tinhoso?”.

Com o corpo praticamente paralisado pelo medo, me movi sorrateiramente para o lado do abajur. Liguei as luzes. Eu que nunca havia notado aquele abajur... “Só pode ser milagre divino, pra atenuar o meu medo”, pensei – “Deus existe!”. Mas o diabo do barulho não cessava. Logo percebi que se tratava de voz de gente, eram duas vozes, parecia que dialogavam. Talvez fosse à casa ao lado? O que seria? Num átimo de curiosidade, enfiei minha cara debaixo da cama e lancei meu olhar a procura daquilo que seria a fonte do barulho. E eis que encontro um alçapão que dava acesso ao que eu fiquei sabendo ser um porão.

E eu que nunca havia notado aquele porão!

Não constava na minha memória que houvesse no meu quarto, em baixo da minha cama, qualquer alçapão que dê passagem a um porão. Não me importando com semelhantes detalhes, dei de ombros e abri a portinha. Excitado pelo medo e pela curiosidade desci as escadinhas que me levaram a uma porta. Abri essa porta, depois outra e mais outra. Era porta que não acabava mais. O dialogo não cessava. Até que ouvi o chamado de “próximo!”. Corri à porta. Mas a porcaria estava fechada. Era uma porta vulgar, branca, como outra qualquer. De curioso mesmo só havia um letreiro grafado com “Dr. Sigmund Freud”. Daí escuto um grito:

- Filmes de bang-bang!

“Quem deu esse grito, meu deus?”. Sem mais paciência meti meus olhos no buraco da fechadura e vi do que se tratava. Algo que nem Salvador Dali e nem René Magritte ousariam pintar, ainda que fossem ressuscitados só para isso. Era o presidente Bush sentado no divã de Freud. Não só eles, como também um cachorrinho amarrado numa coleira, uma girafa e um elefante mergulhados num aquário. Pela janela via-se resvalar por entre as cortinas uma luz bem tímida, que abrandava palidamente a penumbra que pesava sobre o ambiente. Freud tomava a palavra:

- Olhe pra essa televisão desligada, Sr.Bush. O que ela te faz lembrar?

- Filmes de bang-bang! Filmes de bang-bang!

- Ótimo. E isso? – mostrou-lhe um chapéu enorme, um chapéu mexicano. Ao que Bush respondeu:

- Filmes de bang-bang! Filmes de bang-bang!

Daí Freud mostra-lhe um pôster com uma mulher pelada, com o rosto censurado.

- E agora?

- Michele Carey! Michele Carey!

- E agora? – Freud aponta o cachimbo que fumava – e diz um troço estranho – Sr. Bush, isto não é um cachimbo. Então o que é?

- Filmes de bang-bang!

E Freud lhe mostrava outras coisas a mais:

- E agora? E agora? E agora?

Ao que Bush sempre respondia:

- Filmes de bang-bang! Filmes de bang-bang!

Atrás da fechadura eu já estava pra me estourar de raiva. Como é que aquele homem via bang-bang em tudo? Até ali só havia feito duas menções a coisas que não eram “bang-bang”. À uma tal de Michele Carey e a um tal de John Wayne. “Por que motivo?”

“Freud explica”.

Freud, após conferir alguns livros da sua escrivaninha, pôs-se a explicar à Bush, os motivos para aquele histerismo infantil do presidente. Ao que me lembro, tirando alguns termos complexos que não entendia bem, o seu diagnóstico foi mais ou menos assim:

- Já constatei em outros pacientes o Complexo de Édipo, mas o senhor foi acometido por algo diferente, jamais constatado, ao que eu chamo de Complexo de Quixote.

- Uai! Complexo de quê? De Quixote? – repetiu Bush, perplexo.

- Sim. O famoso fidalgo Dom Quixote de tanto ler livros de cavalaria perdeu o juízo. Desejava ser um cavaleiro andante e obedeceu a esse impulso de forma escancarada. Subiu no seu cavalo, se muniu de armas e partiu no mundo atrás de aventuras: para desfazer os agravos, proteger as donzelas, se pondo em ocasiões de perigos e desafios que o dariam perpétuo nome e fama. O seu caso – Sr. Bush – é o mesmo. Enquanto Quixote aspirava ser cavaleiro andante, o senhor aspirava ser um cowboy, uma espécie de John Wayne.

Bush, perplexo, fazia cara de quem não tava entendendo nada. Freud pôs-se a explicar:

- Sua cabeça está povoada pelos filmes de bang-bang que o senhor assistia na sua infância. Isso logo nota-se, sem que para isso se exija uma análise consistente. Norte-americano, branco, nascido em 1946, criado no Estado do Texas, não é de se estranhar a sua admiração inconsciente pelos heróis desse gênero de filmes. Michele Carey, que você citou, se não me engano contracenou com John no filme Eldorado, não é mesmo?

- Sim. E o John Wayne? – perguntou Bush.

John Wayne é para você, para o seu subconsciente, o arquétipo, o exemplo de como deve ser e de como deve agir um homem, um verdadeiro norte-americano. Deve ser machão, homem de poucas palavras, defensor intransigente da lei, admirado pela bravura, temido pelos bandidos, amado pelas mulheres, um genuíno cowboy americano.

Desde pequeno o senhor alimentou esse sonho de ser um cowboy, um novo John Wayne. Mas, para seu infortúnio, o seu pai – o Bush pai – te preparava um outro destino. Ele queria que você fosse a imagem e semelhança dele, queria que você fosse político, te queria presidente dos Estados Unidos.

