A Pregação 

 

Bento acordou com a pulga atrás da orelha. Memória, razão, sensação e sentimentos, pareciam estar em um balaio de gatos, rolando morro abaixo. Seguiu do quarto para a cozinha, embaraçou nas próprias pernas e quase caiu!

Foi semana passada ou ontem? Provavelmente nenhuma das alternativas. Trocou o chinelo pelo tênis e seguiu para o supermercado, chegando lá, montou guarda na porta do supermercado esperando o mesmo abrir. Era cedo, mas não muito. Mania de aposentado.

Parado ali, encostou na parede lisa de cor branco-gelo. Ao lado, havia vários cartazes: promoção disso, daquilo, compre três e leve quatrocentos. Havia todo tipo de ofertas.

De repente, como se eles caíssem de paraquedas, surgiram na frente de Bento, Mathias e Berenice, um casal impar, não se apresentaram, mas numa pseudo modéstia, balbuciou uma pérola:

— Posso pregar a palavra?

Bento não estava nem de costas, nem de frente, meio de escanteio. Girou a cabeça até encontrar o ombro. Não lembrava se foi para a direita ou esquerda. Rodopiou a cabeça uns 90 graus? Provavelmente. Ele tem declarada antipatia à Geometria – nem balbuciou a dúvida.

Passo ao leitor amigo responder ou deduzir.

Eles deduziram, por conta própria, o consentimento de Bento, pois seu olhar era despretensioso e claudicante, Até hoje, Bento não lembra se lhes deu anuência para pregar a palavra.

Mathias, um homem  baixo, de músculos privilegiados, cabelos pretos, rosto arredondado, olhos verdes que movia os de modo desconfiado. Respirava de forma imperceptível. Bento sentiu um desconforto, uma energia ruim, como se uma presença invisível o envolvesse.

Intuição, reflexo ou sexto sentido? Provavelmente um deles, Bento imaginava que o casal não perambulava sozinho pela redondeza. Afinal, na outra quadra à esquerda, dois homens caminhavam com seus livros nas mãos. Na quadra em frente, duas mulheres carregavam volumes idênticos aos deles. Suas saias eram do mesmo modelo, longas, cobrindo os joelhos e as cores eram suaves.  

Numa terceira quadra, bem ao longe, outra mulher usava roupas similares às que estavam próximas de Bento, uma criança acompanhava-a. A distância impedia que ele discernisse se era um menino ou uma menina, pré-adolescente ou adolescente. Talvez tudo não passasse de uma intuição... ou de um jogo de sua imaginação."

Berenice, com seus olhos miudinhos e sobrancelhas postiças, chamou a atenção de Bento. Ele percebeu que uma pequena parte das sobrancelhas não era igual, havia falhas e alguns pelinhos estavam ouriçados, enquanto os demais permaneciam arreados. Não era novinha, mas havia muitas espinhas no seu rosto, resquícios da adolescente. Baixinha, pernas arqueadas, o joelho estava esfolado, será que ela rezava muito de joelhos, talvez trabalhava de joelhos, ou…

No momento em que o casal fez a intimação, Bento elucubrou, na velocidade da luz, um pensamento arrastado e dramático:

Qual deles iria pregar a palavra no meu corpo? Em qual  parte seria escolhida? Sua pré-consciência gritava enlouquecidamente: "Não é uma palavra inocente! São várias palavras, um texto, uma parábola, um recado, pode ser até uma paródia, sei lá o quê, mas é algo mais que uma única palavra, meu filho! A angústia e o desespero bateram tão forte no seu peito que Bento sentiu seu coração ficou depressivo. Mirou bem nos olhos deles, às vezes - não foram poucas vezes - flertava os pés de Berenice. 

Eles, mais a imagem que se formava atrás deles, dava uma expressão de fotografia de paisagem daquelas de folhinhas de calendário que se prega na parede. O casal tinha cara de paisagem. A temperança dominava seus semblantes - será? 

Bento observou minuciosamente os dois. Constatou um detalhe interessante: ambos tinham os lábios finos, os sapatos bem cuidados e cheiravam a guardados. Olhos miudinhos e alerta. Agitados como se estivessem preparados para algum fato já corriqueiro em suas abordagens. 

Cada um vergava um livro de capa de couro, Bento desconfiou que o peso das palavras exigisse muita força. As páginas já foram brancas, mas o tempo as surrou tanto que a cor mudou para um bege que lembrava a pele de pêssego bem maduro. Estavam aveludadas? Não sei, leitor.

O livro foi aberto de forma aleatória. O dedo indicador buscou um parágrafo qualquer. Bento desconfiou da precisão? 

O olhar do leitor, cravou-se nos de Bento, sentiu-se violentado. Suou frio. Seus joelhos doeram, teve a nítida sensação que a gravidade, por um instante, dobrou sua força. Mas manteve o queixo sempre altivo. Sentiu-se um mártir sem trono, e eles, como seus algozes, com suas armas fictícias.

