Inspiração
 
            Viviam ocultos em uma gruta. Foi por mero acaso que os descobri. A velha casa, isolada, ao fim de uma ladeira na cidade, era minha herança familiar. Tornei-me tradutor renomado. Recluso, vivia a adaptar para nossa língua obras da literatura mundial. Graças à tecnologia, podia transmitir para as editoras o meu trabalho. Ganhava muito e, como não gastasse com quase nada, sobrava-me dinheiro.
            Tratei de trancar os portões. A população acreditava-me exótico. A correspondência era deixada na caixa. Vestindo meu roupão, tratava de recolhê-la logo pela manhã. O povo da cidade, sabendo de minha notoriedade, enchia-me de convites culturais e sociais. Recusava-os. Com o tempo foram me esquecendo. Via apenas uma senhora, faxineira, que duas vezes por semana limpava minha casa e levava as roupas para lavar e passar, trazendo-as depois. A compra do supermercado fazia pela Internet, ou por telefone. Eu pagava e dispensava o entregador, que sempre aguçava os olhos para ver o interior da morada.
            Possuía poucos móveis, apenas o essencial. A vida me era interessante porque era a que eu queria levar. Meses depois, passei a ouvir ruídos sob o assoalho. Parecia que alguém ali vivia. Batia no piso e passei a obter resposta. Um dia disse:
            - Alô? – para minha surpresa veio um abafado e distante: - Olá!
Estaria enlouquecendo? Descobrir a origem daquela voz passou a ser meu objetivo. Procurava por uma entrada. Os sons não paravam. Eram discursos, cânticos e orações, por vezes risos. Tentei estabelecer contato, mas era difícil. A casa era antiga. Busquei um alçapão. Vasculhei cada centímetro. Atrasei a entrega de alguns trabalhos. Certa noite, ao mexer na antiga e velha lareira que nunca utilizava, deparei-me com um tijolo solto. Aos poucos eu consegui removê-lo. Percebi que havia uma espécie de trava, similar a um interruptor de luz, mas muito antigo, de metal. Movimentei-o e, após um grande estalo, fez com que a lareira tremesse. Ouvi o barulho de uma grande engrenagem ser posta em funcionamento. Afastei-me com o tijolo nas mãos. A lareira começou a mover-se para o lado fazendo surgir uma escada. Procurei minha lanterna em móvel próximo. A estreita escada morria em uma porta. Uma luminosidade por suas frestas. Com o coração acelerado desci silenciosamente. A antiga porta de carvalho abriu ruidosamente. Quase caí de costas ao me deparar com um amplo salão, uma verdadeira biblioteca iluminada por incontáveis velas em castiçais. Notei uma claridade forte aos fundos. Caminhei pelos corredores apinhados de livros até o teto. Tudo era muito limpo, apesar dos livros aparentarem muitos anos.
            Cheguei a um espaço com duas mesas compridas e, à cabeceira de cada uma, dois homens muito velhos, barbudos, trajando túnicas vermelhas com detalhes dourados, lendo livros sob a luz de potentes velas. Sem levantar a cabeça um deles disse:
            - Você demorou muito a chegar! Acreditávamos que fosse mais esperto.
            - Tenha paciência com ele, Agostinho, não vês que ainda é muito jovem. – disse o outro, levantando os profundos olhos azuis e me encarando com um sorriso. Eu tinha um milhão de perguntas. Foram respondendo aos poucos, com enorme calma. Descobri que se tratavam de dois santos: São Nicolau e Santo Agostinho. Eu ignorava o motivo de estarem ali, por muitas vezes questionei-os a respeito. Perguntavam se eu queria que partissem. Respondia que não.
            - Então é melhor que não saiba – e isso encerrava tudo.
            Afeiçoei-me aos bons velhinhos. Contaram a fantástica história de suas vidas. Eram ricos em saber e conhecimento. Permitiram que eu escrevesse o que pensavam e publicasse como se fosse de minha autoria. A única exigência é que, ao final de cada obra, os homenageasse referindo-se aos mesmos com um simples: ¨in memorian¨. Desenvolvi meu latin, o italiano e até o russo. Uma dia, por exigência dos editores, fui forçado a viajar a São Paulo para uma noite de autógrafos – algo que odiava. Meus livros, ditados pelos santos, faziam enorme sucesso.
            Ao retornar, notei grande movimentação e alarido na minha alameda. Era noite avançada e, aos fundos, por sobre os demais telhados, vi uma vermelhidão iluminando os céus. Bombeiros esforçavam-se por vencer as chamas. Os estalos eram ouvidos a grande distância. A cidade inteira correu para lá. A população exclamava. Notaram minha presença e me apontavam. Apresentei-me ao chefe dos bombeiros. Perguntou-me se havia alguém no interior. Respondi que meus dois melhores amigos viviam no porão. Eles se esforçaram, mas nada pôde ser feito. Quando a situação permitiu, procuraram por corpos. Queriam saber os nomes dos amigos. Citei o nome dos santos. Olhou-me com assombro e, sabedor das minhas esquisitices, acreditou que era algum tipo de lunático. Um dos bombeiros tendo chegado ao porão chamou a todos. Corri. O coração acelerava. Debaixo das cinzas havia duas pequenas estátuas, intactas, representando meus dois velhos amigos...