- Ele disse que seria divertido...

- Mas logo você percebeu que a realidade não era como seus filmes de bang-bang. Era pacata e monótona. Você chegou ao poder, ficou atrás do seu gabinete presidencial, carimbando papéis oficiais – e cansado daquela vidinha, tirou, já no seu primeiro ano de mandato, uma das maiores férias que já tirou um presidente americano: 30 dias! 30 dias! Só superado por Nixon, que ficou 31 dias sem exercer o cargo...

- Mas era muito chato, uai! Não tinha mocinhas para salvar...

- Até que o senhor volta das férias justamente uma semana antes do 11 de setembro. Não é mesmo?

- Sim. A partir daí ficou divertido!

- Quixote obedeceu aos seus impulsos. Aos seus desejos. Ao seu Id. Mas diferente de Quixote, você se escondeu por detrás da imagem do bom filho, do “presidente da república”, do conservador. Quixote escancarou sua insanidade, sem vestes, sem máscaras; mas o senhor, por sua vez, sempre dissimulou sua insanidade, mentiu sistematicamente para o mundo e para si mesmo, obedeceu às conveniências do superego, acatou às sensatas recomendações do seu pai, mas no fundo o senhor não se realizava como presidente, nunca teve muito saco pra política, pra conversa, pro diálogo, pra diplomacia. Se pudesse resolveria tudo como John Wayne, na base do tiro, do bang-bang. Um verdadeiro cowboy. O fodão. Mas o senhor viu que nem todas as coisas poderiam ser resolvidas assim.

- Acho triste o mundo sem vilões, uai! Tem algum mal nisso?

- Como profissional não me cabe julgar. Seu subconsciente – povoado de filmes de bang-bang – precisa criar sistematicamente uma espécie de inimigo comum para o “bom” americano. Como um cowboy, sua satisfação só é possível se você possui inimigos, bandidos, vilões com quem duelar e derrotar. Mas os seus antecedentes não deixaram nada pra você, exterminaram todas as ameaças ao “bem estar” do povo americano: já haviam exterminados os índios, os nazistas e os comunistas malvados da União Soviética. E pra você, o que restou? Que graça teria o seu Governo? Era preciso criar um inimigo cruel, uma nova ameaça ao american way of life. E daí nasceu o que hoje chamamos de “terrorista!”. Os mulçumanos...

- Eles são uns fora da lei. Não sabem fazer democracia. Alguém precisava ensinar aqueles canalhas a...

- Sr. Bush – por favor – diga-me a primeira frase que lhe vem à memória.

Bush ficou imóvel, olhando para o teto, como se estivesse a vasculhar na memória alguma coisa. Depois de uma longa pausa soltou essa:

- Ser corajoso é estar morto de medo e, mesmo assim, encilhar o cavalo.

- Ótimo. Não preciso perguntar pra saber que se trata de uma frase pronunciada por John Wayne. Estou errado?

- Sim, é uma frase do grande Wayne.

- Pois analisemos: “Ser corajoso é estar morto de medo e, mesmo assim, encilhar o cavalo...” Daí vejo que é uma frase que ficou na sua memória mas também uma frase que o senhor jamais levou a termo. O senhor nunca subiu num cavalo à caça de aventuras, duelos, perigos. Nunca encarou o inimigo de frente. Quando serviu as forças armadas fez de tudo para fugir à guerra do Vietnã. Não arriscaria a pele, nunca deu a cara a tapa. Seu medo não permitia. Se escondeu na sombra do papai, enquanto apoiava a guerra de camarote.

- Isso não é verdade, doutor...

- A diferença fundamental entre o senhor e John Wayne: enquanto Wayne pressionava o gatilho o senhor pressionava o povo, bradando aos quatro cantos “caça aos terroristas”.

- Mas uai! Eles possuem armas químicas. Que eu posso fazer?

- Wayne dava tiros no inimigo em duelos, de frente; já o senhor, por sua vez, dá seus tiros numa posição mais confortável, atrás do seu gabinete, por meio de decretos presidenciais.

- Isso não é verdade, doutor...

- É meu diagnóstico. Se espera um que lhe agrade procure um outro psicanalista.

- Mas isto é uma blasfêmia!

Freud permaneceu irredutível. Acendeu um charuto e pôs-se a acariciar o cachorrinho que carregava na coleira o nome “Blair”.

- Mais alguma coisa, Sr. Bush? A sessão acabou. O diagnóstico está dado.

- Como está dado? O doutor acha que posso acreditar numa mentira dessa envergadura? Isso é um atentado... Um atentado terrorista!

Freud se ergue, mergulha o charuto num cinzeiro. E pergunta:

- O que acha que sou, Sr. Bush?

- Um terrorista. Mulçumano! Comunista! Um apache! Bandido! Um canalha!

- Corta essa. Cai fora! Vá dá o que comer a esse seu cachorro vai.

E Bush, suado e vermelho de ódio, sai pregando em Freud as maiores alcunhas que se pode ouvir de um norte-americano conservador: de terrorista à demônio.

Pega o cachorro pela coleira, abre a porta, se esbarra comigo e sai rasgando os papéis do diagnóstico.

- Próximo! – grita Freud de sua sala.

Entro. Sento no seu divã e daí – acreditem! – passo a ser objeto de suas análises. Mas o diagnóstico revelarei numa outra oportunidade. Fiquemos, portanto, com o laudo rasgado de Bush. Esse laudo que, para azar do presidente, ficou guardado na minha memória.

***

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 26/02/2008
Reeditado em 29/02/2008
Código do texto: T877105