Mathias segurava o livro com uma mão, enquanto o dedo indicador da outra mão, corria pelo texto, porém, de maneira um pouco titubeante — parecia que o dedo, às vezes, emperrava em algum trecho. Sua voz era suave. Enquanto sua  entonação deixava nítidas as vírgulas e os pontos finais, de uma clareza escandalosa e magnífica, mas enfadonha. 

O texto era um sermão ou uma tortura? Seriam eles os inimigos dos espíritos livres? Seria Bento um neófito? Talvez um aprendiz de feiticeiro, completamente embriagado pela sua própria resistência ingênua. Iludido com sua liberdade tão sonhada?

Berenice abraçou seu livro entrelaçando os braços junto ao peito. Então a leitura continuou, de repente, o Mathias parou, percebeu que Bento tinha se distraído e, não acompanhava com os olhos, o  dedo a deslizar pela imensidão daquela folha.

Com um olhar de protesto, fulminou  impiedosamente Bento, queimando  o semblante do distraído. Deduziu rápido e, com certo temor, voltou a olhar para a página, acompanhando temente e submisso, por onde o dedo trilhava.

Leitor amigo, já teve a experiência de viver uma eternidade nos limites de  um segundo? 

Sem tirar os olhos do livro; meio de soslaio, Bento tentou, ver se o supermercado já havia aberto as portas ao público. As portas ainda estavam cerradas, aquela constatação magoou bento.

Mantendo agora os olhos cravados no livro, Bento voltou a divagar nos seus próprios pensamentos. Sua atenção foi sabe se lá para onde. Devaneou literalmente.

Bento regressou da sua elucubração mental, quando o propagandista proferiu a boca miúda algo tipo, … fez a luz e todas as coisas, o sol, os planetas, os bichos… não exatamente nessa ordem, continuou divagando, porém, agregou ao seu devaneio alguns fragmentos do trecho lido e, ao somá-los, concluiu com maestria:

– Então é este ser que acendeu o fosforo para acontecer o Big Bang?

Não parou nessa constatação, e Disparou sua metralhadora giratória de palavras – carregada até o talo.

Mathias e Berenice, armados com seus livros, recuaram cinco passos. Depois avançaram três, repentinamente, lançaram as mãos aos céus e, em seguida, cravaram as unhas no couro cabeludo, quase sangrou. Tufos de cabelos ficaram presos sob as unhas. Na sequência,  mediram Bento detalhadamente, dos calcanhares à escassa coroa de cabelos.    

Num passe de mágica, Bento, que até então era neófito. Ascendeu a Mestre dos Magos. Lembra, leitor persistente, que Bento havia se distraído com algumas  elucubrações e foi fulminado por um raio dos olhos do seu oponente? Eis as ideias que sequestraram Bento e que ele, então, expôs a seus ouvintes atônitos e descabelados:

Quando aconteceu o Big Bang, poucos segundos após, surgiram os átomos, como os senhores sabem, quase todos os átomos, são estáveis, ou seja, os átomos são os mesmos até hoje. A explosão foi o início do processo, assim, com o passar do tempo, tudo foi sendo transformado, estrelas, planetas, asteroides, água, terra, bicho, ou seja, fazemos parte de um grande processo em andamento.

Vocês sabiam que, os átomos que formaram os dinossauros, podem estar fazendo parte do nosso corpo hoje? Os átomos do T-Rex que me faltam, estão provavelmente num boxeador ou num rottweiler – e isso explica muita coisa, se eu os tivesse, teriam me evitado tantos aborrecimentos e constrangimentos!

 

Durante o tempo em que seu comparsa pregava a palavra, Berenice, mordiscava delicadamente a pontinha de seu livro encadernado em couro, Bento não a via, mas tinha certeza, de que  ela ziguezagueava pela borda do livro, com a pontinha da língua. Sem que seu companheiro percebesse, ela piscou para ele.

Quando terminei de falar, os dois, como se fosse ensaiado, saltaram para trás e gritaram baixinho contraindo seus livros com todos as suas forças, contra o peito:

— Jesus amado! Ajude-nos e essa pobre alma Perdida.

As portas do supermercado, foram abertas, Bento não exitou um segundo sequer, entrou na mesma velocidade dos outros dias, comprou pão Francês e pão de queijo. 

Dirigiu se a passos lentos para o caixa, para averiguar os preços das mercadorias. Filomena, a anã, que estava escalada naquele dia, cumprimentou a como de costume, deu-lhe um tchau e seguiu displicentemente para casa, para tomar meu café fresco.

Assim que Bento saiu do supermercado, do outro lado da rua, havia um grupo enorme de pessoas na calçada: homens, crianças, mulheres e um ancião anão. Todos olharam em sua direção, apontando os dedos  para ele. 

Bento percebeu que os olhares de todos eram de incredulidade e temor; menos o de Berenice, que não mordia seu livro, apenas alisava vagarosamente os lábios com a ponta da língua e, os olhos semicerrados.