A Charqueadas invisível
Existe uma cidade dentro da cidade de Charqueadas que não se pode ver a olho nu. Uma cidade imaterial, intangível, invisível. Uma cidade a qual somente se pode adentrar em estado onírico, em sonho. Não está sob, sobre ou entre Charqueadas, ela simplesmente está e existe em seu próprio espaço.
Por várias vezes lá estive, é sempre a mesma, com suas ruas de chão batido e, algumas, calçadas - inexiste asfalto. A iluminação pública é antiquada, assim como seus prédios e casas altos, com arquitetura antiga, das primeiras quatro décadas do século XX. Alguns, enormes e sem móvel algum, desabitados; outros, em estado precário, com muita gente dentro. E há as casas habitadas por famílias e estabelecimentos comerciais "normais". As "vendas" são daquelas antigas, com baleiros rotativos de vidro e balanças de pesos, comércios bem asseados e arrumados, inclusive com certo requinte interiorano. Tu pode se alimentar neles, tomar "martelinhos", beber café, comer pastel, quindim, uma variedade de secos & molhados.
Não sei o seu tamanho, sempre entro de bicicleta ou caminhando pela Ricardo Louzada. Quando vejo, estou nela. Na primeira vez fiquei surpreso e desnorteado, mas depois de tantas idas, acostumei. É grande o suficiente pra se perder dentro, já aconteceu comigo e tive de ficar perguntando onde estava para as pessoas. Crianças, jovens e velhos, homens e mulheres, vestem-se de forma simples, como pessoas, sei lá, dos anos 40 ou 60, acho; todas, pra mim, desconhecidas. Falam com gírias e usos já ultrapassados da língua, mas nos entendemos perfeitamente bem. Nunca lembrei de perguntar o nome dela, se é Charqueadas também, até porque o presumo por ela estar ocupando, creio, o mesmo espaço geográfico - o rio, com absoluta certeza, é o Jacuí. Fico sempre por essa zona próxima do rio, mas percebo que ela é maior para todos os lados - dá pra se perder, disse.
Tem um cinema, antigo, mas bem decorado e conservado e com ótima projeção, num prédio bem alto na melhor rua, que é calçada e cheia de outros prédios altos. Já assisti filme lá, comprei entrada na bilheteria e tudo, mas não recordo qual. A propósito, quase tudo, casas e prédios, são altos na "Charqueadas" invisível. A rua do cinema é muito legal e bonita, não há na Charqueadas real nada minimamente parecido e tão portentoso, digno de uma metrópole. Uma beleza de rua, as calçadas muito bem feitas e decoradas no piso, com bares e uma bela praça arborizada onde as pessoas ficam, sejam dias de sol ou noites estreladas (nunca peguei tempo ruim lá, chuva, calorão, frio, coisas assim). Ah, tem muita árvore na cidade. As demais vias, repito, são, na maioria, de chão batido, embora as residências sigam o mesmo padrão estético e arquitetônico.
Entretanto, achei curioso, não vi lá cemitério, hospital, asilo, igreja, prostíbulo, delegacia, prefeitura, Câmara de Vereadores, presídio, nada. Só o exuberante cinema, os estabelecimentos comerciais e as casas. Sei que ela é maior, não a conheço toda, não consigo tempo de sair da região próxima ao rio, que já é grande, então não posso afirmar com certeza que tais não existam. Também não vi carros e tampouco cavalos pelas ruas, embora, como disse, possua iluminação pública, energia elétrica e ninguém demonstre a menor surpresa ou estranhamento em me ver de bicicleta por lá.
A vez em que me perdi foi tentando procurar um religioso que mora por lá e é muito conceituado entre os locais e famoso, como mais tarde vim a descobrir. Embora me indicassem o caminho, por várias vezes fiquei sem saber onde estava. Até que encontrei a rua e o prédio, uma casa enorme dentro de um pátio enorme, arborizado, mas sem nenhum indicativo de que seria um estabelecimento religioso. Não quis entrar, fiquei por lá, olhando, admirado. Outra bela rua, de chão batido e calçadas gramadas, cheia de belas casas igualmente enormes.
Determinada noite, também em sonho, estava em outro lugar, uma outra cidade. Era um prédio igualmente da mesma época, enorme, uma biblioteca ou um centro de estudos ou, mesmo, as duas coisas. Numa sala por onde passei - ninguém me barra, em lugar algum - vi uma mulher jovem, alta, loira e gordinha, e um moço conversando, sentados ante uma grande mesa de madeira escura - via-os de lado, ela de frente pra mim e ele de costas. Ouvi que falavam justamente da cidade onde morava o tal monge, guru, médium, pastor ou padre poderoso, que desejavam saber onde era e ir ter com ele, visto sua renomada cultura, inteligência, sabedoria e dons espirituais. Tomei coragem e me intrometi na conversa, dizendo que conhecia a cidade, a rua e a casa do religioso, embora nunca o tenha visto. Nesse momento os dois repararam na minha presença e me olharam atentamente, entre surpresos, curiosos e interessados, como se dissessem "de onde saiu esse cara?". E assim ficaram, observando-me, por breves e intermináveis segundos - ela possuía lindos e grandes olhos verdes. Quando percebi que iam me dirigir a palavra, acordei. Foi desta vez que percebi a fama do tal religioso da Charqueadas invisível e que, aparentemente, desconhecem que ele lá resida.
Nunca voltei pra Charqueadas real estando na Charqueadas invisível, simplesmente acordo e pronto. Agora, pra ir pra lá, vou sempre pela real, em sonho. O curioso é que pedalo pela real em vigília e estranho constatar a inexistência física da onírica. Uma pena, pois a Charqueadas invisível é um sonho de cidade.